Os
princípios do associativismo
Vamos, agora, tentar explicar as razões
que nos levam a apontar o início do associativismo na nossa terra para aqueles recuados
tempos. Como todos nos recordamos, Tavarede foi palco, durante cerca de dois
séculos e meio, de violentas quezílias entre o Cabido da Sé de Coimbra, a quem
o Rei D. Sancho I fizera doação do Couto de S. Martinho de Tavarede, no ano de
1191, e a poderosa família Quadros, aqui radicada desde o ano de 1522, quando
D. João III nomeou António Fernandes de Quadros Juiz das Sisas de Tavarede,
concedendo-lhe largos privilégios, alguns dos quais bastante penosos para o
nosso povo e dos quais aqueles fidalgos usaram e abusaram largamente.
Há, também, a possibilidade dos Quadros
já viverem no Couto de Tavarede, alguns anos antes, nomeadamente seus pais e
irmão mais velho, Aires, pois existem registos de que este último era possuidor
de algumas propriedades na nossa terra, as quais foram adquiridas por seu
irmão, após a sua morte, na Índia, sem deixar descendentes.
Até ao ano de 1771, ano em que foi mudada a Câmara de
Tavarede para a Figueira da Foz do Mondego, então elevada a vila e da qual
Tavarede passou a estar dependente, não acreditamos que fosse possível haver
aqui qualquer espécie de associativismo, ainda que de forma muito rudimentar,
tal era o receio que os habitantes tinham dos fidalgos, a quem qualquer reunião
seria suspeita de conspiração contra o seu poderio. Bastará recordar que, por
exemplo, um dos privilégios dos fidalgos Quadros mais vexatórios para o povo,
era o chamado da “poia”, que interditava qualquer tavaredense ou figueirense a
que tivesse, dentro de sua casa, forno para cozer broa, assar carnes e, até,
para assar qualquer fruta ainda verde e que o vento tivesse atirado ao chão.
No seu trabalho sobre a mudança da Câmara de Tavarede
para a Figueira, o Dr. Rocha Madahil, baseado em documentos encontrados nos
arquivos da Sé de Coimbra, refere “que fazendo algumas pessoas fornos para
cozer pão em suas casas, lhes tem entrado pelas portas dentro acompanhado de
seus criados e valentões e lhos derrubam e desfazem…”. Mas não julguemos que só
os fidalgos é que tinham destes privilégios opressores. Não nos esqueçamos da
visita anual do Deão da Sé de Coimbra e do célebre jantar, ou colheita, que
estes povos tinham a obrigação de fornecer. Além de dinheiro, carneiros,
cabritos, pão, ovos, vinho e outros géneros alimentares, lenha e temperos,
tinham que fornecer “um quarteirão farto de cevada”, o que levou o Dr. Santos
Rocha a dizer, ironicamente, que o Deão comia cevada! Mas não, a cevada era
para as bestas de transporte.
Reforçando o que acima referimos quanto aos fidalgos
tavaredenses, vamos buscar, à exposição que, nos princípios da segunda metade
do século dezoito, o Cabido da Sé de Coimbra mandou ao Rei D. José I, a pedir a
transferência da câmara de Tavarede para o lugar da Figueira da foz do Mondego,
com o objectivo de acabar com o poderio e abusos dos morgados de Tavarede, o
seguinte retalho: … e o mesmo fez em
Maiorca, onde de noite foi ver uma comédia que se fazia em uma casa de
Bernardo da Cunha, saindo com o seu capelão e mais pessoas de sua comitiva,
segundo o uso e costume, com armas defesas, quis meter o festejo à bulha e
descompôr o dito Bernardo da Cunha, que se não usara da sua prudência
certamente o matariam, pois já iam com ânimo disso…
Duas conclusões se podem tirar desta nota. Uma, a de
que já na segunda metade do século dezoito (isto por volta de 1750) se fazia
teatro em Maiorca; outra, a de que com tais ‘senhores’, de certeza que em
Tavarede não se atreveriam a isso.
Admitindo, assim, que o associativismo
em Tavarede só terá sido possível depois daqueles recuados tempos, impõe-se uma
pergunta: como seria esse associativismo?
Fazendo uma breve passagem ao passado,
logo ficaremos a saber que, naquela época, as associações existentes eram de
classes, ou melhor dizendo, eram associações corporativas. Estas, desde tempos
bem longínquos que existiam, tinham como fim a defesa de determinadas classes,
profissionais ou religiosas, que se agrupavam para lutarem pelos seus
interesses perante o poder estabelecido. Não eram, portanto, as associações
culturais e recreativas a que nos estamos reportando. Estas, as associações de
cultura popular e recreio, terão surgido no último quartel do século dezoito,
quando os povos, influenciados pela célebre trilogia “Liberdade, Igualdade e
Fraternidade”, que os ventos da Revolução Francesa e da Independência da
América do Norte espalharam por toda a parte. Foi a partir de então que,
apercebendo-se da necessidade da socialização e da instrução, os povos passaram
a agrupar-se e a associar-se para busca duma cultura que até então lhes estava
praticamente interdita.
Regressemos à nossa terra. Em Dezembro
de 1791, a décima Senhora de Tavarede, neta do célebre e famigerado Fernando
Gomes de Quadros, talvez o maior opressor do povo tavaredense, casou com um
ilustre e muito culto fidalgo, D. Francisco de Almada e Mendonça, que, enquanto
governador da cidade do Porto e de várias províncias nortenhas, foi um grande
protector das artes, nomeadamente da ópera, teatro, dança e música, mandando
construir, do seu bolso, o conhecido Teatro de S. João, no Porto, onde fez
representar as melhores companhias nacionais e estrangeiras, principalmente
italianas.
Deste fidalgo, que passava largas temporadas em
Tavarede, ficou a tradição de ser grande amigo e protector das nossas gentes.
Acreditamos, por isso, que terá sido D. Francisco de Almada e Mendonça e sua
esposa, D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa, quem terão incentivado, aos
nossos antepassados, o gosto pelo associativismo e pelo teatro.
Admitamos que terá sido assim. A única
certeza que existe é que, no ano de 1865, existiam em Tavarede várias
sociedades dramáticas onde se fazia teatro já com muita fama. As datas até
parecem coincidir. D. Francisco de Almada faleceu no ano de 1804 e D. Antónia
Madalena em 1835. E para representar, com um nível aceitável, certamente que já
se representava em Tavarede haveria algumas décadas.
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