sábado, 25 de agosto de 2012

Quadros - Os Senhores de Tavarede - 18


            Este morgado de Tavarede, Fernão Gomes de Quadros e Sousa, terá sido aquele que pior administração teve na Casa de Tavarede, levando uma vida de dissipação, criando enormes dívidas que, posteriormente, quase levaram à ruína…

            Entretanto, a sua violência sobre o povo, os vexames com que constantemente feria alguns e, sobretudo, as agressões de carácter sexual, de que foram vítimas muitas mulheres, levaram a que o Cabido da Sé de Coimbra deliberasse tomar a iniciativa de mudar a câmara, as justiças e a cadeia para a Figueira, convicto de que, com esta mudança, se acabaria com o ‘poder feudal’ que o morgado usava constante e abusivamente sobre os pobres povos de Tavarede e outros lugares vizinhos.

            Para este fim, e tendo obtido o acordo da câmara de Tavarede, formalizou uma queixa ao rei D. José I. A história desta questão foi minuciosamente estudada pelo ilustre investigador Dr. Rocha Madahil que, no ‘Album Figueirense’, publicou um extenso e bem elaborado estudo que intitulou ‘A mudança da câmara de Tavarede para a Figueira’, e no qual transcreve entre muitos outros documentos, a queixa apresentada e a resposta que a nobreza e o povo (obrigado a isso pelo seu senhor) deram, mas que, ao fim e ao cabo, resultaram na mudança efectiva das autoridades de Tavarede para a Figueira da Foz do Mondego.

