sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Operetas em Tavarede - 32

         Regressemos, por momentos, à história. Para acabar de vez com a luta centenária entre os fidalgos de Tavarede e o cabido de Coimbra, o Rei D. José I resolveu mudar a câmara da nossa terra para a Figueira. Foi no ano de 1771. “Eu El-Rei faço saber que hei por bem erigir em vila a lugar da Figueira da foz do Mondego; e criar nela o lugar de Juiz de Fora do Cível, Crime e Orfãos; que terá por distritos os coutos de Maiorca, das Alhadas, de Quiaios, de Tavarede e de Lavos; as vilas de Buarcos e Redondos, etc. etc.”. A partir de então, Tavarede perdeu todo o seu poder e todas as suas seculares regalias. Já nem por vila a tratavam...


 Lamentos da Vila de Tavarede - Chá de Limonete

 Vila de Tavarede -                
Ribeiro de claras águas
Que para o mar vais correndo,
Contigo levas as mágoas
Desta dor que estou sofrendo.

P’rà Figueira vão mudar
Minha Câmara velhinha,
E de Vila eu passarei
A ser aldeia mesquinha.

Coro das Povoações -             
Ó Vila de Tavarede,
            Põe luto no teu brazão:
            Rasgaram a tua história
            Desprezando a tradição.

            Lugarejos que nós somos
            E te respeitamos por mãe,
            A afronta que te atingiu
            Nós a sentimos também.

Vila de Tavarede -               
Das regalias que tive
            Uma longa história fala.
            Fui senhora tantos séc’los
            Para agora ser vassala!

            Vila antiga como eu fui,
            De nobreza verdadeira,
            Esquecem meus pergaminhos
            Para dar honra à Figueira.

            Coro das Povoações -            
           Ó Vila de Tavarede,
            etc.etc.etc.

Durante largos anos, ainda a nossa terra continuou com seus fidalgos. No entanto, sem o poder de que dispuzeram e de que tanto abusaram, acabaram, nos finais do século dezanove, já então com os títulos de barão e conde de Tavarede, por irem residir para a vila de Trancoso, onde igualmente possuiam grandes propriedades. Aqui, pouco depois, venderam o que possuiam. O seu velho solar, que durante séculos recebera, em festas deslumbrantes, toda a fidalguia das redondezas, foi-se, pouco a pouco degradando até chegar àquela ruína que conhecemos.


O velho Palácio de Tavarede - Chá de Limonete
   
O Velho Palácio -             
Já se não ouve o cravo a tocar...
            Parou a dança. Desfizeram-se os pares,
             apagaram-se os risos e folgares,
             - mas não parou o tempo em seu rodar...
             Nesse rodar do tempo, incessante,
             em scombros e pó desaparece
             a torre com ameias, arrogante...
             E hoje quem me vê não me conhece!
(Vem ao limiar do portão, sem o transpor)
             É verdade! o Palácio tão falado
             da velha Tavarede - aqui o tens
             reduzido à ruína pelos desdéns
             dos homens e do tempo já passado...

             Ai! o que eu fui, e no que estou mudado!
(Avançando dois passos, e saindo do portão)
            Quatro séc’los me pesam sobre os ombros!
            E nesses longos anos vi grandezas,
            vi ruir opulências em escombros,
            vaidades, alegrias e tristezas...

              Fui torre altaneira, medieval,
               onde o Fidalgo, senhor absoluto,
                julgando-se em poder senhor feudal,
                levou, sob’rano, um viver dissoluto.

                 Mudaram-me depois a minha traça,
                 deram-me um pátio nobre e bons salões,
                 e o terceiro Conde deu-me a graça
                 das agulhas, janelas, torreões...
(Transição)
                 Sinto na alma saudades torturantes
                 dos serões e das festas ruidosas,
                 com luzes, flor’s e pratas cintilantes,
                 veludos, sedas, pedras preciosas...
(Pausa)
                Que resta do que fui?... Ai! triste sina
                a do solar que é hoje um mutilado,
                mendigo esfarrapado, uma ruína,
                - horroroso fantasma do passado!...

