Ao folhearmos os nossos apontamentos encontramos, muitas vezes, notícias ou comentários muito interessantes. São coisas velhas, é certo, mas vale sempre a pena recordar. Hoje recordo dois desses apontamentos encontrados:
Arredores de Tavarede, 4-11-940 Sr. Redactor:
Esta carta não foi escrita por mim, que mal sei ler e escrever ainda menos, mas foi ditada por mim e sou eu que tomo a sua responsabilidade por se tratar de uma coisa justa como vai ver.
O sr. Redactor, no seu jornal, faz os seus reparos muito a propósito e no que me toca pela roupa, à venda do leite aos banhistas, chega a ser cruel para com os desgraçados que estão sempre mortinhos pela época dos banhos para apurar uns tristes vinténs para viver e para pagamento de tantos compromissos. O negócio do leite é pobre e os que o exploram nestas redondezas são pobres também.
Veja agora o sr. Redactor o que se dá nos cafés em comparação com o que se passa connosco, coisa que eu observei e paguei: a nós tabelaram-nos o leite a 1$50 o litro em plena época e nos cafés agora no Outono é fornecido à razão de 12$00! Não é exagero. Eu demonstro:
No domingo foi dia de festa cá em casa e para dar um pouco de gozo ao espírito fomos de ranchada até à Figueira ao cinema, mas antes fomos tomar café ao Nicola, porque tristezas, e são tantas, não pagam dívidas, que também são muitas.
O Nicola estava cheiinho como um ovo. Lá conseguimos uma mesa e com espanto do criado por ver estes clientes maltezes endomingados, tomamos o nosso lugar e pedi:
= Para mim um café em chávena. Os copos são para o vinho. Para a patroa, um garoto em copo para variar.
= Credo homem que é isso?
= Cale-se, não se faça saloia.
Os cachopos tasquinhavam pevides, sempre ficava mais peitoral.
O criado veio com a sua bandeja atestada de material. Preparou o garoto: um dedal de leite no copo e um dedal de café a dar côr ao leite. Tomámos com cerimónia a nossa extravagância.
= Quanto custa?
= Dezasseis tostões.
Paguei sem bufar e mais dois tostões de gorgeta.
Na rua a minha mulher, que é uma moirinha no trabalho, desabafou. Disse que ia para os jornais, e é por isso que aqui venho, sr. Redactor, a dizer-lhe que repara dos pobres leiteiros na época de banhos subirem um nadinha no preço do leite e não dizer dos cafés o venderem ainda à razão de doze mil reis o litro.
Que tal lhe parece? O que me diz a isto sr. Redactor?
Se publicar este desabafo agradeço-lhe. Um leiteiro pobre.
As colunas do “Times” estão sempre à disposição dos que queiram tratar de assuntos de interesse público.
Informamos a pessoa que veio reclamar contra o preço do leite e do café nos Cafés do Bairro Novo de que na terça-feira foi feito abatimento, servindo-se agora cada chávena a seis tostões. E com um “cheirinho” custa a mesma coisa...
São bons amigos...
A segunda história é passada em Tomar. Foi igualmente na década de 40 do século passado. Foi anunciado um espectáculo com o grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense. Eis a história:
Noutro dia ia eu na rua, preocupadíssimo com o facto de não me estampar nalguns dos numerosos montes de pedra ou nas covas que apresentam as ruas há uns tempos para cá, quando ouvi atrás de mim uma voz gritar:
- Eh pá! Sabes quem vem cá?
Eu voltei-me logo, na intensão ingénua de dizer que não sabia quem vinha cá. Mas logo ouvi outra voz que plagiava a minha resposta e, como sou um tipo esperto, deduzi como qualquer polícia amador que a conversa não era comigo.
Disfarçadamente voltei-me para ver quem falava. Eram dois garotitos farrapões. Um estava a tirar rendimento dum banco da praça, cabeça tronco e membros a ocupar a apertada taboínha onde as pessoas sentam. O outro estava sentado ao pé do monumento do Gualdim e ocupava-se asseadamente a limpar o nariz. Estava já disposto a seguir o meu caminho e teria sido bem bom para não estar agora a maçar os leitores, quando ouvi a mesma voz gritar:
- São aqueles tipos, os de Tavarede. Eh pá, aquilo é que são actores. Vêm cá trabalhar para a gente. Quem me dera ir!
O outro encolheu os ombros e começando a limpar com esmero o outro lado do nariz, berrou de cá, na linguagem de qualquer menina moderna:
- Eu cá, não posso ir, estou teso. Ouvi dizer que são uns gajos bestiais. Lá a’nha avó diz que eles são muito bons, que vêm ganhar dinheiro para dar depois aos pobres. Aquilo é gente bem boa!
Nesta altura da conversa, resolvi continuar o meu caminho. Mas as frases dos garotos tinham-se-me metido na cabeça. Vêm cá trabalhar para a gente! Dissera o garoto. E realmente era verdade. Aquele grupo de artistas que à força de arte têm conquistado simpatia, admiração, por muita terra de Portugal, vêm cá de vez em quando a Tomar, salvar a crítica situação da Casa dos Pobres. E os pobres conhecem-nos, e estão-lhes agradecidos.
Poderão dizer que “são uns tipos bestiais”, que a ideia da frase se eleva acima da rudeza da expressão.
Bemvindos sejam por isso os tavaredenses.
Os pobres são gratos para quem os acarinha. E até me dá vontade de chegar ao pé deles e dizer também como o farrapão: Apertem esses ossos. Vocês são uns tipos bestiais!
São ou não são retalhos interessantes?
Sem comentários:
Enviar um comentário