            Senhor
            Representa a Vossa Majestade o Cabido da Santa Sé de Coimbra, só para o fim de livremente usar dos seus direitos no Couto de Tavarede em que é donatário da Coroa e para desagravar as Justiças, que naquele Couto o dito exponente confirma, e manter as pessoas e famílias dele livres de injúrias e opressões de Régulos, poderosos e mal inclinados, e com o preciso protesto de que da averiguação da exposição infra não resulte imposição de penas de sangue e mutilação de membro.
            Que no dito Couto de Tavarede vive dissoluta e despoticamente Fernando Gomes de Quadros, com o foro de fidalgo da Casa de Vossa Majestade e comendador nas Alhadas, com tão absoluto e independente poder com vexação das Justiças e povo.
            Que tráz as Justiças daquele Couto debaixo do pé e nada se faz pelo Juiz e vereadores que se lhe não dê a saber. Não se faz Juiz, Vereadores e Procurador do Couto que não sejam as pessoas que ele quer ou não quer que sejam, porque quando se faz a Justiça chama a casa os que hão-de votar, e quando eles não vão os procura e os faz votar nas pessoas que ele muito quer, e fazendo o contrário os ameaça com um vergalho, como fez ao capitão Isidoro dos Reis, homem do hábito de Cristo, que sendo Juiz ele o foi esperar para lhe dar com o dito instrumento, o qual, tendo aviso, se retirou, quando não certamente o descompunha.
            Que quando a Justiça faz eleição de recebedor das cisas de Vossa Majestade, ou quatro e meio por cento e outras fintas, se lho não dão a saber, quer que livrem a todos quantos fazem e por este respeito sucede as mais das vezes, vir Caminheiro pelos quartéis, por não haver Recebedor por causa dele. E o povo paga muitas custas, que se houvera Recebedor que tivesse cobrado o pedido a tempo, escusava o mesmo povo de pagar ao Caminheiro e de experimentar tão grande vexação pela dita causa.
            Que toda a pessoa que intenta por alguma demanda justa ou quer cobrar alguma dívida, se a tal pessoa não vai primeiro pedir licença e dar conta do que intenta fazer, faz que as Justiças dêem a sentença contra a tal pessoa, ainda que tenha razão e justiça, pondo-se pela contrária, com todo o seu absoluto poder chamando as testemunhas para que jurem o que ele quer e descompondo as que juram a favor da tal pessoa. E não só as trata desta sorte mas aos Juízes, mandando-lhes com império e ameaços, que façam o que ele lhes insinua, aliás, pau e vergalho. Porém ainda aqui não param as vexações que o dito povo padece com a vizinhança deste homem.
            Que naquela terra há muitos criminosos, por roubos que fazem em casas e fazendas, por dívidas que devem, pancadas e facadas que dão, os quais logo se vão recolher a casa dele como couto mais privilegiado que algum que haja no Reino, e ele os recebe e é padrinho de todos. Porque só o é dos maus e deste valhacouto entram a continuar nos seus roubos, e dando descomposturas e ferindo à sombra e capa do seu patrono. Como também o é dos ciganos quando vêm àquelas terras, sendo capa e dando hospedagem a todo o ladrão e pessoa de má consciência.
            Que sendo o Couto de Tavarede muito pequeno, tráz nele um grande rebanho de cabras, destruindo todas as vinhas e mais novidades dos pobres, e se acaso lhas deitam fora os donos das fazendas, os criados se levantam contra eles e os ameaçam com seu amo, cujo respeito os intimida a não defenderem o que é seu. E o mesmo sucede com os gados das pessoas que são da sua casa, por serem muitos os compadres e afilhados que logrão da isenção e privilégios da mesma, e estes, ainda que os seus gados sejam daninhos, não são coimados e se algum, por esquecimento da Justiça o foi, logo o faz riscar do livro e fica isento da coima.
            Que para maior esplendor da sua nobreza e respeito da sua casa, quer que tudo o que pede se lhe faça, ou seja torto ou direito, para o que intimida as Justiças deste Couto com a sua crueldade, que como são homens de menos esfera, qualquer coisa os intimida, e por este causa lhe disfarçam as suas insolências, e a toda a pessoa que não faz o que ele pede lhe costuma levantar labéus e formar crimes falsos, e como tem muitas pessoas de seu séquito e igual condição, faz as provas que quer. E a outras as induz a que jurem o que ele quer, e se o não fazem os castiga com pau e vergalho, e assim se vinga de quem lhe ultrajou o respeito faltando-lhe ao seu empenho, sendo máxima deste sujeito, como praticou a certa pessoa, que para a sua casa ser respeitada, hão-de andar os vizinhos sempre debaixo de um pau, sendo palavra muito sua: eles não querem, pois há-de sair o castanho, que é um bordão daquela madeira, com que tem dado muitas pancadas em muitos e da mesma sorte.
            Que traz os pobres trabalhadores destas terras arrastados, porque todas as vezes que quer algum serviço feito, os manda rogar e se não vão logo, por terem prometido para outro serviço, os descompõe a pau e vergalho, e muitas vezes os costuma ir tirar do serviço de outras pessoas aonde andam, ou do seu próprio serviço, dizendo que está primeiro que ninguém, e como não lhes paga, ninguém o quer servir e se o servem é com o temor da outra paga que ele costuma dar.
            Que só as pessoas que vivem mal e são mal procedidas favorece e os ajuda para o mal e faz com que as Justiças os não persigam, só para os ter na sua mão, para com a ajuda destes fazer tudo quanto quer e ser respeitado e temido, pois o ajudam nas pendências como pessoas próprias, e nas ocasiões de alguma prova de alguma causa com os juramentos falsos, que por seu respeito dão.
            Que também tomou umas casas de sobrado e quintal a Teotónio dos Santos Pinheiro, da Figueira, as quais tinha no Couto de Tavarede, sem que até ao presente as queira restituir a seus herdeiros.
            Que querendo o Cabido exponente arrendar a renda de Tavarede, este contrato para o que mandou pôr editais para se saber o dia em que o dita renda se havia de arrematar, o dito, para sua vingança, mandou pôr outros editais e vários papéis com letra desconhecida, que diziam: que qualquer pessoa que tomasse aquela renda visse como a tomava, porque lhe haviam de roubar os frutos e perseguir a quem a tomasse, e por esta razão persegue ao presente rendeiro, causando-lher mil vexações e ao mesmo Cabido, induzindo o povo a que lhe não pague os foros que lhe são devidos, assim pelo foral do mesmo Couto, como por sentenças que contra eles tem alcançado. Porém, esta inimizade que o suplicado tem ao Cabido, não só é por ser malévolo, soberbo e de desordenados costumes, mas porque lhe vem por herança dos seus antepassados, contra os quais alcançou o Cabido exponente muitas sentenças, não só em favor do mesmo Cabido, mas também daqueles povos que, oprimidos das injustiças que aqueles perversos homens lhe faziam, recorriam ao Cabido, como donatário daquele Couto, por mercê do senhor rei D. Sancho, de gloriosa memória, e não só o dito senhor rei os defendeu daqueles cruéis vizinhos, mas os senhores reis seus sucessores, de que se acham sentenças e  cartas aos corregedores de Coimbra, para que acudam às vexações que os ditos sucessivamente lhe iam fazendo, que este ódio vem sucedendo de pais em filhos, de filhos em netos, até chegar a este. E assim como este ódio se estabeleceu por geração, assim tambem é malinidade e perversidade de génios e soberba se foi seguindo de uns para outros.
            Que fazendo algumas pessoas fornos para cozerem o seu pão em suas casas, lhes tem o suplicado entrado pelas portas dentro, acompanhado de seus criados e valentes, e lhos derrubam e desfazem, como fizeram a Luís de Faria, da Figueira, Teotónio dos Santos Pinheiro e António Osório, todos homens de bem naquela terra, o que obra com o pretexto de ter provisão e sentenças possesórias para ter forno de poia. Na Figueira tudo obtido em tempo em que aquela terra e povoações não chegaria a ter cem vizinhos, sendo que hoje tem mais de seiscentos, sendo impossível que este aumento de povo seja bem servido só com o dito forno e fornalha, que o predito pretende conservar, apesar de toda a povoação em notória perda da mesma e de seu pão, dano que sofrem para não serem espancados e descompostos pelo predito e seu filho Pedro José (Joaquim).
            Que o predito suplicado acutilou nas lojas do Padre Cura Manuel Tomás, ao feitor de Fernando Maria, morador na cidade de Coimbra, que habitava no lugar da Figueira por nome Manuel Ribeiro Bravo, que no dito lugar tinha loja de comércio, correndo atrás deste com a espada nua, desde o armazém em que estava quantidade de peixe, até às ditas lojas, por o predito feitor lhe não dar fiadas umas arrobas de pescadas secas que lhe pedia.
            Que o dito suplicado foi a casa de Caetano dos Santos, do dito lugar da Figueira, para lhe dar, o qual com medo e para se livrar, saltou duma janela abaixo, do que ficou manco de ambos os pés e assim vive.
            Que não querendo um preto do Padre José dos Reis consentir que o gado do suplicado andasse em uma fazenda do referido senhor do preto, o dito suplicado, com um seu filho, entraram na dita fazenda para maltratarem o dito preto, que por fugir escapou de ser espancado com armas que levavam.
            Que as Justiças daquele Couto de Tavarede todas temem e tremem do suplicado e de seus criados, por estes não só castigarem por obra e palavra, não só ao que lhe fazem coimas a seus companheiros ou caseiros ou outros seus protegidos, mas a quaisquer que lhe não obedeçam em quaisquer matreiras de seu empenho, porque contra o supradito e sua família se não administra Justiça naquele Couto em tanto.
            Que dando o suplicado uns capítulos contra o rendeiro do Cabido exponente, e do juiz executor do mesmo Cabido, no suposto nome do povo e Câmara, sendo Vossa Majestade servido mandar que o Corregedor de Coimbra o informasse, mandou o referido Corregedor chamar os oficiais da dita Câmara de Tavarede, para que assinassem os ditos capítulos, os quais sendo vistos pelos ditos oficiais da referida Câmara disseram que tais capítulos se não fizeram nem mandaram fazer, e que o denominarem serem feitos em seu nome era com falsidade, como o era a narrativa dos mesmos e que por este motivo os não assinavam, do que sendo sabedor o suplicado mandou chamar os ditos oficiais a sua casa, e os descompôs e ameaçou, que se não assinassem os ditos capítulos, os havia de moer com um pau, e os preditos oficiais, para se verem livres das vexações que o dito suplicado costuma executar, com medo os assinaram, sem embargo do que Vossa Majestade informado da verdade pelo dito Corregedor foi servido escusar o requerimento.
            Que é o suplicado de tão depravado ânimo que até aos religiosos franciscanos de Santo António do lugar da Figueira chega a ferir a tirania daquele, porque querendo, fundamentado na sua fidalguia, se lhe faça tudo o que pede e sucedendo lançar fora do serviço daquela comunidade, o padre Guardião dela ao barbeiro da mesma, por faltas que tinha feito, recorreu o dito barbeiro ao patrocínio do suplicado e pedindo a este a dita graça, logo o suplicado o ameaçou que lhe havia de tirar quantas esmolas pudesse, como com efeito pratica pelos meios que pode excugitar os sermões daquelas freguesias vizinhas e outras mais esmolas que se costumam dar.
            Que o suplicado é costumado a proteger facínoras e a injuriar os honrados, porque andando um Francisco de Oliveira, do dito lugar da Figueira, homiziado por crime de traição e aleivosia, se refugiou na casa do dito suplicado (com exemplo deste proteger a outros mais delinquentes) e o dito suplicado o acompanhou com uma espada debaixo do braço até ao dito lugar da Figueira, e chegando ambos à porta do padre Libório (que era o ofendido com a dita traição e aleivosia) estiveram quietos muito tempo olhando para as janelas e casas do dito padre, observando se saía para o descomporem, segundo se entendeu.
            Que o suplicado nunca pagou a pessoa alguma que o servisse, assim com coisa fiada como emprestada, e se acaso alguns credores lhe pedem o que lhe emprestaram ou fiaram, os descompõe espancando-os com pau ou vergalho, e ao pouco de palavra e se manda pedir alguma coisa fiada e se não lhe fia faz o mesmo, com o que vivem aqueles povos tão oprimidos que ninguém é senhor de coisa alguma ao pé do suplicado, porque tudo o que lhe faz conta faz seu, tomando por força de pancadas o alheio se lho não dão, não pagando também aos trabalhadores que o servem.
