sábado, 22 de dezembro de 2012

O Associativismo em Tavarede - 3


As Sociedades Dramáticas

 Joaquim Alves Fernandes Águas

         Estamos situados no ano de 1865. É interessante recordar que, naquela época, o Associativismo era oficialmente regulado pelo Código Penal de 1852, no qual o artigo 282º. estabelecia: “Toda a associação de mais de 20 pessoas, ainda mesmo divididas em secções de menor número, que, sem preceder autorização do governo com as condições que ele julgar convenientes, se reunir para tratar de assuntos religiosos, políticos, literários ou de qualquer outra natureza, será dissolvida; e os que a dirigirem ou administrarem serão punidos com prisão de um mês a seis meses. Os outros membros serão punidos com prisão até um mês”.

         Ora, com tais disposições em vigor, seria possível existirem, em Tavarede, “sociedades dramáticas”, legalmente constituídas e que aqui “vegetavam como tortulhos? A resposta só poderá ser negativa. Tratar-se-ia, isso sim, de pequenas “sociedades familiares”, que se reuniam nalgumas casas, especialmente nas de famílias mais abastadas, para passarem os seus serões, principalmente nas grandes noites do Outono e do Inverno e que, tendo adquirido o gosto pelo teatro e pela música, aproveitavam os seus tempos de descanso para conviverem nos ensaios, procurando, ao mesmo tempo, instruírem-se e divertirem-se, instruindo e divertindo os seus conterrâneos que assistiam aos espectáculos que apresentavam.

         Mestre José Ribeiro, no seu livro “50 Anos ao Serviço do Povo”, publicado aquando as “Bodas de Ouro” da Sociedade de Instrução Tavaredense, a páginas 22, escreve: “Pudemos apurar que funcionaram teatros, onde se representaram peças que fizeram correr rios de lágrimas e provocaram indigestões de gargalhadas, nos seguintes locais: “na Casa do Paço, do lado do caminho para a Figueira; depois, na mesma casa, no teatro ali mandado construir pelo último Conde de Tavarede; na casa que foi de Romana Cruz, na Rua Direita, à entrada da povoação; na casa onde hoje vivem, a meio da Rua Direita, os herdeiros de Martinho Correia; na casa chamada do Ferreira, logo adiante mas do lado oposto (casa que pertenceu a António Cordeiro); na de Joaquim Águas, pai do velho capitão José Joaquim Alves Fernandes Águas, em frente do anterior, prédio em que mais tarde esteve o Grupo Musical Tavaredense; na casa, também na Rua Direita, que foi de João da Silva Cascão; e na então chamada Casa de Ourão, no Largo do Terreiro, o mesmo edifício que João José da Costa mandou transformar no teatro hoje propriedade e sede da Sociedade de Instrução Tavaredense”.

         É credível que mais algumas houvessem. Recordemos que Aníbal Cruz, tavaredense estudioso da história da sua terra e jornalista, deixou escrita a informação de que sua avó lhe contava que, no tempo dela, chegaram a representar-se em Tavarede, em simultâneo e sempre com casa cheia, seis Presépios!

         Agora, é a ocasião de explicar o que eram essas associações e as salas de teatro. Vamos dar a palavra, mais uma vez, a Ernesto Tomás:
        
“… A plateia, que para aproveitamento de maior número de espectadores havia sido construída em forma de palanque, era engendrada por umas tábuas manhosamente pregadas nuns cunhos de madeira e estes, por sua vez, da mesma forma ligados a uns postes de madeira inclinados contra a parede.

         O pano de boca, qualquer colcha, de chita, de padrão em labirinto vermelho. A iluminação fazia-se por meio das clássicas velas de sebo espetadas em palmatórias de pau. Ria-se, vozeava-se e fumava-se na plateia, com a sem-cerimónia de ajuntamento numa feira.          De vez em quando, um dito picaresco, saído de alguns dos espectadores, ia provocar a hilaridade ruidosa dos mais sérios, e tudo ria desalmadamente, sem respeito pelo cabo d’ordes, o António José, que assistia àquela inferneira aprumando desmesuradamente a sua autoridade tão sobranceira como a sua figura, de pouco menos de três côvados de alto.

         Lá dentro, no palco, desenvolvia-se um vai e vem, entretido pela família dos actores, das actrizes e pelos intrusos, bem capaz de causar vertigens às constituições menos dadas à sensibilidade. Uma flauta que nos produzia nos nervos arranhos de gato, conjuntamente com um violão despertando dobre a finados, e uma viola, gemendo sob uma unha afeita à enxada, constituía por inteiro o que então se apelidava de a Roquestra…”.