                 Eis o que sou. Ninguém me queira ver!
                 Não existo. De mim não falem mais...
                 Deixai-me assim em paz apodrecer
                 no chiqueiro infecto dos currais...


         Mestre José Ribeiro já não viveu o tempo suficiente para ver reconstruído o paço dos Condes de Tavarede. Outras coisas, que ele tão bem descreveu, também já desapareceram da nossa terra. Durante anos e anos, Tavarede, com as suas várzeas verdejantes, com os seus vales de terras fecundas, enchia todos os dias o mercado da Figueira. Com a cesta à cabeça, com as tenrinhas couves e as delicadas novidades, e ramos de flores, muitas flores que, por toda a nossa terra, abundavam, lá seguiam as vendedeiras, manhã cedo, caminhando alegremente a caminho da cidade. Agora, resta-nos a saudade. Poucas são as terras, outrora tão produtivas, que ainda são amanhadas... Até quando?...

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Operetas em Tavarede - 31

            Hino da Madrugada           

              Madrugada!                     
               Apagam-se as estrela no azul do céu
              e a alvorada
              acende os primeiros clarões, rasgando o véu,
              suavemente,
              que cobre a terra adormecida.
              Folhagens sonolentas do arvoredo
              mansamente
              despertam
              ao brando voejar do passaredo.
              Como um clarim vibrante, o melro deu sinal
              pelas campinas
              a assobiar matinas,
              e a alegre e descuidosa cotovia
              responde-lhe a sorrir: - “Bom dia!”

              Subindo,
              luzindo
              no doirado nascente, o sol aquece
              a terra friorenta, que estremece
              de incontido desejo
              ao receber na luz que vem dos céus
              a carícia do beijo
              fecundante - que é dádiva de Deus.

              Já toda a aldeia acordou!
              Raparigas alegres como cantigas,
              frescas qual água das fontes;
              velhos, que a dura vida já curvou
              e rapazes ainda erguendo as frontes,
              indif’rentes
              ao peso da sua enxada,
              - sorridentes
               caminham, alma pura e lavada,
              ao seu destino, à terra dura da encosta
              onde vive a cepa do perfumado vinho
              que conforta,
              à leira fresca onde viceja a horta,
              ao frondoso lugar de verde pinho,
              à seara aloirada onde o trigo amadura
              e promete fartura.

              Um novo dia alvorece
              na paz e na saúde do trabalho da terra.
              Há luz, há alegria, sente-se a vida pura
              em todas as belezas que a Natureza encerra.
              Da árvore frondosa e da urze do monte,
              do mísero insecto que p’lo chão rasteja
              ou com asas de luz no espaço voeja,
              do espelho dos lagos, do murmúrio da fonte,
              do cardo ressequido e da flor mais louçã,
              do doce gorgear das aves nas alturas
              e das vozes da alma das frágeis criaturas,
              ergue-se, luminoso, o hino da manhã!

              Bendito seja o Sol,
              fonte da Vida, que de luz inunda
              a Terra, e a fecunda!
              Bendita a Terra-Mãe
              que ao homem dá o pão
              e dá à abelha o mel
              e à ave o pequenino grão!
              Benditas sejam as águas
              dos ribeiros e das suaves fontes
              que, chorando suas mágoas,
              descedentam as bocas e dão a seiva à planta!
              Bendita a ave que canta
              e o paciente boi que a terra lavra!
              Bendita seja a palavra
              - Sementeira!
              Bendita a tua enxada, ó cavador,
              que sem canseira
              amanha a seara e cultiva a flor!

(Um grupo de cavadores da aldeia, enxada ao ombro, vai a caminho dos seus trabalhos)

Coro de Cavadores 
Sem ter
            canseira,
            a gente da enxada
            lá vai
            fazer
            a sementeira.