            Que mandando a predito suplicado pedir a um inglês, chamado Daniel, umas pipas emprestadas, porque este lhas não emprestou, em razão de lhe serem necessárias para a condução dos seus vinhos, para o que já as tinha postas na praia para se embarcarem para a dita condução, o dito suplicado mandou conduzir para sua casa as de que necessitava, contra a vontade do dito Daniel, seu dono, sem sua licença. Como também mandou conduzir para sua casa uma pouca de madeira de um homem de Lisboa , de que estava entregue por comissão Luis da Costa, do dito lugar da Figueira. E haverá dois anos, com pouca diferença, mandou o dito suplicado pedir uma carrada de canas a um homem de Buarcos, e não condescendendo este com a petição porque as queria para as suas vinhas, o dito suplicado, com absoluto poder, mandou os seus criados à fazenda do dito homem e que dela trouxessem as canas, como com efeito violentamente trouxerão para as vinhas do referido suplicado.
            Que tendo António José de Saldanha, de Aveiro, uma quinta chamada da Fonte, com uma morada de casas de sobrado, no Couto de Tavarede, que são de uma capela, lhas demoliu violentamente o suplicado, e se aproveitou de toda a pedra, telha e madeiras, e fez das casas e da sua área picadeiro de cavalos, danificando os bens da capela que lhe não pertencem, e andando os bens desta arrendados por três moios de milho anualmente, o dito suplicado, pelo ódio que tinha ao referido António José, fez com que ninguem arrendasse a dita quinta por mais de setenta alqueires de milho, e alguns anos a fez ficar com menos renda por falta das ditas casas, que eram nobres e tinham acomodação para os frutos, que agora não tem.
            Que ao marchante João Lopes, de Maiorca, deve o suplicado quantidade de dinheiro de vaca que lhe fiou e quando aquele lhe pede a dívida o ameaça e descompõe com um vergalho, chamando-lhe nomes injuriosos. E todo o marchante que vai com vaca ao lugar da Figueira, ou há-de dar vaca para casa do suplicado e de suas amigas, sem osso, que nunca lhe paga, ou se algum o não faz é descomposto com pau e vergalho pelo suplicado ou sua família.
            Que o dito é tão costumado a obrar mal e de ânimo tão malévolo e falto de justiça, que vindo de Lisboa a Buarcos Bento da Cunha Terrão, a certo negócio de gosto, que tinha na dita vila, e convidando alguns parentes e amigos para o tal festejo o obséquio, o dito foi com os da sua facção, carregados de armas defesas, só a fim de deslustrarem o dito e seus convidados, chamando-lhe muitos nomes injuriosos, glosando-lhe várias poesias em que o descompunham e outros desaforos semelhantes, sem mais conveniência que a de fazer mal e de dar a conhecer a braveza de seu ânimo e a leveza do seu juizo. E o mesmo fez em Maiorca, aonde de noite foi ver uma comédia que se fazia em uma casa de Bernardo da Cunha, saindo com o seu capelão e mais pessoas da sua comitiva, segundo o uso e costume, com armas defesas, quis meter o festejo à bulha e descompôr o dito Bernardo da Cunha, que se não usara da sua prudência certamente o matariam, pois já iam com ânimo disso. Estas façanhas, parece, são estribadas na soberba e temerário juizo de que só a ele são devidos semelhantes obséquios, e por esta razão quer ser singular, desprezando desta forma ainda aos melhores daquelas terras, como é o dito Bernardo da Cunha.
            Que anda  o suplicado actualmente amancebado com uma filha sua, bastarda, chamada Antónia, filha de Isabel Gomes, mulher de Manuel Gomes Raposo, há mais de dez anos, e tem parido dele várias vezes, e chegou a ir a casa de sua mãe furtá-la, e deu muita pancada no dito Manuel Gomes Raposo, porque entendia ser sua filha e como tal a defendia para dele não ser roubada nem ofendida na sua honra, das quais pancadas esteve à morte e se queixou a Vossa Majestade, e veio decreto para ser preso. Porém, como é muito poderoso, fez com o Corregedor que era naquele tempo, que não desse a devida execução a tal decreto.
            Que sendo denunciado pela dita amncebia, diante da Justiça Eclesiástica da cidade e bispado de Coimbra, e sendo preso pela denúncia (por ser tão poderoso não foi ao Aljube, ficando sob fiança em casa de seu cunhado, o Correio Mor de Coimbra), e estando assim preso, numa noite saíu à rua e deu também muitas cutiladas numas pessoas, que, ao que parece, alteravam a rua. E também por ser tão poderoso ficou com menos castigo do que merecia, e depois que se viu livre da Justiça e foi para sua casa, tratou de se vingar nas testemunhas, que, com medo dele, não tinham dito a metade da verdade. E o primeiro foi o soldado José Mendes Ribeiro, de Tavarede, que esteve tão mal das ditas pancadas, que recebeu os Sacramentos. As mais se ausentaram da terra, tendo por melhor o degredo voluntário que se porem no perigo de cair nas suas mãos, menos certo soldado que se pôs na resolução de o matar no caso que o dito se resolvesse a quer ofendê-lo. E como assim o publicassem o dito se absteve do projecto com que andava. Também deu muita pancada na mulher de Rafael Lopes, da Figueira, Maria da Costa, e não só por suas mãos fez estes e outros distúrbios semelhantes, mas também pelos seus criados, como foi à mulher de Tomé de Carvalho, mandando-lhe dar muita pancada, de que esteve à morte, chamada Teresa Simões, de Tavarede, por um seu criado valente, chamado José Gomes. E não é necessário que os criados sejam muito valentes, porque a atrocidade do amo os faz ser cruéis e destemidos, fiados no respeito do mesmo.
            Que naqueles países de Tavarede, Figueira e lugares circunvizinhos, tem desflorado muitas donzelas e orfãs, como foram Teresa, do Couto de Quiaios, Maria Neta e Maria da Silva, da Figueira, e com esta andou muito tempo amancebado. Caetana Gonçalves e Maria de S. José, filhas de Manuel Francisco Matulo, de Tavarede, e mais duas filhas da dita Caetana Gonçalves, uma chamada Teodósia, outra Josefa Teixeira, coabitando com mães e filhas tudo a um tempo. Não falando em mulheres que lhe vão a casa, que dessas nenhuma escapa, e ainda as próprias criadas e escravas. E se alguma das ditas donzelas ou orfãs resistem e não consentem, no seu depravado ânimo lhes impõe testemunhos, dizendo que são mal procedidas e que o têm sido com ele muitas vezes, não se livrando as pobres da desonra da fama por se livrarem da da obra. Mas muitas vezes as pobres sem assistindo ao seu apetite escapam de que ele não diga logo o mal que lhes tinha causado, e assim têm sido muitas desonradas de obra e palavra, porque logo o publica pelo seu depravado ânimo e pouco temor de Deus.
            Que até a própria concubina, estribada no seu valimento, faz desacatos sem conta, porque a muitas mulheres honradas tem descomposto com nomes injuriosos, e a uma Josefa Vieira, mulher de Paulo da Cunha, quis-lhe dar com uma faca de ponta, andando ela em seu quintal. E a pobre mulher, com medo da faca, caíu com um acidente.
            Que o dito suplicado anda sempre armado com pistolas, facas, bacamartes, e foi a Buarcos arrombar a porta a uma mulher honrada, chamada Teresa Rocha, e a quis forçar pondo-lhe uma faca de ponta nos peitos, ao que a mulher resistiu e se livrou como pôde desta insolência. E não só destas usa, mas também seu filho mais velho, com o bom ensino do pai, que também foi uma noite com as mesmas armas à vila de Redondos, que fica pegada com a de Buarcos, e abriu a porta de uma estrebaria do padre Cura da dita vila e lhe furtou uma égua, e foi nela para as partes de Peniche, aonde a vendeu, e até ao presente a não restituiu. E entregando-lhe o alferes Manuel Bernardes, do Moinho da Mata, ao pé de Montemor-o-Velho, quarenta e tantos mil reis e um cavalo, para ele os entregar em Montemor ao licenciado Manuel Pereira da Silva, procurador do Cabido exponente, a quem o dito alferesera devedor, e por quem era executado, e lhos entregou na confiança de que pelo respeito do portador lhe fizessem algum rebate, ele o fez tanto pelo contrário, que fugiu com o dinheiro e cavalo, e enquanto tudo durou não tornou mais a casa, ficando o alferes sem o seu dinheiro e cavalo, que até agora se lhe não repôs. E o dito alferes foi preso pela dita dívida e morreu na cadeia. E o outro filho mais novo, chamado António Leite, vai seguindo as pisadas de seu pai e irmão, e já tem dado várias facadas, cometendo mulheres casadas e donzelas, e não só os ditos executam estes insultos mas também seus criados e familiares.
            Que tinha um capelão em casa, chamado padre Manuel Gonçalves, que, abusando das Ordens e do seu hábito sacerdotal, é contratador de cal e de bestas, e é rendeiro da Morraceira e companheiro na dita renda do Parada, de Coimbra. E também usa de armas defesas, como são pistolas, facas de ponta, e também tem descomposto muitas pessoas de bem a pau, como foi a Manuel Jorge Tega, de Tavarede, por este lhe não querer ir com o seu carro buscar uns poucos de paus e mato para o forno da cal, e o pôs à Santa Unção defronte das casas de seu amo, e tem feito o mesmo a muitas outras pessoas. E também anda amancebado, com mulheres de todo o estado, enfronhado no respeito de seu amo e fazendo como ele faz. E da mesma sorte são os mais criados, acompanhando a seu amo em vários distúrbios e com a capa dele,fazendo outros, usando das mesmas armas que ele usa, não só nas ocasiões em que ele os manda mas nas que eles tomam por sua conta pelo seu mau exemplo.
            Que o dito suplicado tem feito muitas mortes, porque matou a António Pedro, cunhado do Juiz da Alfândega da Figueira, de noite, com dois tiros de pistola, E deu tanta pancada em Manuel Ribeiro Bravo que este das mesmas pancadas morreu; como também matou um galego, no lugar do Pombalinho e da mesma sorte deu muita pancada em António Gil, marido de Nazaré Gonçalves, em forme que logo no outro dia morreu delas. E também deu tanta pancada em Manuel Ferreira Castanheira, da Figueira, que o deixou por morto, por este lhe pedir certa quantia de dinheiro que lhe devia de vaca, que lhe fiou do seu açougue em tempo, quando o dito Manuel Ferreira era marchante, sem embaraço de que até ao presente lhe não satisfez.
            Que também o mesmo suplicado deu muitas bofetadas na cara e pancadas no corpo de um seu tio, por nome de João de Quadros e Sousa, irmão de seu pai Pedro Lopes de Quadros, por o dito João de Quadros chamar sua mulher para sua casa, ao qual o dito suplicado ainda hoje traz muito atropelado por lhe não pagar uma tença de oitenta mil reis que seu pai lhe deixou, motivo porque se acha muito necessitado. Como também deu muita pancada em André Pessoa, da Várzea, e deu também tantas em Manuel da Silva, do lugar do Lírio da Alhada, que se lho não tirassem das mãos certamente o matava. Como também deu o suplicado com uma espada, de noite, em Bernardo Migueis, de Tavarede, e lhe lançou as tripas fora, e sem dúvida o mataria se não sucedesse topar-lhe a espada em um osso que a fez resvalar, excesso que obrou sem causa alguma justificada. E da mesma sorte deu muita pancada na mulher de Paixão Rodrigues, de Tavarede, por respeito de uma concubina que o suplicado tem há muitos anos, por causa da qual tem espancado a várias pessoas, que as testemunhas dirão.
            Que o suplicado se porta com tão pouca emenda daqueles excessos, que pouco tempo há que despedindo D. Isabel Senhorinha, mulher do médico de Leiria, Fernando Miguel, a um moleiro de um seu moinho, por este se não querer dar por despedido sem aquela lhe ajustar contas, pagando-lhe o que lhe restava, se valeu a dita D. Isabel do suplicado, para que este espancasse, ou mandasse espancar, ao dito moleiro, e com efeito o suplicado aceitando a deprecação o mandou espancar, por dois criados, um chamado José Borges, seu caçador, e outro Domingos de Carvalho, ambos de Tavarede, o qual Domingos Carvalho anda sempre soicado de armas a consentimento do dito suplicado.
            Que tanto é vício natural no suplicado e seus predecessores o viver com excessos e absolutos, que já aquela prática passou ao filho mais velho do suplicado, quando, próximo dos meses de Novembro ou Dezembro do ano de mil setecentos e cinquenta e quatro, tiranamente matou seu tio, o padre Frei Aires, religioso de S. Francisco, dando-lhe um tiro com uma espingarda, por este o repreender de alguns distúrbios que vinha de fazer no lugar da Figueira, além de outros que expostos ficam.
            Pede a Vossa Majestade se digne mandar que sobre o exposto informe o Corregedor da Comarca de Coimbra por direitos de testemunhas fidedignas e que para estas jurarem sem medo ou suborno, o suplicado seja exterminado na distância de trinta léguas e seus filhos, até se concluir  a diligência e pelo que constar administrar inteira justiça, para que o exponente e moradores do dito Couto e seu termo, de que é donatário, vivam sem a opressão do suplicado e sua família, tudo debaixo do protesto, no princípio desta representação expresso que o Cabido exponente aqui há por repetido. Espera receber mercê.

