Amanhã, 1º. de Maio, António Almeida Cruz, nascido na nossa terra, completaria 132 anos. É uma efeméride a recordar. A nota abaixo copiei-a do Album Figueirense.
Em contacto directo com os alunos, havia ali dois modestos funcionários, nos quais tanto a figura como o temperamento contrastavam. Um era o senhor Sampaio, tipo baixo e gordo, de bigode rapado e suiças negras, tão pachorrento nas falas como nas passadas; o outro era o senhor Cruz, magro e vivo, de bigode quási branco, homem sem papas na língua, a quem mais familiarmente tratávamos por senhor José Maria.
De quando em quando, a-propósito de nada, explodia entre os dois uma altercação que era sempre passageira. A política também os separava; mas ambos eram bons, e igualados, a final, pela estima e pelo respeito que os alunos a um e a outro devotavam.
Frequentei a Escola Industrial até 1903 ou 1904, e foi dentro dêsse período que se fez a sua transferência para o actual edifício dos Paços do Concelho. Emquanto por lá cabulei, não conheci outros funcionários.
Ora, foi pouco depois dessa mudança, que o senhor José Maria, residente em Tavarede, de onde vinha tôdas as noites desempenhar as suas funções na Escola, viveu alguns dias de inquieta saudade pelo filho que abalara para Lisboa, disposto a abraçar a vida artística que o seduzia. Embora fôsse com o seu consentimento que êste resolvera dar tal passo, nem por isso o seu coração de pai se resignou fàcilmente com a ausência de quem tanto estremecia. E através dos desabafos que lhe escutei nos intervalos das aulas, algumas lágrimas lhe vi enxugar quando mais enternecidamente falava do filho querido, ansioso por ver confirmadas quantas esperanças êle levara no êxito e na glória; assim como vive ainda na minha lembrança a satisfação com que o bom José Maria nos deu conta das primeiras notícias que recebera, confortadoras pelo entusiasmo com que o filho lhe confessava o sucesso dos seus primeiros ensaios. Também então, mas de júbilo, algumas lágrimas orvalhavam o seu lenço tabaqueiro.
O filho do senhor José Maria, que à arte se quis dedicar, era o hoje consagrado tenor e ilustre artista Almeida Cruz. Contava então êste nosso conterrâneo 22 anos de idade. Dotado de muitas aptidões artísticas, senhor de boa figura, insinuante pelo aspecto e pelas maneiras, êle fôra naqueles últimos tempos quem mais realçara na boémia figueirense, sempre farta de episódios.
Prestigiava-o sobretudo a sua voz maravilhosa, rica de plasticidade e de timbre, que nas serenatas da época marcava com excepcional fulgor. O privilégio de tal voz envaidecia a Figueira, e a sua presença era disputada por aquêles que no bom canto encontravam precioso deleite. Algumas vezes, nessas noites já distantes, interrompi o sono para o ouvir, mercê do empenho que fazia em se deliciar com suas cantigas o meu vizinho no Largo Luiz de Camões, dr. Joaquim Lopes de Oliveira.
Com tais predicados, a admiração que Almeida Cruz inspirava não podia circunscrever-se aos escassos limites dêste burgo mondeguino, e por isso êle foi também um valioso colaborador da boémia coimbrã. Foram muitas, na cidade da linda Inês, as tertúlias e as festas em que figurou, quer de futricas, quer de estudantes, no antigo teatro da Rua da Trindade.
O famoso “Pad’Zé” a cada passo solicitava a sua companhia; e foi por direito legítimo que Almeida Cruz alcançou o título de Presidente da Associação dos Depenados do Distrito de Coimbra. Cumpria a estes assoaciados a cotização semanal de... cinco réis, que conjuntamente rehaviam com juros... de boa pipa, numa ceiata económica em taberna pataqueira, logo que a verba o permitia. Mas Almeida Cruz nem essa mísera cota lograva satisfazer... Se aqui tentasse referir os seus feitos mais notáveis nessa época divertida, êste número do Album Figueirense incharia como um volume. Boémio perfeito, por temperamento e conduta, Almeida Cruz foi, incontestàvelmente, a figura de maior relêvo na estúrdia figueirense dos últimos anos do século passado. E nessa aura singrava, quando...
Em Agôsto de 1901, passou pela Figueira, numa volta pela província, a companhia do Teatro da Trindade, dirigida por José Ricardo, e o nosso Príncipe D. Carlos encheu-se três ou quatro noites para se apreciarem algumas das melhores operetas do seu repertório. Acabadas as récitas, os artistas da companhia procuravam no restaurante Barba-Azul a confortadora ceia da praxe.
Era, pois, neste centro da boémia figueirense que, numa das últimas noites de espectáculo, os artistas alfacinhas ceavam alegremente, divididos por dois gabinetes. Num abancava José Ricardo com Amélia Loppícolo, António Gomes, do Trindade, a actriz Estefânia e o actor Gervásio; no outro, arranchava o empresário Gouveia (sócio de José Ricardo na Emprêsa José Ricardo & Gouveia, que então explorava o “Trindade”) com as actrizes Isaura e Rosa Pereira, o maestro Tomaz Del-Negro e o actor Firmino João Rosa.
