A FEIRA DOS
QUATRO CAMINHOS
No
jornal “Gazeta da Figueira”, de 17 de Abril de 1901, encontrámos a seguinte
notícia: “Chega-nos aos ouvidos
de que foi proibido fazer-se no Pinhal, dessa cidade, o antigo mercado de
suínos que ali se
efectuava todos os domingos, e cremos que se pensa agora em a continuar, mas
aos quatro caminhos (Senhor da Arieira).
É boa a ideia, pois que,
na verdade, a concorrência àquela feira, tanto de vendedores como de compradores, costuma ordinariamente
ser feita por gente de Tavarede, Buarcos, Serra da Boa Viagem, Quiaios, Casal
da Robala, etc, e por isso, estabelecendo-se naquele local o referido mercado,
fica este decerto mais centralizado entre as povoações a que aludimos, e
portanto mais comodidades se oferecem ao público.
Parece-nos que isto qualquer pessoa
julga e apoia, e recomendamos o caso ao nosso pároco e vereador da câmara o sr. Costa e Silva, que com certeza tratará de conseguir que a
feira ali se estabeleça, mostrando assim a sua boa vontade em
promover qualquer serviço a bem dos munícipes
daquelas localidades”.
Complementando
a nota acima, publica dias depois, um extracto da acta da Câmara Municipal
sobre a deliberação: “... deliberou a
câmara, em virtude do dano que causa às árvores ultimamente plantadas no Largo
do Pinhal desta cidade, a feira de gado suíno que ali costuma realizar-se,
mudar o local da mesma feira um pouco mais para baixo, isto é, para
os largos compreendidos entre as estradas do Casal do Mártir Santo à estrada real n° 49 e da Figueira ao Casal da Serra, mais conhecidos pelos largos do
Senhor da Arieira”.
Dias depois é publicado um aviso informando
que “por resolução da Câmara Municipal pode já funcionar ao Senhor da Arieira
(quatro caminhos) a feira de gado suino que se costuma realizar todos os
domingos ao Pinhal e que dali foi mudada para aquele local”.
A Junta de Paróquia de Tavarede,
responsável pelo lugar onde estava a funcionar a feira, oficiou, entretanto, à
Câmara Municipal “pedindo a vedação dum largo, ao Senhor da Arieira, para a
realização das feiras de suínos, que se têm feito nas estradas que cruzam no
mesmo local, impedindo o trânsito”. Esta petição, confirma o que já havia dito:
naqueles tempos era um simples cruzamento de estradas.
Mesmo sem grandes condições, a comissão
paroquial resolveu mandar terraplenar o local “onde aos domingos se faz o
mercado de gado suíno” e arborizá-lo ao mesmo tempo. E a mesma notícia comenta
que “é uma boa medida, pois evita o impedimento de trânsito nas estradas
durante as horas do mercado, embelezando muito o local”.
Mas, como a Junta de Paróquia não tinha
verba para a terraplenagem, solicitou à Câmara “o serviço braçal” para a
terraplenagem “do terreno que lhe foi oferecido para ser apropriado à feira de
gado suíno”.
Quem havia feito a oferta do terreno
para a feira fôra a senhora D. Maria Duarte Costa, viúva de João José Costa, da
Quinta dos Condados, quando teve conhecimento da mudança da feira para aquele
local. Havia-o feito “há um ano!” Apesar da boa vontade em arranjar o local,
uma notícia comenta que “dizem-nos que não será tão depressa terraplenado
devido à Câmara se achar deveras atrapalhada com a organização do serviço
braçal. Há um ano, senhores, há um ano que está organizado o serviço braçal das
freguesias do concelho da Figueira... Que vergonha!...”.
Mas, em Agosto de 1912, já estava
terraplenado metade do terreno para a feira. “Custou, mas foi...”.
Depois deste apontamento só em Janeiro
de 1918 é que voltamos a ter notícia sobre o assunto. Numa descrição da
freguesia de Tavarede, publicada no Anuário Figueirense, refere-se que “todos
os domingos aqui se efectua um mercado de porcos”.
Até que, em Fevereiro de 1921, temos uma nova notícia:
“Na sessão de quarta-feira da Comissão Executiva da Câmara Municipal foi lida
uma representação assinada por vários indivíduos da freguesia de Tavarede,
pedindo a criação de uma feira de gado bovino, suíno, caprino e azinino e
cereais e géneros de várias espécies, a qual deverá realizar-se nos dias 1 de
cada mês, no lugar do Senhor da Arieira. A mesma comissão pediu ainda que a feira
semanal de gado suíno fôsse transferida para o dia 1 e terceiros domingos de
cada mês. A Comissão Executiva deliberou criar a feira, atendendo es prtição”.