            Ao sol
            ardente,
            constante em seu labor,
            é ver
            contente
            o cavador!

            Cavar!
            cavar
            que a terra nos dá pão!

            Do vale
            à serra,
            p’la encosta subindo,
            luzindo,
            a enxada
            revolve a terra...

            Cavar!...
            Cavar
            que a terra nos dá pão!

            De inverno
            ou v’rão
            trabalha o dia inteiro,
            p’ra ter
            seu pão
            o cavador...

         Vamos continuar com as nossas recordações. Mestre José Ribeiro, também nos mostrava, em todos os seus trabalhos, alguns dos tipos e figuras mais interessantes e características. O tempo não é muito, mas recordemos, aqui, a conversa entre duas das figuras típicas da nossa aldeia, “o carreiro e o capador”.

Joaquim - D’honra! Digo-lhe isto cá de dentro! Eu quero tanto ao animal como... tenho tanta aquela aos meus bois, como se fossem meus irmãos. Ou mais ainda! Que lho digo eu.
- E tem razão, pois. Com a minha égua é a mesma coisa. Eu sou muito amigo da minha mulher, lá isso sou. Mas ainda gosto mais da égua. Mansa e segura de pernas, é minha companheira há um ror de anos e nunca me pregou uma partida. A minha mulher também não, graças a Deus... Lá isso não senhor... Mas... quando tenho capações por fora e chego a casa tarde, com um copito a mais - oh! mulher de trinta línguas! - desata-me lá num sermão que nem um padre na igreja: que não tenho juízo, que em vez de pôr arganel aos porcos devia pôr arganel a mim próprio para beber menos... - eu sei lá! E enquanto a mulher fala, fala, que nunca mais acaba, - a égua ali está muito calada, muito calada... Então eu, quando a mulher pára de falar para tomar fôlego, aproveito a pausa para lhe dizer: - Ó mulher, aprende com a égua a estar calada! - Mas isso sim!...
Joaquim - Tem razão. Os animais é como se fossem pessoas de família. Digo-lhe cá de dentro: se aquele animal me morresse, eu tinha um desgosto tão grande que até era capaz de pôr luto. O meu rico castanho! E olhe que não era por causa do dinheiro - d’honra que não era: está no Compromisso, eles pagavam. Mas os meus bois, senhor Zé da Gaita... (emendando) Desculpe, senhor José, mas é como todos o conhecem, e eu agora descuidei-me.
- Ora essa, senhor Joaquim, não tem mal. É alcunha que me ficou de pequeno... Desde que um dia apanhei uma sova do meu pai por lhe ter roubado a gaita de capador. O meu pai era capador e alveitar, como eu. Herdei-lhe a gaita e o ofício.
Joaquim - Pois sim, senhor. Isto de alcunhas... P’ra toda a gente eu sou o Joaquim do Curral, porque de pequeno me fizeram a cama no curral dos bois. Ah! Mas os meus bois! Deus me perdoe se é pecado, mas eu chego a pensar que eles são almas cristãs como a gente. Falo com eles, e eles entendem-me. Chego-lhes o pasto, e eles agradecem-me. Se estou zangado e ralho - olham p’ra mim, e aqueles olhos muito grandes e muito tristes parece que dizem: Tem paciência, Joaquim do Curral, que nós também a temos. Ainda ontem, ia o cabano a encostar-se ao toice, a ficar-se p’ra trás para arreliar o companheiro, e eu, zás! prego-lhe uma varada: “Ah! Cabano!” Ele amuou, sacudiu a canga em cima do cachaço e pareceu-me que lhe ouvi dizer: “Não sejas bruto, Joaquim do Curral”. Fiquei-me a pensar, e compreendi que o boi é que tinha razão: o bruto era eu. Por isso me dói a alma de ver o meu castanho doente. Se vocemecê não mo salva...
- Já lhe disse que lhe curo o animal. E eu sei o que digo e o que faço. Os médicos não tratam melhor as pessoas do que eu trato as bestas. E olhe que dos médicos muita gente se queixa; e de mim, nunca nenhum dos meus doentes se queixou.
Joaquim - Está bem, sim senhor. Mas olhe cá, senhor José: aquela tristeza que deu ao animal e que o não deixa comer, não será desgosto?
- Desgosto?! Porquê?
Joaquim - Por causa do carro. O animal desde que se viu com rodas de borracha caíu naquela melancolia...
- Rodas de borracha...
Joaquim - Sim, senhor. Puz borracha nas rodas do carro.
- P’ra quê?
Joaquim - P’ra quê?! Então não sabe que os carros de bois são obrigados a andar com rodas de borracha?
- Viva o progresso!
Joaquim - Qual progresso, nem qual carapuça! Uma pouca vergonha! Como se um carro de bois fosse um automóvel! Há tempo mandaram pôr luz branca e encarnada; agora foram rodas de borracha; e se calhar amanhã mandam pôr faróis na canga para fazer código, e pisca-piscas nos chavelhos dos bois para mudar de direcção...
- Para o que um boi estava guardado, ó senhor Joaquin!
Joaquim - Aros de borracha, para não se ouvirem as rodas! Qualquer dia, em vez de ferraduras, sapatos de borracha, para não se ouvirem os bois!... Não quererão mais nada de borracha?

