As
primeiras associações - 4
O
Associativismo firmava-se na nossa freguesia. E num jornal de Maio de 1897,
fomos surpreendidos com esta notícia: “No
casal da Robala, pequena povoação nos aros da Figueira, inaugurou-se no domingo
passado uma sociedade de recreio, constituida por alguns rapazes do sitio e
desta cidade. A casa em que foi instalada a sociedade, achava-se lindamente
ornamentada com verduras e flores. Dançou-se animadamente até à meia noite,
reinando sempre a mais franca alegria entre os convidados e os organizadores da
sociedade”. Tinha o nome de Sociedade de Recreio Robalense.
Sabemos que em 1864 já se representava
em Tavarede, pelo Natal, o ‘Presépio’. Era a peça favorita do velho Joaquim
Águas. Julgamos oportuno, por isso, e até porque estes Autos foram
representados primeiro em Tavarede do que na Figueira, transcrever uma nota
descritiva, escrita pelo estudioso deste tema Armando Coimbra, que foi
publicada na década trinta do século passado. Naqueles bons tempos em que nas velhas ruas da Figueira não cintilava
ainda a luz eléctrica, em que se corria o risco de ser atropelado por algum
transeunte noctívago mais apressado, nesses bons e recuados tempos da candeia
de azeite e dos candeeiros de petróleo, a representação dos Autos Pastoris ou
‘Presépio’, como lhes chama o povo da Figueira, era ponto de reunião das
veneráveis famílias figueirenses. Pobres e remediados, nobres e plebeus, todos
esperavam com ansiedade o mês de Dezembro e a representação dos Autos, em que
amadores populares punham à prova, exuberantemente, o seu talento cénico…
…
Ditosos tempos esses, em que as representações do Deus-Menino tinham um cunho
de acentuada religiosidade e um vago perfume de crença que embalava a alma
ingénua dos nossos avós. Perdeu-se a pouco e pouco essa característica
religiosa que dominava as representações dos Autos, e até os armazéns em que
elas se faziam, quási sempre ornamentados de venerandas teias de aranha, que,
como fiéis espectadores ficavam esquecidas nos travejamentos duns anos para os
outros, até esses cederam o lugar aos teatros, elegantes e modernos,
profusamente iluminados a electricidade. O armazém, cardenho ou palheiro,
iluminado a velas ou azeite, era o local cacterístico e preferido para as representações
do Natal e Ano Bom. Escolhia-se sempre o mais vasto, para que pudesse conter o
maior número de espectadores. Ornamentava-se todo com festões de plantas verdes
(musgo, buxo, louro, azinho) e ao fundo improvisava-se o palco, também armado
de buxo e louro com a competente gruta, onde se exibia a Virgem, o Menino
Jesus, S. José, a vaquinha, etc., figuras do presépio, razão por que aos Autos
Pastoris se lhes dá também aquele nome.
Por
detrás da lapinha, em segundo plano, um monte, pelo qual sobem e descem os
zagais e zagalas e todo o cortejo de personagens que vêem em adoração ao Deus
Menino a Belém entregar as suas oferendas de bolos, rosários de pinhões,
cestinhas com queijos, cambos de cebolas e résteas de alhos, de mistura com
apitos, chocalhos, etc., para o Menino brincar…
…
Na plateia, que em alguns armazéns não tinha a honra de ser assobradada, nos
intervalos dos Autos saboreavam os nossos maiores os tradicionais filhós,
acompanhados de bons nacos de torta doce, das Alhadas, e de uns copitos de
vinho ou geropiga que cada um levava em garrafas e acomodava cuidadosamente
junto de si…
…
O cenário dos Autos é o mais resumido que se possa imaginar e é único em toda a
representação. Uma serra, ao fundo, de onde descem os romeiros, e no sopé, a
meio da cena e entalhada na própria serra, a lapinha de Belém, onde jaz o
Menino Jesus, cercado de figuras do presépio, perante o qual todos se
prosternam em adoração. Esta lapinha está oculta por um taipal de madeira, que
é corrido na altura própria por um cordel ou arame puxado dos bastidores.
Passam
romeiros, zagais e zagalas, devotos e todas as personagens dos autos de longada
até Belém para verem o Messias recém-nascido, e o portal não revela a
existência da lapinha ou gruta onde ele jaz. Depois de os figurantes terem
passado e subido a encosta da serra até ao cume, à vista do público, é que o
taipal é corrido, e a lapinha aparece à vista deslumbrada dos romeiros que,
descida a encosta, entram de novo em cena…
…
O Sol, a Lua e a Noite tomam nos Autos forma humana, com indumentária própria e
com os respectivos símbolos. Vem de amarelo o Sol, de branco a Lua, e a Noite
traz vestido preto recamado de estrelas de papel prateado. Satanaz ou Lúcifer,
tem indumentária especial. Fato vermelho inteiro, barbicha aguçada de bode,
cabeleira ornada de vistosos chifres. Por sobre os ombros, envolvendo-o todo da
cabeça aos pés, comprida capa negra, à espanhola. Todo ele é chama rubra e
ardente, como cumpre ao Senhor Supremo dos Infernos.