Teatro da S.I.T. - Notas e Críticas - 42


1972.12.06     -     A SIT NAS COMEMORAÇÕES DE “OS LUSÍADAS” (MAR ALTO)

                O “Mar Alto” registou, com o merecido relevo, a contribuição da Sociedade de Instrução Tavaredense nas comemorações do centenário da publicação de “Os Lusíadas”. Mas talvez não seja descabido referir ainda uma outra opinião sobre os amadores tavaredenses e o seu espectáculo comemorativo. Uma opinião como a de Hernâni Cidade, presidente da Comissão Nacional das Comemorações Camonianas.
                Numa carta que o qualificado professor dirigiu ao tavaredense sr. António Medina Júnior, director do “Jornal de Sintra” o Dr. Hernâni Cidade assim se pronuncia:
                “Sr. António Medina
                Meu prezado amigo:
                Tenho o tempo tomadíssimo, mas não lhe posso negar as palavrinhas que me pede sobre o espectáculo a que ambos assistimos na sua terra, na inesquecível noite de 4 de Novembro.
                Foi tudo para mim uma impressionantíssima surpresa! Sem me deter na maneira como fui acolhido, com simpatia de tão espontânea generosidade e com palavras de tão calorosa eloquência, prefiro falar-lhe do modo como eu próprio fui empolgado pela interpretação do auto camoniano – El-Rei Seleuco. Inteligente a interpretação, adequado o cenário, com a necessária dignidade o vestuário, e tudo em termos de dar a melhor evidência a certa grande realidade excepcional: uma exemplaríssima dedicação de José Ribeiro pela educação do povo humilde da sua aldeia e a colaboração de todos nessa obra admirável com a entusiástica aceitação dela – a melhor, a mais comovida e autêntica ,maneira de lha agradecer.
                José Ribeiro merece aquele ambiente de calorosa estima e de enternecida admiração que lhe dedicam todos os colaboradores, todo o povo de Tavarede. E até na formação de tal ambiente está demonstrada a superior sensibilidade do povo a cuja educação ele com tanta bondade e com tanta inteligência consagra sua devoção cívica e sua humaníssima paternidade. Na verdade, é uma surpresa gratíssima sentir como todos desempenham os seus papéis! Sem um comum fundo de cultura superior à habitual em pessoas de aldeia e profissão humilde, não seria possível tanta maleabilidade na interpretação e representação das figuras, na adequação a estas de falas e atitudes, quer naquele auto, quer na Evocação de Camões e “Os Lusíadas”, da autoria do seu ilustre conterrâneo.
                É uma bela obra, a que José Ribeiro está realizando. Mas é o de melhor colaboração possível, o ambiente moral e até artístico em que tem a felicidade de trabalhar. Merecia-o o seu talento; merecia-o a sua simpatia, a que nem falta a espontânea eloquência com que sabe comunicar-se.
                Aqui tem, meu querido amigo, o que da abundância do coração, me veio ao bico da esferográfica.
                Tudo isto e ainda um abraço do seu amigo, Hernâni Cidade.

EM TAVAREDE MORA O TEATRO (MAR ALTO)

                Tal como “Mar Alto” noticiou no seu último número, estreou-se na Sociedade de Instrução Tavaredense, em récita de aniversário, a peça do conhecido dramaturgo inglês William Shakespeare – “TUDO ESTÁ BEM QUANDO ACABA BEM”.
                Estivemos presentes a mais esta noite de teatro em Tavarede, e sem pretendermos ser crítico teatral – porque o não somos – mas porque gostamos de teatro, não podemos deixar de aqui expor as nossas opiniões sobre mais esta obra de um clássico, que o grupo cénico da SIT nos proporcionou.
                À hora pontual, como é hábito na Sociedade de Instrução Tavaredense, teve início a récita com uma exposição de mestre José da Silva Ribeiro, que a jeito de intróito nos situou dentro da obra que se iria representar, e que simultaneamente, numa intencional linguagem simples e compreensível, nos deu uma bela lição de teatro. Se mais não valesse, só para ouvir mestre José Ribeiro, valeu bem deslocarmo-nos à SIT, pois que de um agradável espectáculo de teatro se tratou.
                É evidente que não poderemos comparar esta peça de Shakespeare a um “Romeu e Julieta”, mas sem dúvida que se trata de uma bela peça. A mensagem trazida até nós, tem ainda actualidade, se atentarmos na frase colocada na boca do Rei de França – que aliás traduz o sentimento de toda a peça – em que ele, insurgindo-se contra um dos seus fidalgos, por não querer casar com a filha de um plebeu – “filha de um simples médico” – pergunta irritado se o sangue dela não será igual ao seu – dele Rei – se há diferença na cor, no peso ou no aspecto. – Quando se pretende criar uma sociedade igualitária entre os homens, ainda hoje se poderia citar esta frase a muito boa gente.
                Só quem, como nós, conhece o trabalho de bastidores, poderá compreender o esforço necessário para que, comodamente instalados nas nossas cadeiras, pudéssemos apreciar esta representação. – É todo um trabalho persistente de estudo, ensaios, o montar e desmontar das cenas – que não quebraram o ritmo do espectáculo – é enfim um mundo de ocupações.
                Foi com simpatia que vimos no palco da SIT alguns jovens – hoje que a juventude se espalha por diversas ocupações, nem sempre as mais recomendadas – que a par de alguns “velhos”, nos deram um belo exemplo e nos fazem confiar no futuro da nossa juventude. Lado a lado com os já consagrados – João Medina, Fernando Reis, José Medina, Manuel Lontro, vimos, entre outros, os jovens Ana Paula Fadigas e Francisco Carvalho – que julgamos serem estreantes – e que julgamos serem promissoras as suas aptidões para o teatro, – nunca a coragem e boa vontade vos falte. – Uma palavra ainda para Maria Conceição Mota, que para nós foi uma agradável revelação.
                Tratou-se de uma estreia, e estamos certos, ou não conhecessemos os métodos de trabalho da SIT, de que algumas arestas serão ainda limadas. Para todos os que gostam de teatro, aconselhamos a que em sessões futuras se desloquem a Tavarede e a par de um belo espectáculo, aceitem uma boa lição de teatro, pois que “TUDO ESTÁ BEM QUANDO ACABA BEM”.