Cega-Rega -               
Em situação encravada
            O pobre carreiro se acha...
            O carro não pode andar
            - D’honra, que não é laracha... -
            Pelas ruas a rodar
            Sem ter rodas de borracha!

            Diante duma mulher
            Quanta vez o homem se agacha...
            Para alcançar o que quer
            Vai com rodas de borracha.

            Pois o meu carro de bois
            - Esta, palavra! é de escacha! -
            Não tem ainda faróis
            Mas tem rodas de borracha!

            Em situação encravada
            etc. etc. etc.

          Os rapazes da cidade

             Usam casacos de racha;
             Elas têm mocidade
             Com postiços de borracha.

             E assim por este andar,
             Tanto apertam a tarraxa
             Que os meus bois irão calçar
             Ferraduras de borracha.

             Em situação encravada
             etc. etc. etc.

             Dizem que a civ’lização
             Assim ordena e despacha:
             - P’ra não haver confusão
             Tudo seja de borracha...

             P’ra não haver excepção
             - E ai daquele que se relaxa! -
             Carros de bois usarão
             Suas rodas com borracha.


O Associativismo na Terra do Limonete /90

         No salão superior do edifício, donde se divisa um rasgado panorama, a Direcção ofereceu aos convidados um primoroso beberete, em que mais uma vez estiveram presentes a gentileza e dedicação das senhoras de Tavarede,
         Na altura dos brindes, o pároco da freguesia, Revº. Paulo Ribeiro, usou da palavra para saudar a obra benemérita da S.I.T..
         José Ribeiro aproveitou o ensejo para referir um episódio ocorrido em tempos, com o conhecido Quim Martins, que alguém estranhara ver a colaborar com o Bispo D. Manuel de Bastos Pina, nas obras de Sé de Coimbra.
         Também ele, orador - que não era católico - e o pároco de Tavarede, eram sacerdotes de ritos diferentes, mas entendiam-se muito bem.
         E a concluir: “toda a obra cristã que o sr. Padre Paulo Ribeiro realizasse na sua igreja, era digna do seu inteiro louvor”.
         Esta intervenção foi muito ovacionada.
         Proferiram ainda palavras de admiração pela obra de José Ribeiro na Sociedade de Instrução Tavaredense, os srs. dr. Pinhal Palhavã, João Assunção Pinto e Anselmo Cardoso Júnior.

