terça-feira, 21 de outubro de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete. 98

         Sob o título ‘Todo o mundo é actor em Tavarede’, a revista plateia publicou uma reportagem sobre a nossa terra e sobre o nosso teatro. Numa pequena aldeia, a oito quilómetros da Figueira da Foz, existe um povo que “tem necessidade” do Teatro. Tirar-lho seria destruir uma tradição recebida dos antepassados e que os presentes querem entregar, valorizada, aos vindouros. Em Tavarede, assim se chama a aldeia, todo o mundo ama o teatro e é actor.
         Há 66 anos, já se havia apagado há muito na memória dos tavaredenses a lembrança da antiquíssima vila de Tavarede que, em tempos, fora sede de importante Couto e campo de acesas lutas de predomínio, entre os Cónegos da Sé de Coimbra, donatários da povoação, e os Quadros, senhores da Casa que António Fernandes de Quadros fundara no recuado século XVI. Da sua velha importância, cedida à jovem cabeça de concelho, a Figueira da Foz, bafejada pelo mar e enriquecida pelo comércio, apenas restava um “aglomerado de poucas e humildes casas de humildes criaturas que viviam de cavar a terra e de trabalhar nos ofícios, sem proprietários abastados (a maioria dos agricultores amanha terras de renda…) nem brasileiros com dentes de ouro e algibeira recheada (a árvore das patacas nunca mandou os seus frutos à terra do limonete)”.
         Foi nesta pequena, pobre e acanhada aldeia de menos de mil habitantes que um grupo de homens de humilde condição, tomou a iniciativa de fundar a Sociedade de Instrução Tavaredense. A acta da fundação, datada de 15 de Janeiro de 1904, está assinada por dois pedreiros, um tanoeiro, um serralheiro, um carpinteiro, três cavadores, um ferreiro, dois ferroviários, um canteiro e um comerciante.
         A Sociedade “é uma associação essencialmente destinada à instrução e educação das classes populares”, segundo o artigo primeiro dos seus estatutos. Para realizar os seus fins, servir-se-á da escola nocturna e gratuita “para ensino dos sócios que dela queiram utilizar-se, e para ensino dos filhos destes” e, “como elementos educativos de recreio – afirma-se no artigo terceiro – terá uma biblioteca e utilizará o seu teatro, mantendo uma secção dramática”.
         “Não obstante o meio acanhado em que exerce a sua acção, tão pobre de recursos materiais como humanos, vencendo as naturais dificuldades no recrutamento de pessoal numa aldeia tão pequena como a de Tavarede, a Sociedade de Instrução Tavaredense mantém o seu grupo cénico em actividade permanente desde há mais de cinquenta anos. Durante este longo período, renovando todos os anos os seus espectáculos teatrais – refere o programa das festas comemorativas do 66º aniversario da fundação da colectividade – a Sociedade de Instrução Tavaredense deu teatro ao povo da sua terra, falou-lhe de teatro, procurou interessá-lo pelo teatro, ensinou-o a amar o teatro – mesmo contra as dificuldades que se lhe opunham e apesar das solicitações que modernamente desviam as populações, sem excluir as das freguesias rurais, para outro género de divertimentos”.
         “Em certos casos, é sobre os elementos que constituem os grupos de amadores que mais profundamente actuam a função educativa e cultural do Teatro. No caso da Sociedade de Instrução Tavaredense, por exemplo. Tenha-se presente que se trata dum grupo de amadores duma humilde e pequena aldeia, pobre entre as que o mais são. O recrutamento é difícil, porque a população é pequena. São bem poucas as famílias que não têm representação no elenco. Aqui se encontram os trabalhadores do campo e das oficinas: rapazes e raparigas que passam o dia cavando as terras e vêm à noite ao ensaio, operários, carpinteiros, pedreiros, serralheiros, raparigas dos alfaiates e das modistas da cidade vizinha, um ou outro empregado de escritório também”, explica-nos José da Silva Ribeiro, de 76 anos, crítico teatral, autor dramático, ensaiador do grupo cénico e empregado de escritório
         Ele tem sabido descobrir, na rusticidade de modestos aldeões, o sentido belo de um teatro todo feito de amor e dedicação. Autodidacta, ensinou o povo da terra que o viu nascer, a amar, de modo diferente, a difícil e bela arte de Talma. Solidário com os humildes, dedica as poucas horas vagas “aos homens da enxada que cavam o amargo pão de cada dia em terras que não são suas”.
         “Se se pretende alguma coisa mais do que mexer fantoches para divertir o público; se desejamos que os intérpretes tomem consciência das respectivas personagens, dos sentimentos que lhes são alma, das ideias que as determinam, da época que vivem, do ambiente em que se movem, teremos de adoptar processo bem diferente do que se usará com elementos de outra cultura. Por isso, aqui, o grupo cénico participa da disciplina escolar e do prazer dum passatempo”, escreveu José Ribeiro no prefácio de “Chá de Limonete”, uma fantasia em 3 actos e 24 quadros, especialmente composta para ser representada pelo “seu” grupo cénico.