1973.01.18     -     PROF. DR. HERNÂNI CIDADE (A VOZ DA FIGUEIRA)

                É de arquivar, nas nossas colunas a seguinte carta dirigida pelo Prof. Hernâni Cidade a António Medina Junior e inserta no seu Jornal de Sintra.
                               “Sr. António Medina, Meu prezado amigo:
                Tenho o tempo tomadíssimo, mas não lhe posso negar as palavrinhas que me pede sobre o espectáculo a que ambos assistimos na sua terra, na inesquecível noite de 4 de Novembro.
                Foi tudo para mim uma impressionantíssima surpresa! Sem me deter na maneira como fui acolhido, com simpatia de tão expontânea generosidade e com palavras de tão calorosa eloquência, prefiro falar-lhe do modo como eu próprio fui empolgado pela interpretação do auto camoneano - El Rei Seleuco. Inteligente a interpretação, adequado o cenário, com a necessária dignidade o vestuário, e tudo em termos de dar a melhor evidência a certa grande realidade excepcional: uma exemplaríssima dedicação de José Ribeiro pela educação do povo humilde da sua aldeia e a colaboração de todos nessa obra admirável com a entusiástica aceitação dela - a melhor, a mais comovida e autêntica maneira de lha agradecer.
                José Ribeiro merece aquele ambiente de calorosa estima e de enternecida admiração, que lhe dedicam todos os colaboradores, todo o povo de Tavarede. E até na formação de tal ambiente está demonstrada a superior sensibilidade do povo a cuja educação ele com tanta bondade e com tanta inteligência consagra a sua devoção cívica e sua humaníssima paternidade. Na verdade, é uma surpresa gratíssima sentir como todos desempenham os seus papéis! Sem um comum fundo de cultura superior à habitual em pessoas de aldeia e profissão humilde, não seria possível tanta maleabilidade na interpretação e representação das figuras, na adequação a estas de falas e atitudes, quer naquele auto, quer na Evocação de Camões e “Os Lusíadas”, da autoria do seu ilustre conterrâneio.
                É uma bela obra, a que José Ribeiro está realizando. Mas é o de melhor colaboração possível, o ambiente moral e até artístico em que tem a felicidade de trabalhar. Merecia-o o seu talento; merecia-o a sua simpatia, a que nem falta a espontânea eloquência com que sabe comunicar-se.
                Aqui tem, meu querido amigo, o que, da abundância do coração, me veio ao bico da esferográfica.
                Tudo isto e ainda um abraço do seu amigo
                                                                                                              Hernâni Cidade”

1975.03.15     -     UMA ESTREIA EM TAVAREDE (O DEVER)

                Eu que não assisto a nenhuma estreia, fui desta vez a uma, sem constrangimento, com prazer. Isto aconteceu num lugar pouco conhecido, porém, o mais teatral de Portugal: em Tavarede. Vila de 500 habitantes – perto da Figueira da Foz -, possui um grupo de teatro amador já famoso e cujo mentor, José Ribeiro, não precisa das acções de dinamização cultural vindas de fora, porque ele a dinamiza há já algumas dezenas de anos, e de dentro.
                Na verdade, em Tavarede faz-se mais teatro do que em Lisboa e do que em Paris e Londres; vejam bem: dos 500 habitantes, na última estreia, vimos cerca de 40 actores, uma dúzia ou mais de músicos tocando no fosso da orquestra, 20 técnicos de cena, enfim, uma percentagem considerável da população local.
                A peça estreada chama-se “Mesa-Redonda” e o seu autor-compilador é uma vez mais o infatigável José Ribeiro, 80 anos passados, mesmo após uma recente grave doença, continua cheio de “verve” e quando ainda, os outros têm de correr atrás. Diz-se: o que há de bom em Tavaredem é a água e o José Ribeiro. Mas voltando ao espectáculo: era o exemplo vivo da aliança da cultura “culta” (Gil Vicente, Sóror Mariana, Cântico dos Cânticos) com as preocupações locais e até políticas do momento, uma revista “sui generis”, com quatro “compères” (de mesa-redonda quadrada), com música, canções, finais e tudo, com dezenas de cenários ou apontamentos montados num abrir e fechar de olhos, rigorosamente, sem falha; e, dentro desse global recreativo os textos muito belos e sérios.
                A estreia foi um êxito, mas o eco não chegoum que eu saiba, a Lisboa. Ficou no seu lugar para o qual foi concebido o espectáculo, com honestidade, trabalho e talento, sem modas e oportunismos. E quase me penitencio de falar nele, neste jornal: é como desvendedar deslealmente um segredo, embora movido pela simpatia, admiração, e até mais.
                Eis o abraço do espectador de estreia, desta vez não renitente. (a) Jorge Listopad.
                N.R. – Respigámos do “Diário de Notícias”, de há dias, este belo “naco” de prosa, e aqui o transcrevemos, com aprazimento, em homenagem, bem merecida, ao nosso ilustre conterrâneo – alma-mater do grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense – José da Silva Ribeiro.

sábado, 18 de agosto de 2012

Teatro da S.I.T. - Notas e Críticas - 41


1972.01.26     -     CONTO DE INVERNO (MAR ALTO)
                 Integrado no programa de aniversário, o grupo cénico da SIT acaba de dar ao público de Tavarede mais uma peça – Conto de Inverno, de Shakespeare – em que José Ribeiro, ainda outra vez, põe à prova as suas invulgares qualidades de encenador e ensaiador. Desta feita tudo lhe pertence: até a tradução da obra.
                Num palco acanhado para uma peça recheada de mutações, a sua mão mágica consegue que os seus cordelinhos façam milagres.
                Antes da representação, José Ribeiro leu ao público o prefácio que escreveu como nota explicativa desta curiosa obra de Shakespeare. Todas as peças de Shakespeare são difíceis; esta também o é:
                = Mutações constantes (a pedir palco giratório);
                = Muitos personagens em cena (uma grande parte com boas rábulas);
                = Muitos estreantes (o que causa sempre dificuldades para a unidade da peça).
                Magníficos os cenários (alguns adaptados), e um extraordinário guarda-roupa de Alberto Anahory, talvez o mais rico que ali foi apresentado até hoje.
                De belo efeito a cena final, pela grandiosidade do guarda-roupa, pela montagem e pelo magnífico jogo de luzes.
                Representação incerta, própria de uma première.
                “Conto de Inverno”, como o título diz, é um conto. Ele merece ser visto e ouvido por todo o público, pelo que o recomendamos aos nossos leitores.
                O público aplaudiu sem reservas. No final do espectáculo obrigou a subir o pano várias vezes e exigiu a presença de José Ribeiro em cena.
                Entre os convidados estavam os srs. engº. José Jorge de Pinho, presidente da Câmara da Figueira, e sua esposa; cónego Tomás Póvoas, reitor do Seminário; revdº. José Manuel Leite e sua esposa; revdº. João Severino Neto, etc.

1972.01.27     -     “CONTO DE INVERNO”, DE SHAKESPEARE (A VOZ DA FIGUEIRA)

                Assistimos no passado sábado à récita de aniversário da Sociedade de Instrução Tavaredense, que sempre tem primado por apresentar bom teatro, e mais uma vez demos por bem empregue a nossa deslocação à vizinha Tavarede.
                Mestre José Ribeiro não proferiu a habitual palestra que antecede as estreias, mas leu o prefácio que escreveu sobre a peça “Conto de Inverno”, de William Shakespeare, que pela primeira vez era representada em Portugal, em língua portuguesa, já que em 1939 fora apresentada em Lisboa por um grupo de ingleses e estudantes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em récita particular.
                Com “Conto de Inverno”, Skakespeare esteve presente pela terceira vez em Tavarede. A primeira em 1964, por ocasião do seu 4º. centenário  com a “mui excelente e lamentável tragédia Romeu e Julieta”, sem dúvida a sua mais popular obra, adaptada ao teatro e ao cinema em variadíssimas versões. Quatro anos depois o dramaturgo inglês voltou ao palco de Tavarede com o Dente por Dente, com adaptação de Luís Francisco Rebelo, e agora com Conto de Inverno, traduzida e adaptada por João José, pseudónimo artístico de José Ribeiro.
                “Conto de Inverno”, uma quase tragédia em 5 actos e 10 quadros, foi representada na corte de Jaime I, em 5 de Novembro de 1610, seis anos antes da morte do seu autor, Alma do século, Monumento sem túmulo, Doce cisne do Avon, como Shakespeare foi classificado por Bem Johnson.
                José Ribeiro disse que “Conto de Inverno” tinha qualidades para agradar a crianças e a adultos, e, de facto, assim é.
                Concebida longe dos moldes de “Hamlet”, “Romeu e Julieta”, “O mercador de Veneza”, e outras, a peça ora apresentada em Tavarede conta-nos a história do ciumento Leontes, rei da Sicilia, que pretendeu matar o seu pretenso rival Polixenes, rei da Boémia, mandou abandonar sua filha recém-nascida num monte deste país e fez julgar Hermione, sua mulher, por crime de adultério, de que estava inocente conforme depois foi confirmado pelo Oráculo de Delfos.
                A peça tem um final imprevisto e acaba bem, reconhecidos que foram os infundados ciúmes de Leontes.
                Nada menos de 37 são as personagens que intervêm em “Conto de Inverno”, que conta com a participação dos “veteranos” João Cascão, Violinda Medina e Silva, Fernando Reis, João de Oliveira Junior e José Luiz do Nascimento.
                Boas presenças de José Medina, João Medina, José Santos, Manuel Cerveira, Luiz Medina, Ana Cristina de Oliveira, Rosa Maria da Silva, etc.
                A cenografia é do prof. Manuel de Oliveira e de José Maria Marques, com um excelente guarda-roupa de Alberto Anahory que, como sempre, primou por apresentar luxuosas indumentárias da época.
                A encenação é do nosso já consagrado e competente José Ribeiro que, como as que tem apresentado no palco da SIT, lhe deu todos os condimentos necessários para fazer de “Conto de Inverno” mais um assinalado êxito para os amadores de Tavarede.