         Digno de ficar aqui registado foi o facto de, no domingo da inauguração das obras de remodelação da SIT, ter sido entregue, em casa dos pobres mais necessitados da localidade, bodo constituído por géneros alimentícios. Levada à cena pela primeira vez, aquando da inauguração da nova sala de espectáculos, em Dezembro de 1961, foi
agora publicada a peça Terra do Limonete. José da Silva Ribeiro é já, no âmbito do teatro amador, um nome de projecção nacional. É bem conhecido de todos quantos em Portugal se interessam pela cultura popular, o que tem sido o seu apostulado cívico à frente do grupo dramático da Sociedade de Instrução Tavaredense. Pois José Ribeiro acaba de publicar, mais de três anos volvidos sobre a sua representação, a peça “Terra do Limonete”, 2 actos e 24 quadros  de História e Fantasia, que é como que a continuação do Chá de Limonete, que escreveu e fez representar em 1950.
         Numa “Breve conversa fiada… em jeito de Prólogo”, com que abre o volume, formula o autor pertinentes  considerações sobre problemas do teatro amador português, sobretudo no que diz respeito à escolha de reportório. A peça ora publicada, não o insinua o autor mas afirmamo-lo nós, não representa uma das soluções possíveis para o impasse verificado.
         Com efeito, “Terra do Limonete” ensina ao povo de Tavarede a história da sua terra, desde as origens até aos nossos dias: verbi gratia “Mouras encantadas em Santa Olaia” (meados do séc. XI); “Um piloto do Infante na foz do Mondego” (2º quartel do séc. XV); “Sal de Tavarede” (séc. XV) e “O Foral de Tavarede” (séc. XVI); “A Nau dos Corsários na Baía de Buarcos” (ano de 1602); “Ciganos” e “Um Serão no Paço de Tavarede” (3º quartel do séc. XVIII). E, se o primeiro acto culmina com uma evocação literária, que vai do “Auto da Visitação” de Gil Vicente à “Menina dos Rouxinóis” de Garrett, intensificam-se no segundo os aspectos de crítica social, em jeito de revista; assim, às “Glórias Nacionais” do 5º quadro respondem “O Carreiro e o Capador” (18º), “No nosso tempo…” (19º) e “A Viúva do Fogueteiro” (22º).
         Escrito ora em prosa, ora em verso, se o autor trata a redondilha quer maior, na tradição do romanceiro, quer menor emulando Mestre Gil (pág. 107, por ex.), com incontestável felicidade, já os seus decassílabos (“O Velho Palácio”) parecem menos logrados. Mas os dois principais reparos que a obra nos merece situam-se um logo no prólogo, em que se fala do insucesso de uma peça de Synege no Teatro Experimental do Porto. E José Ribeiro comenta: “Imagine-se a peça de Synge transplantada para Tavarede…”. Permitimo-nos discordar, pois estamos firmemente convencidos de que o povo de Tavarede ou de Buarcos seria muito mais capaz de entender o teatro de raiz popular do grande dramaturgo irlandês do que a tal “plateia seleccionada”, de que o autor destas linhas também faz parte.
         O outro reparo diz respeito ao começo do 10º quadro, em que, após a versão portuguesa do “Monólogo do Vaqueiro”, se afirma: “Assim nasceu o Teatro em Portugal. Mas pouco viveu, que o levou consigo a usurpação de Castela”. Ora, José Ribeiro sabe que isso é falso! E a inexactidão parece-nos tanto mais grave quanto é certo que a sua peça tem propósitos didácticos de divulgação cultural. Não foram os Filipes que liquidaram o teatro em Portugal. Foi a Santa Inquisição, instituída justamente por aquele Príncipe, para a celebração de cujo nascimento o trovador manuelino se disfarçara de vaqueiro. Ainda muito recentemente (“Távola Redonda” nº 23), João Gaspar Simões frisava  essa ironia do destino: na mesma câmara régia, nasciam, praticamente ao mesmo tempo, o Teatro Português e aquele que o havia de estrangular quase à nascença. Mas é claro que tal reparo não invalida o viço, a frescura e o lirismo de muitos quadros, a saborosa evocação de outros, o vigor satírico de alguns, o sábio doseamento de tantos elementos dispares, que convertem o prazer da leitura em mágoa de não ter visto a peça representada, com o que supomos fazer o maior elogio ao incontestável talento de José da Silva Ribeiro.