A
sua entrada em cena tem qualquer coisa de patético e sobrenatural. Uma pancada
seca e simultânea nos pratos e no bombo dentro da cena; uma chama vermelha que
irrompe dos bastidores e envolve o ambiente de fumarada espessa; um alçapão que
se abre a meio do palco, e eis sua excelência fazendo a sua aparição perante os
espectadores assombrados e receosos dos seus malefícios infernais. Tudo isto se
passa em segundos. O som cavo e surdo do bombo assemelha-se à trovoada
longínqua…
Alongámo-nos um pouco nesta transcrição,
mas não nos podemos esquecer que o ‘Presépio’ terá sido uma das peças mais
representadas de sempre e que, como atrás se refere, era esperada com ansiedade
pelos nossos antepassados.
Continuemos…
João dos Santos
Após o falecimento de João José da Costa, foi João dos
Santos , administrador da casa dos
Condados e posteriormente seu herdeiro, conforme já referimos, quem tomou a
direcção do grupo dramático instalado na Casa do Terreiro, que, pela herança, passou
a pertencer-lhe. Em Novembro de 1898 deu o primeiro espectáculo. “Realizou-se no sábado à noite como
noticiámos, no elegante teatro daquela povoação, o espectáculo por amadores
promovido e ensaiado pelo sr. João dos Santos, subindo à scena o Rei-Ló-Ló, a
engraçada opereta do nosso amigo Carlos de Almeida, a cançoneta U-lá-lá, e as
velhas e aplaudidas comédias Para as eleições e Juiz eleito. Os rapazes
amadores desempenharam a contento dos espectadores os papéis de que se
encarregaram, no que foram secundados por algumas raparigas que, pisando pela
primeira vez o palco, mostraram boas disposições, apesar do natural acanhamento
que resulta a falta de prática. Das comédias a que mais agradou foi o Juiz
eleito, onde nalgumas cenas os seus personagens souberam arrancar aos
espectadores estrepitosas gargalhadas. No fim da cada acto houve chamadas
especiais a alguns dos amadores, especialmente a José Medina. Ao espectáculo
assistiram muitas famílias tanto de Tavarede como da Figueira. Que os modestos
amadores não desanimem e progridam, são os nossos desejos, e felicitamos o sr.
João dos Santos por ver coroados de bom êxito os esforços que empregou para a
realização deste espectáculo”.
Podemos dizer que, naqueles recuados
tempos, não existia rivalidade entre as colectividades tavaredenses. Tanto
dirigentes como amadores, actuavam e exerciam actividade em todas elas. Talvez
por melhor apetrechado para o teatro, a Casa do Terreiro era onde se
apresentavam mais espectáculos. Vejamos mais este apontamento de Fevereiro de
1899. “Como
estava anunciado, realizou-se no sábado, no elegante teatro daquela povoação, o
espectáculo pelo grupo de operários que ali funciona, com as aplaudidas comédias
em 1 acto “Descasca milho”, “Perdão d’acto” e “Ceia amargurada”.
Num dos intervalos, foi dita pelo sr. Medina, com a verve
que lhe é peculiar, a cena cómica “Casar por uma burra”, escrita por um
operário daquela terra. O assunto, apesar
de já bastante “escorrido”, não deixou de agradar, devido sem dúvida ao
desempenho correcto, que teve. Contudo, o autor não pôde dar mais e já fizera o
que muitos não fariam. O “Descasca milho” foi desempenhado graciosamente por
parte dos seus intérpretes. A
engraçadíssima comédia “Perdão de acto”, ensaiada pelo ilustre advogado sr. dr.
Cruz, atingiu o auge de naturalidade. Imagine-se uma casa de estudantes, boémios,
onde não há livros, mas em compensação onde todos, os cinco, desejam dinheiro, mulheres e vinho, e
onde no final acabam por possuir essa trindade tão dificil de englobar,
principalmente se o primeiro apêndice não aparece! Bastava só este, porque
champanhe e viscondessas tão faltariam!
A música, de que a comédia era ornada, duma suavidade
graciosa, sem pretenções e cheia de um colorido pouco vulgar – conforme as
situações – produziu um efeito magnífico quando cantada por aquele punhado de
rapazes que tão bem compreenderam o seu autor, sr. J. Proa, filho do conhecido
e hábil escultor do mesmo apelido. Na “Ceia amargurada” distinguiram-se duma
maneira assáz brilhante, Medina, na cena de escárneo com Libório, o guarda nocturno.
Este portou-se bem e conservou-se firme, até final, no seu difícil papel de
gago, arrancando estridentes gargalhadas.
Santos e o criado concorreram para o agrado da comédia.
Emfim, todos bem e isto sem dúvida devido à grande vontade e
paciência dos ensaiadores srs. dr. Cruz e João dos Santos. Bem hajam! Num dos
intervalos foi chamado ao palco o regente da orquestra, sendo-lhe nessa ocasião
oferecido pelo autor destas linhas um lindo bouquet de flores naturais, em nome
de alguns oficiais inferiores das baterias aqui aquartelladas e do sargento do
23 sr. Cardoso.
Antes,
porém, de findarmos esta mais que modesta notícia, não podemos deixar de louvar
o sr. dr. Cruz, pelo facto deste mesmo cavalheiro abrir, para analfabetos, um
curso nocturno pelo método do imortal poeta João de Deus, e, pela cedência da
casa, o sr. João dos Santos. Ouvimos que só serão admitidos os associados do
teatro. Parabéns a todos, desejando que estas festas, que tanto têm de simpáticas
como de instrutivas, se repitam amiudadas vezes”. A escola nocturna, que se manteve em
actividade ininterrupta até ao ano de 1942, teve um papel muito importante,
quer na instrução dos tavaredenses quer no associativismo, como teremos oportunidade
de referir alguns factos.
Dr. Manuel Gomes Cruz
Sem comentários:
Enviar um comentário