1972.10.07     -     CENTENÁRIO DA PUBLICAÇÃO DE OS LUSÍADAS (O FIGUEIRENSE)

                O IV Centenário da Publicação de “Os Lusíadas” teve, na Figueira, a mais brilhante comemoração por parte do grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense que, na quarta-feira, em espectáculo oferecido pela Câmara Municipal ao público da cidade, representou no teatro do Peninsular, o “Auto de El-Rei Seleuco” e “Camões e Os Lusíadas”. Foi uma noite de Arte e Beleza, bem digna do nome glorioso que se quis homenagear.
                Não permitem o tempo e o espaço que nos detenhamos na apreciação do espectáculo, em que o saber de José Ribeiro e o talento dos seus distintos amadores mais uma vez se evidenciaram.
                Queremos apenas acrescentar que nessa noite, a Câmara homenageou a Sociedade de Instrução Tavaredense, entregando à sua direcção a Medalha de Mérito, em ouro. O público associou-se a tão justa homenagem, sublinhando o acto com fartos aplausos. O vereador sr. dr. Carlos Albarino Maia disse palavras a propósito e o sr. presidente da Câmara fez a entrega da medalha.
                O revdº Cónego dr. Urbano Duarte dissertou com brilho sobre as razões daquele sarau. Prestou homenagem à Sociedade de Instrução Tavaredense pelo seu esforço em prol do Teatro e fez rasgado elogio de José Ribeiro e do seu trabalho, que procurou trazer a figura e a imortal obra do grande épico ao nível do nosso povo, para este melhor o entender e admirar.
                Em cena aberta, os distintos amadores receberam, no final, as calorosas homenagens do público. José Ribeiro teve chamada especial e trouxe consigo ao proscénio António Tomás, que com felicidade gravou as vozes de Garrett e de “Os Lusíadas” e realizou toda a sonorização.
                Enfim, uma noite de Arte e Beleza.

1972.10.11     -     CENTENÁRIO DE “OS LUSÍADAS” (MAR ALTO)

                Atingiu raro brilhantismo o sarau que a Câmara Municipal, através do sector Cultural, promoveu, com ingressos gratuitos, no teatro do Grande Casino Peninsular.
                Representou o grupo da Sociedade de Instrução Tavaredense, o “Auto de El-Rei Seleuco”, do Poeta, e “Camões e Os Lusíadas”, uma evocação da autoria de José Ribeiro.
                O cónego dr. Urbano Duarte pronunciou uma oração brilhante acerca da obra e figura de Camões, que a Figueira homenageava com a colaboração da Sociedade de Instrução Tavaredense. Referiu o trabalho de José Ribeiro no campo da Cultura e agora no engrandecimento do Épico.
                No final, os amadores, José Ribeiro e António Tomás, colaborador do grupo, foram ovacionados calorosamente.

1972.10.12     -     CENTENÁRIO DE “OS LUSÍADAS” (A VOZ DA FIGUEIRA)

                Decorreu com o nível previsto o espectáculo que o grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, a convite dos Serviços Culturais da Câmara Municipal, e para comemorar o 4º. centenário da publicação de “Os Lusíadas”, levou a efeito no Teatro do Casino Peninsular, na penúltima quarta-feira.
                Antes do início do espectáculo, com a presença da Direcção daquela colectividade, e do seu competentíssimo director cénico, o presidente do Município Figueirense, sr. eng. José Jorge de Pinho fez-lhe a entrega da Medalha de Mérito da Cidade, com que, por proposta do antigo vereador da Cultura, sr. dr. Marcos Viana, fora agraciada.
                O dr. Carlos Albarino Maia, actual vereador daquele pelouro, proferiu breves palavras sobre o acto e sobre a pessoa encarregada de justificar as razões do espectáculo que ia seguir-se, o sr. cónego dr. Urbano Duarte.
                Este, no uso da palavra, divagou sobre o grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense e de Tavarede, que representaram para ele, recentemente, maravilhosa descoberta. Terminou pela leitura dum poema de Miguel Torga, sobre Camões.
                O espectáculo abriu com a representação do “Auto de El-Rei Seleuco”, de Camões, em que o grupo cénico da terra do limonete brilhou, mais uma vez, a grande altura.
                Uma nova “estrela” abre promissoras perspectivas à arte de representar – a gentil Ana Cristina de Oliveira – numa terra de tão gloriosas tradições teatrais, como é Tavarede.
                João Cascão, José e João Medina, José Luís do Nascimento, Fernando Reis e João de Oliveira Junior todos já experimentados e conscienciosos amadores, deram relevo à representação, procurando tirar partido duma peça que, escrita em verso arcaico, poucas probabilidades tinha de assegurar o êxito perante o espectador comum.
                Com uma sucessão de quadros de grande efeito cénico e sabor camoneano, inspirados em Camões e “Os Lusíadas” – trabalho excelente de José Ribeiro – completou-se o espectáculo.
                Nele fez a sua reaparição o notável amador António Jorge da Silva, no papel de Telmo Pais, do “Frei Luís de Sousa”, em que noutros tempos tanto se destacou.
                Os restantes intervenientes deram homogéneo contributo à representação.
                O público aplaudiu demoradamente e saíu satisfeito desta condigna comemoração do 4º. centenário da publicação de “Os Lusíadas” na nossa terra.

1972.11.04     -     PROFESSOR DR. HERNANI CIDADE (O FIGUEIRENSE)

                Hoje à noite, o grupo de teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense representa, novamente, esplêndido programa comemorativo do IV Centenário da Publicação de “Os Lusíadas”, constituído pelo “Auto de El-Rei Seleuco”, de Luís de Camões, e pela evocação de “Camões e Os Lusíadas”, da autoria de José da Silva Ribeiro.
                A esta representação assistirá o ilustre presidente da Comissão Nacional das Comemorações, sr. Prof. Dr. Hernani Cidade.
                Este eminente camonista profere amanhã uma conferência sobre Luís de Camões e “Os Lusíadas”, na reunião do Rotary Clube da Figueira, a realizar em almoço no Grande Hotel.

Quadros - Os Senhores de Tavarede - 17


Foi com este fidalgo que, nos primeiros anos do século dezoito, se iniciou o aforamento de muitas parcelas da Morraceira, para o fabrico do sal. Com o aumento da população também foi necessário alterar os fornos da poia, O facto de os moradores estarem obrigados a cozer nos fornos da Casa, por este sistema de exploração directa, obrigava a que esta suportasse os encargos da exploração e manutenção que, no fundo, eram a justificação dos emolumentos recebidos (A Casa de Tavarede). Na Figueira, em 1717, existiam dois fornos que rendiam anualmente, para a Casa de Tavarede, 60 000 reis. Eram insuficientes e o fidalgo de Tavarede estabeleceu outro, perto da Igreja de S. Julião,

            A necessidade de terrenos para novas construções, levou a Casa de Tavarede a um rápido desmembramento dos terrenos que possuía na zona da foz do Mondego. Todos estes processos – o da exploração de sal na Morraceira e o da divisão dos cerrados da Figueira – mostram que a Casa de Tavarede não ficou de olhos fechados perante o crescimento e progresso daquelas zonas, aproveitando o fenómeno para conseguir maior e mais certo rendimento. Mas, talvez porque se tratou de um processo conduzido por factores económicos gerais, e muito rápido, parece quase certo que os administradores da Casa não se adaptaram a esse aumento de rendimento, presumindo-o constante, o que de alguma forma explicará o descalabro financeiro da administração do morgado seguinte. Diga-se, porém, que a ruína ou riqueza deste tipo de Casas não se pode explicar somente através de comportamentos individuais. Ainda está por analisar, creio eu, a influência da sazonal falta de dinheiro que as pessoas sentiam nessas épocas, fruto quase sempre do calendário agrícola. Considere-se simplesmente que nesses tempos não existiam bancos, recorrendo constantemente as pessoas de todas as classes a empréstimos particulares mais ou menos onerosos, para diversos fins, actos de que são testemunhas ainda silenciosas as escrituras de empréstimos que enxameiam os livros dos tabeliões desses tempos, escreve o Dr. Pedro Quadros Saldanha no seu trabalho ‘A Casa de Tavarede’.