         Colaborando nas comemorações do V Centenário do Nascimento de Gil Vicente, a Sociedade de Instrução levou a efeito um programa especial que, em Outubro de 1965, apresentou, também, na Figueira. Em espectáculo promovido pela Biblioteca Municipal Pedro Fernandes Tomás, desta cidade, que sob a proficiente direcção desse alto valor local que é o prof. António Vitor Guerra, não só cada vez mais se prestigia, engrandece e valoriza, como não desperdiça pretexto para exercer relevante e profícua acção cultural no nosso meio, veio até ao Teatro do Peninsular dar-nos uma noite vicentina, esse adnirável grupo dramático da Sociedade de Instrução Tavaredense, em que pontifica a arte, o saber, o talento, a dedicação, o amor ao teatro e o próprio espírito de sacrifício de José Ribeiro.
         E sem exagero se pode afirmar que com este espectáculo a Figueira marcou brilhante lugar de destaque nas comemorações do “V Centenário do Nascimento de Gil Vicente”, encaradas estas à escala nacional. Opinião com que, sem dúvida, não haverá ninguém discordante entre a numerosa assistência, mesmo tendo em conta que entre ela se encontravam destacadas individualidades do corpo docente da Universidade de Coimbra e até um mestre e um apaixonado do teatro vicentino como o professor doutor Paulo Quintela.
         Usou em primeiro lugar da palavra o prof. António Vitor Guerra, que encantou positivamente todos os presentes com o seu verbo fácil, elegante, em que a beleza da forma se aliou a justeza do conceito. Palavras precisas e convincentes sobre a actuação da Sociedade de Instrução Tavaredense e dos seus amadores, tanto sob o aspecto artístico como beneficente. Objectiva apreciação dos méritos de José Ribeiro nas múltiplas facetas sob que tem dado ao teatro cinquenta anos de persistente actividade, com uma isenção absoluta e uma proficiência notável. Preito de homenagem ao Homem e aos seus dotes de inteligência, de talento e de carácter e também exaltação da sua integridade moral e do exemplo de civismo que representa toda a sua vida. Louvor da obra de Gil Vicente, esse grande português que deslumbrou a Europa do seu tempo e para ler o qual Erasmo aprendeu a nossa língua. Em resumo, uma oração que só por si, na opinião de alguns dos presentes, já justificava a deslocação até ao Peninsular.
         Foi depois a vez de José Ribeiro. Um homem do povo de talento falando com compreensão, carinho, paixão e saber, de outro homem do povo, esse tocado pela centelha do génio. Um desfiar de ensinamentos que se procurou tornar acessíveis a toda a gente, independentemente do seu grau de cultura e capacidade intelectual e que para toda a gente tiveram o mesmo interesse. Uma lição sobre Gil Vicente e o seu teatro e, simultaneamente, uma lição de que de todos os assuntos se pode falar com profundidade e elevação e ao mesmo tempo com simplicidade e clareza. Assim se possuam invulgares qualidades e dotes que permitam fazê-lo. O que está por isso ao alcance de poucos.
         E com esta excelente preparação se passou a ver representar Gil Vicente, através de primorosa interpretação dos amadores de Tavarede, em “Auto da Barca do Inferno”, “Fragmentos de 4 obras vicentinas” (I – Auto Pastoril Português; II – Romagem dos Agravados; III – Breve Sumário da História de Deus; e IV – Pranto de Maria Parda) e Auto da Feira. 