         No ambiente sóbrio e acolhedor da sua casa em Tavarede, quadros de Alberto Lacerda, Zé Penicheiro, Belmiro Amaral, Paula Campos, Edmundo Tavares e outros “convivem” com retratos que são recordações de família. Nas estantes, obras completas de Luís Francisco Rebelo, Gil Vicente, Marcelino Mesquita, Lopes Mendonça, Molière, Shakespeare, Redondo Júnior ou Brecht.
         Não sabe falar de si. Só lhe interessa a Sociedade de Instrução Tavaredense.
         “O grupo de amadores de Tavarede, pela sua constituição e pelo público para quem especialmente representa, não pretende sair do seu lugar de grupo de amadores rurais, onde permanece com plena humildade e perfeita consciência da utilidade da acção que exerce”, - explica o ex-chefe da redacção do extinto semanário da Figueira “A Voz da Justiça”.
         “Na Sociedade de Instrução Tavaredense – continua – não se ensaiam peças para concurso, isto é, não se fazem coisas para júri ver. A actividade do grupo de Tavarede não visa a finalidade do concurso. Os prémios? Mas… sem dúvida nenhuma que servem para inchar umas tantas vaidades e alimentar despeitosas rivalidades que chegam a transbordar nas colunas dos jornais. Se, algumas vezes, atendendo honrosos convites e sempre com total desinteresse, o grupo deixa a sede e vai representar para outro público, leva as obras que deu ao povo da terra. Não tem outras – pois não escolhe nem ensaia peças tendo em vista a cultura e a exigência de outras plateias”.
         Actor aos dez anos, ensaiador desde 1916, José Ribeiro apenas conheceu os interregos da guerra, duma ou outra doença, de determinados impedimentos.
         “Enquanto for vivo e puder, Tavarede terá teatro. Depois… o problema já não será meu”, - conclui, com um sorriso.
         “Examinando a lista das peças representadas, verifica-se que o reportório do grupo cénico foi subindo de categoria, incluindo obras cada vez de maior responsabilidade. Os elementos do grupo cénico foram afirmado as suas qualidades e a sua técnica, e é inegável que a sua actuação influiu no gosto do público, cuja evolução não pode ignorar-se. Em Tavarede, aonde, aliás, também chega a influência do futebol e do mau cinema, existe um público que vai ao teatro por prazer e tem paladar de certo modo apurado, não obstante ser um público simples, aldeão, de instrução e cultura rudimentares” pode ler-se no livro das bodas-de-ouro da Sociedade.
         Tavarede vive para o Teatro. Na sede, construída pelo povo, com a ajuda da Fundação Calouste Gulbenkian, o teatro tem lugar de honra. Quase todas as noites, de Inverno ou de Verão, esteja frio ou haja calor, os ensaios começam às 21,30 e prolongam-se “sem o protesto de quem, no dia seguinte, tem de entrar no emprego às 7,30”.

         Legendas das gravuras: Sede: Sede da Sociedade de Instrução Tavaredense, uma obra feita pelo povo, com o patrocínio da Gulbenkian. Aqui, Tavarede ensaia, representa, convive e descansa nas horas vagas. José da Silva Ribeiro: uma vida inteiramente dedicada ao teatro de Tavarede. Violinda Medina e Silva: Com 65 anos e a viver na Figueira da Foz, Violinda Nunes Medina e Silva nunca falta a um ensaio. “para lá vou na camioneta da carreira e, no fim, vêm-me trazer de carro ou de lambreta” - explica. Casada com Adriano Augusto da Silva, contra-regra e aderecista, aos 71 anos, considera o Teatro “como uma verdadeira escola. Uma autêntica universidade quando se possuem mestres da categoria de José Ribeiro”. Amadora, aos 13 anos, tem sido quase sempre a principal personagem feminina das peças que o grupo tavaredense tem levado à cena. João de Oliveira Júnior: É o “mau” do grupo. “Como ninguém gosta de fazer os papéis antipáticos e eu não me importo, sou sempre o escolhido”. Chama-se João de Oliveira Júnior, tem 49 anos e estreou-se, há cerca de 35 anos, “numa peça em que apenas dizia três palavras”. Escriturário de 1ª classe, com funções de encarregado do Armazém Regional da CP, na sede do concelho, é pai de uma jovem “que também faz teatro sempre que pode”. Representar traz grandes benefícios tanto para as relações humanas como para uma cultura geral. “Tenho renunciado a horas de descanso e a dinheiro para poder estar presente em todos os ensaios” – conclui. Maria Inês Barosa Lavos: Empregada de escritório, num armazém de mercearia, Maria Inês Barosa Lavos entrou para o grupo de