A preseença dêstes artistas no Barba-Azul fizera que ali confluisse a fina flor da rapaziada. Era noite de gala para os boémios da terra. Havia luar; cheirava a madressilva; e no pátio beberricava-se e petiscava-se por todos os cantos. A certa altura surgiu um grupo, que rodeou o cego Monteiro, guitarrista afamado de Coimbra. Era o Pad’Zé com com Almeida Cruz e o dr. Zé Pinto. Estralejava a chalaça.
O cego dedilhou a guitarra, e, na estridência das suas cordas, o fado, tomando colorido, refulgia por entre o claro escuro das sombras caprichosas que o seguiam nos bordões tangidos por Almeida Cruz na sua tiorba sem par. Mas logo a voz poderosa e doce dêste nosso patrício eclipsou tais efeitos.
Almeida Cruz, que só cantava fados seus e músicas suas, soltou aos ares uma canção. A assistência entusiasmou-se, e, quando amigos e admiradores vivamente o aplaudiam, abriu-se a porta dum gabinete e alguém procurou conhecer, cheio de interêsse, quem possuía a primorosa voz que assim arrebatava. Era o actor Firmino Rosa. Feita a apresentação, Almeida Cruz voltou a cantar; mas não tardou que Firmino, maravilhado por tão imprevisto quão feliz encontro, o apresentasse, por sua vez, aos demais companheiros.
O primeiro a quem aquêle actor o apresentou foi o empresário Gouveia, preferência de que José Ricardo não gostou, porque já nessa altura se esboçava entre êle e o sócio a desinteligência que havia de separá-los. Mas entre aquêle empresário e José Ricardo, como em tôda a companhia, foi unânime o acôrdo sôbre o mérito do nosso conterrâneo, sôbre as faculdades da sua voz extraordinária, e em volte de Almeida Cruz tôda a noite rodopiavam os elogios e as sugestões para que seguisse a vida artística, onde todos lhe prediziam um triunfo glorioso.
Se os elogios, por virem de quem vinham, eram autorizados e conscienciosos, as sugestões eram pertinazes e convincentes.
Aquela noite foi decisiva para o estimado boémio, que às serenatas da Figueira imprimira um brilho jamais igualado; e quando, de madrugada, Almeida Cruz deixou a camaradagem daqueles artistas, havia anuído já, por insistência do empresário Gouveia, a comparecer na tarde seguinte no Hotel Aliança, onde a companhia estava hospedada, para fazer, ao piano, mais completas demonstrações da voz.
Á hora aprazada não faltou no hotel, onde o aguardavam alguns artistas com o maestro Tomaz Del’Negro. Levava as músicas que compusera, mas porque estavam escritas na clave de sol, para violão e canto, não serviam para a experiência. O ilustre maestro apressou-se, porém, a dispensá-lo das demonstrações, que reconhecia desnecessárias, e limitou-se a apontar a lápis algumas notas nas composições de Almeida Cruz, que êste distinto figueirense conserva como recordação do seu primeiro passo para a vida artística. Ali se assentara, finalmente, na sua ida com a companhia para Lisboa.
E foi assim, depois de tranquilizados os pais pelo compromisso do empresário Gouveia, tomado perante o padrinho de Almeida Cruz, Doutor António Lopes Guimarãis Pedrosa, de fazer tôdas as despezas com a experiência combinada e de o repor sob as telhas paternas se o êxito não confirmasse o vaticínio de todos, que, dois dias depois dessa última noite de boémia no afamado Barba-Azul, o nosso glorioso patrício deixou definitivamente a terra natal para iniciar a carreira em que depressa conquistou, através dos mais brilhantes triunfos, o primeiro lugar entre os tenores portugueses.
António Maria Monteiro de Sousa de Almeida Cruz nasceu em Tavarede no dia 1 de Maio de 1879, e é filho de José Maria de Almeida Cruz e de D. Maria Guilhermina Monteiro de Sousa e Cruz.
A sua inclinação para o teatro manifestou-se cedo. Tinha apenas 9 anos quando representou pela primeira vez em público. Foi no Casal-da-Fonte, freguesia de Lavos, em casa do Dr. Lopes, numa récita carnavalesca, com a cena cómica Um Alho. O ilustre artista ainda hoje revive o insucesso inesperado dessa verdadeira... alhada.
Antes da sua altura de subir ao estrado, garganteou uns fadunchos o dr. Jaime da Guitarra, conhecido boémio que era Administrador do Concelho, na Figueira. Os aplausos foram fartos. O jovem estreante partilhou do entusiasmo do público, e, sentindo receio de não fazer boa figura, disse aos pais que já não recitava.
Para vencer tal teimosia, teve a mãi de lhe pregar um sopapo, e a cena-cómica Um Alho, dita ainda a choramingar, teve daquela vez o sabor dum alho...chocho.
Aos 13 anos, num teatrito da segunda travessa da Rua das Rosas, em récita dos alunos da escola do saudoso Joaquim Evangelista, onde estudava, desempenhou em travesti o papel de Dona Ana na comédia em um acto Não subas as escadas às escuras.