Prossigamos a nossa história. Com o pai deste fidalgo de Tavarede, a sua Casa havia começado a perder influência. O enorme progresso da Figueira da foz do Mondego, devido à sua excelente localização, teve grande influência na Casa de Tavarede. Por um lado, o sal e os cereais produzidos na Morraceira, e a posse da maior parte dos terrenos circundantes da Figueira, que emprazados em parcelas, proporcionaram aos senhores de Tavarede elevados rendimentos, por outro lado perderam a iniciativa dos seus antepassados, desinteressando-se de criarem riqueza e preocupando-se apenas a gozar os rendimentos que, devido a despesas de ostentação e outras do mesmo tempo, deram início ao processo que, anos depois, levaria a Casa praticamente à ruína.

            Adiante veremos os resultados…
             

Fernão Gomes de Quadros e Sousa

7º. Senhor de Tavarede - Morgado

             Eu, Fernão Gomes de Quadros, oitavo senhor de Tavarede…

            Pois é, conforme referi no princípio deste caderno, julgo que Mestre José Ribeiro foi buscar este oitavo à mesma fonte onde eu fui quando descrevi a genealogia dos morgados tavaredenses: aos cadernos do Dr. Mesquita de Figueiredo. Outros autores também terão cometido o mesmo erro

            Na verdade, e como já atrás está referido, houve um dos considerados senhores de Tavarede que não foi empossado com este título, devido a ter falecido em vida de seu pai. Exactamente a mesma situação que encarei quando da instituição do morgadio. Considero que o primeiro morgado de Tavarede terá sido o segundo senhor de Tavarede. É que, quando o rei D. João III validou o pedido da constituição do morgadio feito por António Fernandes de Quadros, já este havia falecido, razão que considero mais que válida para não o considerar como o primeiro morgado. Simples pormenores de um curioso.

            Este Fernão Gomes de Quadros e Sousa, que nascera no período entre 1705/1710, era filho de Pedro Lopes de Quadros e Sousa e de D. Madalena de Mendonça, os quais faleceram, respectivamente, em 29 de Agosto de 1751 e em 18 de Janeiro de 1749. Presume-se, todavia, que tomou a administração da Casa de Tavarede, conjuntamente com seu pai, quando casou por volta de 1730.

            Foi sua esposa D. Beatriz Josefa da Silva e Castro, nascida em Santarém, filha de António Leite Pacheco, tenente de cavalaria e, mais tarde, capitão de-mar-e-guerra, na Índia, para onde tinha ido degredado, e de D. Joana Madalena da Silva. Não deixa de ser curioso este facto: a junção de sangues, um do carácter violento e despótico do fidalgo tavaredense, e a violência assassina de seu sogro. Esta junção terá originado o carácter bestial e sanguinário do primogénito do casal.

            E vou socorrer-me, uma vez mais, do Dr. Pedro Quadros Saldanha e do seu trabalho ‘A Casa de Tavarede’. … se com seu pai começou a reconversão de parte do património da Casa de Tavarede, exigida pelo crescimento populacional da Figueira, durante a administração de Fernão o ritmo da concessão de terrenos foi acelerado. Mas, se com Pedro Lopes de Quadros este processo não trouxe grandes implicações, para além do aumento do rendimento, com o seu filho as consequências foram enormes. Para além da alteração de parte das características económicas da Casa, houve uma radical mudança de atitude na sua administração. Esta forma fácil de obter rendimento, aliada ao crescimento da riqueza nas redondezas, levaram Fernão de Quadros a iniciar um período de dissipação e de gastos excessivos, sem dúvida facilitado pelo seu carácter. Como veremos, este período deixou marcas que se saldaram, para sempre, numa perda de influência…

            O casal teve quatro filhos:
            - Pedro Joaquim Lopes de Quadros e Sousa, que nasceu a 5 de Novembro de 1731;
            - António Leite de Quadros e Sousa, nascido em 16 de Janeiro de 1738;
            - D. Joana Madalena da Silva e Castro, que nasceu em 29 de Julho de 1740; e
            - Joaquim Leite de Quadros, nascido no dia 14 de Agosto de 1742.

            No capítulo seguinte desenvolverei a história dos três filhos primeiros, uma vez que o último morreu ainda criança.

sábado, 11 de agosto de 2012

Teatro da S.I.T. - Notas e Críticas - 40


1971.09.22     -     A FORJA (MAR ALTO)

                Alves Redol faz girar o conflito que separa e isola e destrói os personagens, uma família, à volta de três temas centrais: a perseguição cega de um objectivo materialista com fim único da vida (no caso de “A Forja”, a compra de uma casa); a decepção da mulher perante o homem outrora amado, decepção que ela pretende ultrapassar centrando o amor de mãe no filho mais novo, a esperança na vida renovada; e o inelutável fracasso da vida se o homem abandona o seu destino em mãos alheias (mesmo que sejam as do próprio pai).
                O dramatismo da peça adensa-se porque Redol lança mão não de um mas de dois sentimentos profundos: o materialismo cego do pai e o excessivo amor da mãe.
                Redol segue a lição de Balzac, que introduziu na literatura o tema da importância vital do dinheiro na vida.
                Balzac concentra, digamos, o amor ao dinheiro e aos três filhos numa personalidade, no pai, em Goriot. Redol serve-se de dois personagens para dar figuração àqueles sentimentos. O “père Goriot” é mais humano: o amor às filhas vence as preocupações do dinheiro. Talvez propositadamente Redol só dá rapazes ao casal desgraçado, assim isolando ainda mais o “pai”.
                Mas a densidade do dramatismo da peça de Redol ressalta ainda num traço próprio da alma portuguesa, a visão exagerada do trágico da existência, que nos atraía Unamuno, o genial espanhol, um dos estrangeiros que mais nos admirou e amou.
                Este elemento, a visão exagerada do trágico da existência, é sabiamente explorado por Redol.
                A intensidade dos sentimentos, o apego do pai à forja, fonte do dinheiro que permitirá a compra da casa; a decepção da mãe, que a leva a centrar toda a capacidade de amar no filho mais novo, e quase cega para o plano inclinado em que a família, como um bloco, rola para a destruição, desenham estas figuras a traços fortemente marcados, diremos mesmo, excessivamente acentuados.
                Redol fez uma peça para portugueses, é certo, para gente que, como o “pai” da “Forja”, aceita o trágico da existência, a força do destino, como ele repete. Mas não terá Redol perdido, dalguma maneira, o sentido da medida? Não terá ele ido um pouco além? Não quererá Redol, com este apontar da resignação ao trágico da existência, criticar, mostrar o absurdo deste sentimento? Redol parece dizer, através do “pai”, que o homem deve ser indiferente ao destino, deve lutar sempre, como um homem autêntico. A morte do “pai” às mãos da “mãe” parece deixar crer que o homem será castigado se viver alheio a tudo, ao seguir cegamente uma paixão. O “pai” sente que fracassou por se ter fixado, abandonado a vida de vagabundo. Também aqui Redol aflora um tema trágico: o das paixões amorosas intensas, fonte de infelicidade.
                No fundo, este entrechocar de temas e sugestões, Redol talvez queira dizer que na miséria, entre gente esmagada por dívidas, sacrificada pelo trabalho, mal alimentada, a luta acaba na auto-destruição. O trabalho só por si, bem no fundo, nada resolve, é inútil o esforço.
                Todavia, esses excessos de Redol, homem de sentimentos profundos, homem que talvez se revoltasse contra uma visão dominadora do trágico da existência, não prejudica a peça. Sentimo-nos opressos pelo dramatismo de Redol, mas não nos cansamos.
                A arte de Redol surge a toda a luz no perdão que concede aos pais, na simpatia pelo povo, o povo humilde, por vezes endurecido por séculos de miséria e opressão.
                Certo que Redol humaniza por vezes a ferocidade dos dois desgraçados. Fá-lo, porém, episodicamente, em lances propositadamente rápidos. O ambiente bravio e tormentoso em que o conflito se desenvolve, em tom ora colérico ora lamentoso, ameniza-se por vezes instantâneamente, como acontece nas grandes tempestades. Mas desde logo a cólera, o ódio, o desencanto retomam os seus direitos. Tudo isto é dado com uma arte, um poder, uma força latente que a encenação de José Ribeiro nos parece ter servido fielmente.
                As aproximações e os distanciamentos das figuras estão bem marcados, conjuga-se bem o texto com a movimentação dos personagens.
                Se aqui e ali se notam certas hesitações, uma ou outra rigidez de atitude, tudo incipiências próprias duma primeira representação, a movimentação das figuras, o ritmo global da representação foi francamentre bom. As aparições da “Morte” são momentos de grande beleza rítmica e de intensa densidade emocional.
                A presença de Violinda Medina garantia, a priori, um êxito para a peça; mas a actuação de sábado excedeu a expectativa. Uma notável representação da excelente amadora, que se elevou há muito tempo a um nível invulgar. Todo o dramatismo da figura difícil e atormentada de uma mãe vergastada por sentimentos contraditórios é transmitido com sobriedade, delicadeza e verdade.
                João Medina, no pai, enquadra-se num esquema simples, que aceitamos, porque o sentimos emanado do texto e da encenação, mas a que pomos algumas reticências. Não poderia haver menos rigidez nas atitudes, com mais frequência? O clima geral da peça, o vigor do texto, a força da movimentação dos personagens não permitiriam atenuar a dureza das atitudes individuais?
                Mas, digamo-lo sem reservas, Violinda e João Medina quase se igualam no vigor, na firmeza com que nos deram uma noite de teatro de aplaudir.
                José Medina e João de Oliveira Júnior, dois dos quatro filhos, souberam também acompanhar o nível da representação. E nisto está o seu melhor elogio. João de Oliveira Júnior é o elemento consciencioso de sempre, a um tempo sóbrio e brilhante, e José Medina sustentou bem – e valorizou-as – cenas que poderiam afrouxar nas mãos de um amador menos bem dotado.
                Os restantes surgem como peças secundárias mas nem por isso menos essenciais ao equilíbrio do conjunto. Que nunca tivessem claudicado com manifesta evidência, é mérito deles e duma encenação cuja mão firme e sabedora está sempre presente.
                As virtudes desta peça de Redol e deste grupo de magníficos amadores poderiam levar-nos mais longe, mas cremos que estas linhas serão suficientes para dar ideia da valia do espectáculo de sábado em Tavarede, e que o público soube compreender.