O pranto de Maria Parda
  
         O teatro de Gil Vicente dos amadores de Tavarede é um teatro popular, acessível aos nobres e vilões do tempo em que foi criado e às heterogéneas plateias dos nossos dias. Dele foram, portanto, banidos todos os preciosismos, todas as manifestações de interpretação com pruridos de exótica e qualquer espécie de snobismo falsamente intelectualizado. Respeita-se assim, com consciência e honestidade, a raíz de tal criação artística e presta-se também ao autor a merecida homenagem de considerar a sua obra com mérito bastante para se impor por si própria e em circunstâncias o mais semelhantes possíveis àquelas em que Gil Vicente a fez representar. O que nos parece só merecer elogio e aplauso.
         Mas dentro deste critério quanto escrúpulo, cuidado, zelo, carinho, persistência e saber foi mister pôr em jogo para conseguir aquele milagre de assim fazer representar Gil Vicente pelos amadores de Tavarede.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

Operetas em Tavarede - 30

         Lembram-se a graça com que nos foi mostrado o velho costume das visitas feitas às amigas, à tardinha? Conversava-se e, depois, vinha a merenda: papas ou arroz com leite. E p’rás comer?

Coro -               
P’ràs amigas visitar
            Nós saímos à tardinha,
            Levando nesta bolsinha
            Que nunca deve faltar
            No arranjo da mulher,
            Uma jóia preciosa
            Que é alfaia graciosa:
             - Uma colher. (tiram a colher da bolsa que levam no braço)

            A meio da conversa vem merenda
            Que o bom costume manda que se aceite:
            Doces papas, o bom arroz com leite.
            E p’ràs papas comer vem esta prenda,
            De prata ou doutro metal qualquer:
            - Uma colher.

         Mas o nosso saudoso Mestre, nunca foi maçador nas suas lições. De maneira fácil e acessível ia-nos ensinando. Conhecedor profundo do passado da sua terra natal, tinha especial admiração e carinho para com aquela figura que foi verdadeiro símbolo tavaredense, “o cavador”. Prestava sempre a sua incondicionável homenagem à luta heróica dos humildes e esforçados trabalhadores rurais. Parece-nos estar a ver surgir em cena a veneranda figura do amador António Graça, cabeça toda branca de neve, alquebrado pela idade mas endireitando o seu esguio corpo, naquele verdadeiro exemplo de amor ao trabalho honrado. Falava, então, a Frei Manuel de Santa Clara.

         Ti João da Quinta – “Apesar de velho e criado na vida da terra, entendo as coisas. Nem todos hão-de ser cavadores, nem todos hão-de ser artistas. O que é preciso é que todos trabalhem! Mas custa-me ouvir dizer que têm vergonha da enxada. Porquê? A enxada não deve ser vergonha p’ra ninguém! Eu gostava que o cavador pudesse andar par a par com os outros, soubesse ler e escrever, que não passasse as noites na taberna, que vestisse o seu fato lavado e puzesse a sua gravata ao domingo... Alguns, é verdade, não têm fato lavado p’ra vestir... Quando mal se ganha p’rá broa... E trabalham, trabalha o homem e a mulher! É vê-los por aí, sempre em cima das terras, numa labuta de matar, - e às vezes nem com a ajuda do que se vende no mercado se ajuntou p’ra pagar a renda... Sim, bem sei que dizem que a vida do campo é agradável e bela. Estar em contacto com a natureza, ver os campos reverdecerem, aspirar o perfume da primavera nas árvores em flor... Bem sei, bem sei que é assim que os que não vivem da terra e da enxada falam da vida do campo... Mas a vida do campo não é só a primavera florida!... São os estios ardentes, em que uma pessoa torra debaixo da brasa do sol; são os frios e as chuvas do inverno, invernos muito compridos, em que a enxada está parada semanas e semanas e a mulher e os filhos querem comer todos os dias...
         Aos que mourejam com a enxada, era preciso que a enxada lhes desse o necessário para viver e criar a família. E ser honrado! Quando se tem o que é preciso, ser honrado não custa. Mas não negar o corpo ao trabalho, aguentar o sol e o frio – e não ter com que vestir os filhos e mandá-los à escola; ver a doença em casa, e não haver com que pagar médico e botica e andar a pedir por caridade uma cama no hospital – assim é que custa ser honrado! Mas é preciso ser honrado mesmo assim!”.