Aprovada a petição, a Câmara Municipal
fez publicar o seguinte edital: A Comissão Executiva da Câmara Municipal da
Figueira da Foz:
“Faz
público que em sua sessão de 2 do corrente mês, deliberou criar uma feira
mensal no lugar da Arieira, freguesia de Tavarede, deste concelho, que terá
lugar nos dias 1º de cada mês, e que constará de gado bovino, vacum, suíno e
asinino, além de géneros de todas as qualidades e espécies, quinquilharias,
fazendas, etc. Para constar se
passou o presente e outros idênticos, que vão ser afixados nos lugares públicos
do costume”.
A comissão organizadora marcou, então,
o dia 1º. de Maio de 1921 para a inauguração da nova feira. “Inaugura-se no
próximo dia 1º de Maio a feira mensal de gados, géneros e fazendas que
ultimamente foi criada e que deve realizar-se todos os dias 1 de cada mês, no
lugar do Senhor da Arieira, próximo de Tavarede.
Sabemos que a comissão organizadora
desta feira está trabalhando com vontade para que no próximo dia 1º de Maio
afluam ao Senhor da Arieira avultadas quantidades de géneros alimentícios, gado
bovino, caprino, azinino, suíno e outros artigos, como quinquilharias, etc.,
tudo deixando prever a realização de vantajosas transacções. Procura ainda
conseguir que a inauguração da feira seja abrilhantada por uma banda de
música”.
Segundo informações obtidas, a feira
estava a despertar o maior interesse, prevendo-se que os povos limítrofes iriam
acorrer àquele novo mercado para efectuar transacções “sobretudo de cereais e
gados”. Esperava-se, aliás, que a nova feira de Tavarede viesse a ser um
valioso melhoramento para a freguesia e que muito beneficiaria os povos
vizinhos, “pois é de há muito notada a falta de um mercado perto da sede do
concelho, onde todos, sem dificuldades nos meios de transporte, façam as suas
transacções”.
E a inauguração ocorreu no dia marcado.
“Excedeu toda a expectativa a
concorrência de gado de todas as espécies e géneros de todas as qualidades que
no domingo inaugurou a feira do Senhor da Arieira, em Tavarede.
Além
de muito povo, que afluiu dos arredores, não faltou a nota alegre, que foi dada
pela filarmónica de Quiaios.
As
transacções, como era natural, foram importantes, tendo aqueles que ali foram
negociar constatado as vantagens daquele novo mercado, que poderá vir a ser um
dos melhores dos arredores da Figueira.
Felicitamos os seus promotores, que
devem continuar as suas diligências para manter os créditos da feira”.
Para a feira seguinte, 1 de Junho, uma
nota escreve que “vai realizar-se ao Senhor da Arieira, Tavarede, o mercado
mensal inaugurado sob os melhores auspicios o mês passado e que terá lugar
sempre no dia 1 de cada mês. As transacções de gado de todas as espécies, cereais,
legumes, quinquilharias, etc., então efectuadas, atingiram importância elevada,
animando os feirantes a continuarem a ir ali.
Por isso se espera que o mercado de
amanhã continue a demonstrar a sua vantagem, dele beneficiando todos –
vendedores e compradores”.
Dias depois, tivémos o comentário de
que “foi concorridíssimo, sobretudo de gados de todas as espécies, o mercado
anteontem realizado ao Senhor da Arieira, Tavarede, avultando as transacções.
Congratulamo-nos com o facto, pois achamos vantajoso o desenvolvimento daquela
feira nos aros da cidade, para isso trabalhando solicitamente os seus
promotores, que continuam a ser dignos de ver bem sucedidos os seus esforços”.
Em finais de Julho surge nova notícia.
“No dia 1 de Agosto, segunda-feira, realiza-se ao Senhor da Arieira, Tavarede,
a feira mensal que desde Maio ali se vem efectuando com o mais lisonjeiro
resultado. O mercado de segunda-feira não deixará de ser por igual concorrido,
devendo por isso avultar as transacções.
Mas parece que o entusiasmo despertado
estava a adormecer. Esta última feira “esteve pouco animada, fazendo-se
transacções quase exclusivamente de gado suíno”.