Tavarede há cerca de cinco anos, mas “já fazia teatro quando andava na escola primária”. “Sempre gostei muito de Teatro – afirma – e só é pena um dia não poder vir a ser profissional”. Aos 26 anos, espera casar e, “se possível, continuar a representar. Não posso abandonar facilmente uma coisa que me tem dado tantos momentos de alegria e me tem ajudado tanto”. “Dente por Dente”, de Shakespeare foi a peça que mais adorei”. Fernando Severino dos Reis: “O Teatro faz parte da minha vida. Chega-se a uma altura que já não se pode passar sem ele”. Fernando Severino dos Reis tem 57 anos. Faz teatro desde os 14 e a filha também representou várias vezes, “mas por causa do casamento teve de abandonar. Foi pena porque o teatro faz muito bem às pessoas” – explica. Chefe de brigada da secção de carpintaria da CP, na Figueira da Foz, levanta-se todos os dias às seis horas para poder estar no emprego às 07,30, “mas – comenta com orgulho – isso nunca será motivo para se deixar os ensaios”. José Luís do Nascimento: José Luís do Nascimento, carpinteiro, tem 50 anos e é pai de dois filhos. Natural de Brenha, uma aldeia vizinha de Tavarede, começou a fazer teatro na “Trupe Recreativa Brenhense” onde conheceu José Ribeiro “numa ocasião em que ele foi lá dar os últimos retoques a uma peça”. Nascimento afirma que representará “enquanto tiver forças para o fazer. O teatro deu-me um á-vontade muito grande e grande facilidade de conversa: não tenho medo de falar com um médico ou com um advogado”, - explica. Maria Teresa de Oliveira: Irmã do encenador, Maria Teresa da Silva Oliveira começou a representar aos 11 anos, em “Espadelada”, uma espécie de opereta muito simples. Aos 65 anos, considera que o teatro “é muito útil para a cultura geral e insubstituível nos intervalos da minha vida de dona de casa”. João Rodrigues Medina: Aos 38 anos, João Rodrigues Medina gostaria que o seu filho, de sete, continuasse a herança que ele já recebeu do pai. Natural de Tavarede, desloca-se todos os dias para a Figueira, onde é proprietário duma pequena barbearia, num dos principais largos da cidade. Amador há 22 anos, considera que o teatro “como se faz em Tavarede, é muito útil para as pessoas. Aprende-se muita coisa que, de outro modo, nunca se conseguiria”. João da Silva Cascão: “O Teatro é a minha segunda casa. E não o é mais porque a saúde e a idade já não me permitem muitas brincadeiras” – afirma João da Silva Cascão, natural de Tavarede, mas, actualmente, a residir na Figueira da Foz, onde é proprietário duma pequena serralharia de quatro empregados. Actor sem interrupção, desde os 18 anos, começou a representar porque “era a única maneira do pai (César da Silva Cascão, um dos fundadores do grupo) me deixar sair à noite”. Agora, aos 65 anos, “só pode ser uma rábula pequena para o nome vir no programa. Já tenho muitas dificuldades em decorar e ouvir o ponto”. José Lopes Medina: Casado, com 30 anos, José Lopes Medina representa desde os 15 anos. “Para a cultura foi a melhor coisa que poderia ter conseguido. A minha familia tem largas tradições no grupo e, por isso, eu não poderia deixar de representar”. Convidado, para um “teste” pelo “Teatro Experimental do Porto” a sua vida profissional (sócio gerente duma casa de artigos electrodomésticos, impediu-o de aceitar a proposta. “É uma pena – comenta – que todas as terras não tenham o seu grupo teatral”. António Manuel Morais: Tem 17 anos e frequenta o sétimo ano do liceu. Filho dum segundo oficial, chefe da secção do Grémio dos Armadores de Pesca da Sardinha, e duma professora primária de Tavarede, foi para o grupo “por saber que era dirigido por um homem de talento que sabe muito de teatro”. Grande apaixonado da fotografia e da música considera o Teatro “como uma evasão e uma fuga”. O profissionalismo é hipótese a considerar e, quando em Outubro for para a Universidade (estudar Direito) tentará o teatro universitário. Rosa Maria dos Santos Rodrigues da Silva: Tem 17 anos e é a mais velha duma familia de sete irmãos. Aprendiz de costureira numa fábrica de malhas foi para o teatro pela mão da Maria Inês. Natural de Cacia (Aveiro) vive há seis anos no Casal, uma aldeia que dista de Tavarede cerca de meia hora. “Nunca faltei a nenhum ensaio a não ser quando estou doente”. Ser actriz profissional é o grande sonho da sua vida.

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