         Era sempre sob uma trovoada de aplausos que o velho António Graça, atirando com a enxada para o ombro, se despedia e dispunha a sair de cena... A enxada!... A sua fiel companheira de toda a vida, como ele dizia. A enxada, o verdadeiro brasão da terra do limonete. 



        A sesta – final 2º. acto - Chá de Limonete

 Enxada -          
Brasão de Tavarede? Indecifrável
Continua nas siglas mist’riosas...
Gente que lida em fainas trabalhosas
A terra mãe, fecunda e amorável,
Outro brasão é o seu:
Esse brasão sou eu,
- A Enxada -
Brasão humilde em cuja singeleza
Está gravada
Esta nobreza:
- Cavar a terra e tirar dela o pão.
Ó cavador ingénuo, ó bom aldeão,
Eu sou a tua companheira amada,
Sou a enxada
Que levas ao teu ombro alegremente,
- Luz que alumia a tua longa estrada,
Sombra a seguir-te carinhosamente
Desde o berço à cova.
Contigo eu rio e canto a alegre trova
Da sementeira.
E sem canseira
Ao alto erguida em tuas mãos calosas,
Doira-me o sol o ferro cintilante
Que, fecundante,
Revolve a terra em ânsias amorosas.
Mas, se me alegro quando tens fartura,
Choro contigo a tua desventura,
- Ó cavador! -
Se a avara terra te nega o pão
E ao teu lar só mandou desolação
Miséria e dor!...

Mas é preciso renovar a luta,
E outra vez erguer de novo a enxada
Para a labuta.
Recomeçar a vida começada,
Levando na alma um cântico de esp’rança
 - Um hino de saúde e de abastança.

(Transição. Olhando os trabalhadores que dormem)

E dormem inda, coitados!
Na sacha toda a manhã,
Sobre os milharais vergados,
Não lhes é a sesta vã...
Eh! Vá riba! Levantar!...
Então não querem ver esta?!
Vede o sol onde já vai...
Passou a hora da sesta...

(Falando para fora)

Maria do Saltadoiro,
- Maria da desventura,
Mãos de prata e alma de oiro! -
A sesta vai acabada...
Arruma a tua costura,
Troca o dedal p’la enxada...

(Para os que estão em cena, e vão acordando)

Muito vos custa acordar!...
Acima, rapaziada!
São horas de ir trabalhar...

(Vão-se erguendo a pouco e pouco os trabalhadores. Com a música, a figura da Enxada desaparece)

Um Homem - (Cantando)  
Eh! pessoal! Vá lá a ver!...
            Bem custa... mas tem de ser...

Outro Homem -  
Stá o sol mais brando agora...
Eh! gentes! Vamos embora!...

Uma Rapariga
Que pena acordar
            Assim de repente,
            Quando tão contente
            Eu ‘stava a sonhar!...

            Sonhei que uma fada
            Que lá do céu vinha
            Quebrou-me a enxada
            E fez-me Rainha!

         E em meigo falar

             A fada me diz:

        - Viverás feliz
         Sem mais trabalhar!

Coro -  
Ora vejam a pobre cachopinha,
            Que é cavadora e cuida que é rainha!

Um Homem -            
Sonhar, é p’ra quem tem vagar p’ra isso...
            Pegar na enxada, e ala p’ró serviço!

Coro -  
Já o sol vai a descer...
            São horas, vamos à lida,
            Trabalhar até morrer
            É a lei da nossa vida!
            É muito certo o rifão
            Que nos diz: - Semeia e cria.
            Assim não faltará pão
            Nem faltará alegria...