         Esta casa de teatro estava instalada na acima descrita “Casa do Ferreira”, actualmente propriedade do nosso amigo Manuel Lontro, e a descrição refere-se a um espectáculo no ano de 1865. A sala de teatro, ou associação dramática, já era, no entanto, mais antiga.

         Mas nós temos também mais informações sobre aqueles anos. Por exemplo, no ano anterior, ou seja em 1864, Joaquim Alves Fernandes Águas, fundador da conhecida Casa Águas, na Figueira da Foz, ainda residia com sua família em Tavarede, pois só se mudaram da nossa terra para a Figueira dois ou três anos depois. Exerceu vários cargos administrativos e era muito respeitado por todos os seus conterrâneos. Amigo de divertir-se, um “Presépio” (costume velho em Tavarede) era o cúmulo de seus divertimentos. “Em uma das casas que já apontámos, lá instalou um teatrinho seu, cerca do ano de 1864, em que ele, filhos e filhas entravam, representando, e o que é melhor é que mulheres representavam de homens e vice-versa”. Isto confirma a nossa opinião de que as tais sociedades dramáticas eram reuniões familiares. Como curiosidade, recordemos uma nota escrita sobre um dos espectáculos ali dados naquela época.
   
“… A costumada troupe de rapazes da Figueira estava no seu posto de espectador. Alguns rapazes dela ocupavam-se em ajudar, tocando numa orquestra adrede arranjada para satisfazer às exigências do espectáculo.    Na casa velha, vestiam-se as figuras e preparava-se o mise-en-scéne; na casa nova, havia o palco e a plateia, e a comunicação duma para outra era feita por uma porta que dava para o fundo do palco. Havia-se esgotado o reportório do presepe e ia entrar em cena a comédia “O marido vítima das modas”.

A propósito do “Presépio”, tradição tão antiga em Tavarede e na Figueira, encontrámos uma notícia, sobre esta peça, no jornal ‘O Conimbricence’, de Janeiro de 1867, a propósito de representações na Figueira, referindo-se a nota especialmente a uma representação num teatro sito ao Pinhal das Águas: … Nesta época do Natal nota-se sempre nesta vila um certo bulício e entusiasmo com os presépios, que ordinariamente aqui é costume fazerem-se em número de um, dois, três ou mais, conforme os rapazes e raparigas, que para tal fim se agrupam em maior ou menos número, tendo sempre em todas as noites em que se representam as variadas cenas pastoris, alegóricas ao nascimento de Cristo, grande concorrência de espectadores; pena é que os diferentes papéis escritos em verso já completamente estropiado, sem metrificação, e com alguns até em linguagem chocarreira, e pouco decentes, não sejam substituidos por outros correctos, ou mesmo por uma prosa bem escrita, pois que o acto histórico-religioso exigia e devia tornar-se mais decente e respeitoso; tempo virá e breve, talvez, em que isso se consiga

         Os rapazes da Figueira encarregaram-se da mudança do cenário, mas, para fazerem uma partida ao velho Águas e rirem-se no fim, colocaram os bastidores em sentido inverso, isto é, de pernas para o ar.      Tudo pronto… Pano acima…

         Ninguém havia reparado no desarranjo do cenário, mas o velho Águas, que, sentado na plateia, acompanhava passo a passo as fases do espectáculo, tendo reparado gritou: - Vá o pano abaixo!... pano abaixo!... E foi.

         Dirigiu-se lá dentro à casa velha, zangado, fulo de raiva, e fez-nos uma apeporação tão apimentada que não era para rir, faltando pouco para que todos os rapazes da Figueira fossem postos no meio da rua. Mantivemo-nos, contudo, um pouco mais sérios, rectificando no nosso espírito a ideia que formávamos do nosso velho Águas: de que ele estava sempre pronto a aturar-nos rapaziadas e a rir-se delas.       Daí por diante teríamos de pensar que, dentro do seu teatrinho, nos deveríamos portar com o aprumo da seriedade, com toda a correcção de espectador gommé, aliás… rua!”.
        
Já temos, portanto, conhecimento do que eram as associações dramáticas em Tavarede, apercebendo-nos que era o teatro que tinha maior preferência da população, embora a música também tivesse o início da sua prática, com a participação de figueirenses, embora ainda muito rudimentar.

         Acompanhemos agora a evolução do associativismo em Tavarede a partir daquelas datas.

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