1971.09.22     -     A PALESTRA DE JOSÉ RIBEIRO (MAR ALTO)

                Antes da representação, o director do grupo fez aos associados da SIT a sua palestra, como habitualmente na estreia das peças.
                Depois de Molière com o seu imortal Tartufo, onde a rir se dizem coisas muito sérias, desejou-se dar aos tavaredenses um original português – e aqui temos Alves Redol com a sua Forja, obra notável de êxito invulgar no nosso teatro.
                Dando fugídio resumo da peça, de forte realismo marcado de valores simbólicos, referiu as várias representações da peça por profissionais e amadores, no continente e em Moçambique, aludiu à diversidade de encenações que teve, de que só pode fazer ideia pelas críticas, pois as não viu, mas por estas críticas podendo concluir-se que essas encenações foram de diferentes estilos e diferentes processos, umas de mais vincado simbolismo, outras dando arrojado teatro de vanguarda, com escadas exteriores e interiores com estrados e degraus, com diferentes jogos de luz e de som, - em todos, afinal, usando-se da liberdade que aos encenadores o próprio autor outorgou: “Ficará a liberdade de concepção para os que queiram fazer representar esta tentativa de teatro”. Referiu-se ao coro que Redol, em sugestão da tragédia grega, meteu na sua Forja, aqui ainda mais actuante, coro que nas várias encenações foi utilizado de diverso modo – coro misto, coro feminino, vestido de cores várias e actuando em bailado, e até suprimido e substituído por um cantador de baladas. Muito de leve aludindo às figuras da peça, que Alves Redol recreou numa evocação dos seus familiares que ele sentiu ou adivinhou a queimarem-se na forja dos Venâncios, referiu-se a uma personagem de primacial valor na acção – a Morte, a “noiva branca”, que aos condenados da forja aparece como “uma figura de beleza apetecida, uma mulher que seduz sem violência”.
                A propósito de as críticas terem notado na Forja de Redol influências de Lorca e de Brechet, e lembrando outras palestras anteriores em que se falara aos tavaredenses dos estilos e das técnicas do teatro medieval, clássico e burguês, muito resumidamente referiu a técnica brechtiana da distanciação, o teatro épico, oposta à forma dramática do teatro: nesta, o teatro é activo, o actor toma o lugar do próprio personagem, o espectador sente a acção, é arrastado para ela; o teatro épico é narrativo, nele o actor não representa, não sente a acção, narra-a e o espectador não é imiscuido na acção, analisa-a e toma posição.
                Que se fez aqui em Tavarede ao trazer ao nosso povo esta obra pujante de Redol, esta humaníssima tragédia, tão opulenta de beleza literária e ao mesmo tempo tão rica de linguagem teatral? Fiéis ao princípio de que sempre se deve ter em vista o público ao qual a representação se destina, procurou dar-se à representação da peça a forma de melhor a fazer chegar, na sua totalidade, ao público da nossa aldeia, sem lhe diminuir o vigor de tragédia humana e sem lhe reduzir os seus valores simbólicos. Certamente, a linha de encenação realista que se adoptou será diferente das que até agora foram seguidas. Mesmo assim, a consciência diz-nos que não atraiçoámos Alves Redol, antes o quisemos dar ao povo desta aldeia, com humildade, sim, mas com perfeito sentido de dignidade. Queremos que os actores tavaredenses sintam as suas personagens, que sejam elas próprias na ficção cénica; desejamos que o público que aqui veio sinta a peça em toda a sua profundidade e extensão – e desejamo-lo com a certeza de que esse deixar-se arrastar na acção de modo algum o impedirá de tomar partido. Bem entendido que também em Tavarede se usou um pouco da liberdade que Alves Redol concedeu aos encenadores da sua Forja. Mas tudo se fez precisamente para servir Alves Redol. Grande romancista, eis Alves Redol um autêntico dramaturgo; e sendo moderno, permitindo à sua Forja – e pelo visto com êxito excepcional – as mais arrojadas encenações, a verdade é que esta sua peça está cheia de indicações de movimento e psicológicas, de pormenores de interpretação, de rubricas que inteiramente esclarecem o pensamento do autor. O que fizemos foi seguir essas rubricas, que tão completamente iluminam o admirável texto.
                A terminar, pediu-se aos tavaredenses que lessem o prefácio da Forja – duas dúzias de páginas fulgentes da melhor literatura contemporânea.

1971.09.23     -     “A FORJA” (A VOZ DA FIGUEIRA)

                Marcada para 26 de Junho último, só agora foi possível levar à cena esta peça, afastados que foram os motivos impeditivos da sua estreia na data primitivamente marcada.
                No pretérito sábado, as luzes da ribalta do airoso teatrinho da Sociedade de Instrução Tavaredense mais uma vez se acenderam, desta feita para nos proporcionar um tema português, de um grande escritor português – “A Forja”, de Alves Redol.
                Mestre José Ribeiro, que há largas décadas conduz com mão firme e sabedora a nau da secção dramática da Sociedade de Instrução Tavaredense, antes do pano subir, explicou que depois do grupo ter dado aos seus associados o célebre “Tartufo” do clássico universal Molière, apresentava agora aos tavaredenses uma obra notável de um escritor português, quase que do estilo burguês pelo assunto e pela forma de apresentação, contendo em si algumas marcas de teatro moderno ou o coro da tragédia grega.
                Alheando-se das várias encenações que desconhecia – disse – os tavaredenses pegaram na peça de Alves Redol com muito carinho e muito humildemente, para apresentar ao povo de Tavarede tal como Alves Redol a escreveu e sentiu, guiando-se apenas pela intenção do autor cuja peça considera como uma obra prima da moderna dramaturgia portuguesa.
                “A Forja” é uma tragédia rústica com princípio, meio e fim, um fim triste como é próprio de todas as tragédias, um fim que se adivinha, antes do pano descer para o primeiro acto.
                O Malafaia, ferreiro de profissão, mau, tiranete e rezingão, vivia obcecadamente para a sua forja, alheando-se da saúde dos filhos que, agarrados ao malho e à bigorna, dia a dia iam tuberculizando.
                Da voragem da forja salvar-se-iam o António que fugiu de casa, a conselho do João, já com encontro marcado com a morte para a Primavera, e o Luís – o mais novo – a quem o pai sarcasticamente apelidava de “doutor-ferreiro” e lhe queimava os livros.
                João Medina, no papel de pai, teve uma interpretação à altura de qualquer profissional consagrado, sem incorrer em exageros de dicção ou de gestos.
                Violinda Medina e Silva, a mãe extremosa e esposa sofredora que tudo suporta por amor dos filhos, foi igual a si própria: mãe e esposa como tantas que a vida nos oferece a cada passo.
                João de Oliveira Junior, José Medina, Saul Pereira e José Manuel Pinto, são os quatro filhos do casal que odeiam o pai e que estremecem a mãe, a sua “capa de misericórdia”.
                Lucília Pinto e Ana Cristina Oliveira, compõem discreta e graciosamente uma “vizinha” e a “Morte”.
                O cenário, cujo autor desconhecemos, é de perfeita concepção artística.
                Parabéns à Sociedade de Instrução Tavaredense, a mestre José Ribeiro e aos amadores tavaredenses por mais esta magnífica peça que proporcionaram aos amantes de bom teatro.