Em 1895, foi Almeida Cruz para Coimbra assentar praça no Regimento de Infantaria 23, como aprendiz de música, e ali tomou parte numa festa promovida por sargentos no teatro “dos Bôrras”, cantava fados e modas da sua autoria, por êle próprio acompanhadas a violão.
Com 18 anos, em Tavarede, no teatrinho do Paço do Conde, desempenhou o papel principal da comédia Atribulações dum estudante. Pela mesma altura representou também neste teatro e no teatro Duque, de Buarcos, a comédia Médico à força.
Em 1898 embarcou para Luanda, com colocação prometida na casa Lopes Ferreira & Cª., pertencente a dois figueirenses. Quando, porém, um dêstes patrícios lobrigou na bagagem do recém.chegado uma rabeca e um violão, torceu o nariz com suspeitas do hereje, que assim mostrava pecar contra a boa ortodoxia do comerciante pragmatista, pé-de-boi, incompatível com quaisquer pruridos de literatura ou de arte, e vedou-lhe as portas do seu estabelecimento, colocando-o na Companhia do Gás, daquela cidade, onde Almeida Cruz foi desempenhar as funções de inspector. Mas a tolerância do gerente da Companhia emparelhava com a do bemquisto comerciante, e pouco tempo ocupou o lugar. Em face da hostilidade daquele meio comercial, abalou para Catumbela, onde foi guarda-livros da casa João J. Branco & C.ta.
Ao cabo de treze meses, por não lhe serem propícios os ares coloniais, regressou à Figueira. Não deixou, todavia, nesse curto período, de mostrar por lá as suas aptidões artísticas. No teatro de S. Paulo, daquelq cidade ultramarina, representou, com êxito notável, as comédias Lição para noivos e Atribulações dum estudante, e no teatro de S. Filipe, de Benguela, também representou várias vezes esta última, e cantou, com muitos aplausos, inspiradas modas, entre as quais uma chamada As minhas vizinhas, que ali se tornou predilecta.
Em 1900, no antigo teatro “do Celeiro”, de Buarcos, fêz o trabalhoso papel de Pedro no drama O coração dum bandido, representou as comédias História dum pataco e Quero falar à Srª. Queiroz, e a farsa O santo fingido, da autoria do pai do artista. No mesmo teatro e pela mesma altura foi também Almeida Cruz o ensaiador dum grupo cénico feminino, no qual começavam a revelar seus méritos as apreciadas amadoras Mabília Guerra e Maria Vieira.
No Natal do mesmo ano desempenhou o papel de pastor no Auto do Menino Jesus, nos teatros de Tavarede e Buarcos.
Tomou parte na inauguração do teatro de Brenha, e poucas foram as récitas de amadores dadas por êsse tempo nos teatros da Figueira, Buarcos e Tavarede a que êle não levasse a sua valiosa colaboração.
Também ao teatro de S. João-do-Campo ficou ligado o seu nome, quando o prestidigitador Hermann ali foi exibir as suas habilidades. O nosso conterrâneo completou o espectác ulo com a apresentação de um grupo musical de Tavarede, que dirigia.
No seu regresso de África, Almeida Cruz também se dedicou ao magistério. Foi o primeiro professor da Escola Nocturna Popular Bernardino Machado, em Buarcos, fundada pelo saudoso benemérito e democrata Fernando Augusto Soares. A posse foi-lhe dada pelo próprio patrono da escola, dr. Bernardino Machado, que presidiu à festa da sua inauguração.
Em 1894 foi para Guimarãis empregar-se na da Casa Noiva, e em 1897, na Figueira, esteve no escritório da Companhia do Gás e da Água, e também passou, como eu, que estas linhas subscrevo, e tantos outros, pelos escritórios da Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses da Beira Alta, êsse refugium peccatorum da rapaziada figueirense. Embora fôsse sempre cumpridor nos seus empregos, o seu temperamento boémio e artístico em nenhum deles se acomodava. Outras tendências o impeliam; outra vida lhe estendia os braços carregados de aplausos.
São estes os traços principais da vida de Almeida Cruz antes de iniciar a sua brilhante carreira no teatro musicado português. A sua estreia profissional fêz-se com invulgar sucesso no teatro da Trindade, em Lisboa, na noite de 19 de Setembro de 1901, com o desempenho do papel de Nicolau, na opereta Os Sinos de Corneville; e, através das trezentas personagens que nestes 36 anos tem interpretado, sempre o ilustre figueirense triunfou.
São estes os traços principais da vida de Almeida Cruz antes de iniciar a sua brilhante carreira no teatro musicado português. A sua estreia profissional fêz-se com invulgar sucesso no teatro da Trindade, em Lisboa, na noite de 19 de Setembro de 1901, com o desempenho do papel de Nicolau, na opereta Os Sinos de Corneville; e, através das trezentas personagens que nestes 36 anos tem interpretado, sempre o ilustre figueirense triunfou.
Mas as referências à sua gloriosa vida de artista terão de ficar para outra vez, dada a extensão que já leva este artigo.
por Fernandes da Silva
(de Album Figueirense)
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