Não havia dúvidas. O mercado
ambicionado e que tanto prometera, não vingou. Vejamos o que nos diz uma
notícia de Agosto de 1923:
“Realizou-se
mais uma vez, no dia 1 do corrente, a feira mensal de gados, cereais, géneros
alimentares, etc. (?), que funciona no Senhor da Arieira, desta localidade, a
qual foi inaugurada no dia 1º. de Maio de 1921, ao som de música e foguetes, e
a que acorreram todos os lavradores desta freguesia, com os seus gados, para
dar mais brilhantismo à referida feira naquele primeiro dia, o que despertou
algum entusiasmo nos tavaredenses, por verem naquela iniciativa um
engrandecimento para a sua terra.
Mas...
como o que é bom acaba depressa, como costuma dizer-se, é certo que nos meses
seguintes se transformou apenas em feira de gado suíno, aliás com pouca
concorrência, desaparecendo assim quase da ideia de todos a existência da
mesma.
Em nossa opinião, diremos que o povo
desta freguesia não sabe bem compreender quais os beneficios que advêem
daqueles mercados, para o desenvolvimento do comércio e muito em especial da
agricultura, pois que, podendo adquirir ao pé da porta o que lhe é necessário,
tem de procurar em outras localidades onde também se realizam, o que
representa, para ele, grande sacrificio com a sua deslocação; e que, a
continuar assim, melhor seria que acabasse de vez a feira mensal, visto haver a
semanal, que só consta de gado suino, ou então prestar o seu concurso de forma
a dar-lhe um certo incremento, de futuro, para assim chamar farta concorrência
que efectue algumas transacções importantes e ao mesmo tempo tornal-a
conhecida, o que, decerto, só beneficiará e dará nome a Tavarede”.
Entretanto havia sido decretado o
descanso semanal ao domingo. Em Maio de 1929, o correspondente em Tavarede do
jornal “O Figueirense” lamentava-se: “os comerciantes de Tavarede, só porque,
perto daquela povoação se realiza ao domingo uma pseudo feira de porcos,
mercado esse que dura duas ou três horas da manhã, goza o privilégio de se
manter aberto todo o domingo, com manifesto prejuízo dos comerciantes da cidade
que são obrigados a estar encerrados”. Era sempre um dia de bom negócio, pois os
copos de vinho eram muito requisitados...
E acabaram-se as notícias sobre as
feiras na nossa terra, primeiro, de gado suíno, aos domingos, depois mais uma
feira/mercado no dia 1 de cada mês, e para acabar, novamente semanal, só de
porcos.
As Juntas de Freguesia seguintes bem
tentaram a sua continuidade. Fizeram-se alguns melhoramentos, como, por
exemplo, instalaram um chafariz, com uma bacia, para os animais beberem, mas
não resultou. Bem sabemos que as condições não eram as ideais, especialmente
higiénicas. E a forma de comercialização e industrialização
tornaram
obsoletas e impróprias estas feiras. Mas eram características...
Mas não quero acabar este capítulo sem
um comentário. Muitas eram as famílias tavaredenses, sempre de poucos
rendimentos e de muito trabalho, que tinham ali o seu “mealheiro”. Compravam um
ou dois bácoros acabados de desmamar, tratavam deles durante uns meses e,
quando precisavam de realizar algum dinheiro, muitas vezes por causa de
doenças, levavam o animal à feira, vendiam-no e voltavam para casa com um novo
bácoro, a que se seguia o mesmo percurso. Além deste pecúlio, tinham também o
proveito dos estrumes, que eram o adubo utilizado mas pequenas hortas que
cultivavam.
Duas recordações aqui deixo. Uma, a de
que havia então em Tavarede uma sociedade protectora de gado suino
(compromisso), na qual, mediante uma quota mensal, garantiam o “seguro” do
animal. A outra, é uma palavra de admiração à memória de tantas mulheres
tavaredenses, pela sua luta e trabalho com a criação caseira dos porcos. Por
conhecimento próprio, não posso deixar de recordar minha mãe e uma vizinha, a
senhora Isaura, mulher do saudoso Manuel Lindote, que, diariamente e por vezes
de manhã e à tarde, iam à Figueira, com um latão à cabeça (cerca de 20/25 quilos),
a casa de famílias conhecidas, que lhes guardavam os restos e sobras de comida
e que elas traziam à cabeça em prodígios de equilíbrio. Cito estas duas, como
disse, por conhecimento próprio. Mas outras mais faziam o mesmo. De inverno ou
de verão, chovesse ou fizesse sol, tinham mesmo de o fazer, para que aquelas
sobras se não estragassem.
Que mais não fosse do que por estas
singelas recordações, a feira dos Quatro Caminhos do Senhor do Arieiro tinha
que fazer parte destas histórias. E não me esqueceram ainda os tremoços e as
camarinhas que lá se vendiam e que tão bem nos sabiam!...
A Quinta da Borlateira