Mas, e porque a
história não é só feita de elogios, igualmente aqui inserimos uma crítica
referente à representação da opereta Os
amores de Mariana, na Figueira. O meu vizinho
Roque Maleitas, que teve artes de arrancar-me por algumas horas ao meu pacato
isolamento na noite de 13 do corrente para ir ao Parque ver Os Amores de
Mariana, opereta desempenhada pelos amadores dramáticos da Sociedade de
Instrução Tavaredense, surgiu há pouco à minha porta brandindo com indignação e
cólera um número do Figueirense. Indagada a causa daquele insólito estado de
alma, Roque Maleitas, sempre bufando e apontando com dedo sinistro a 5ª coluna
da 2ª página da já citada luminácia, desabafou nestes termos:
=
Tome lá! Leia! Leia as pachonchadas dum tal A P. Veja o desplante do farçola!
Parece mordido da tarântula ou que recebeu requerimento para dizer mal de tudo
por conta alheia!
=
Oh! Homem de Deus, sossegue, aplaque essas iras e conversemos tranquilos como
bons vizinhos e amigos. O homemzinho não há de ser tão mau que ache tudo
péssimo. Ora vamos lá a ver isso.
Após
lida com a atenção que o caso requeria a crítica teatral do sr A P, eu, para
julgar com imparcialidade e justiça, chamei em meu auxílio as minhas impressões
do espectáculo, e, confrontando-as com as manifestadas no Figueirense, declarei
ao amigo Roque que na verdade não concordava com aquelas opiniões, embora
fôssem abalizadas, a julgar pelo tom catedrático e categórico, que é de morrer
a rir como a Maria Rita. (Por tamanha ousadia peço, curvado e reverente, tôda a
desculpa a êste conspícuo Sarcey, mas tenho por hábito pensar pela minha cabeça
e pôr sempre de lado sentimentos que possam influir no meu ânimo. A minha
acanhada capacidade não permite ir tão longe quanto eu desejaria, mas conservo
sempre presentes as nobres e altivas palavras de Juvenal: Vitam impendera vero
– consagrar a vida à verdade!).
Vou
pois, vizinho Roque, com a franqueza e lealdade que se devem a um amigo, dizer
de minha justiça e fazer a contestação dos erróneos pontos de vista do crítico
A P, que se me afiguram castelos de cartas, derrubáveis com um leve sôpro.
Pela
leitura inteira do relato salta logo aos olhos que o crítico A P mete o bedelho
e aprecia duma assentada a parte literária da peça, a parte musical e
orquestral e emfim a parte puramente scénica. Apre que é ter talento como o
diabo! Outro que não A P, com tanta competência às costas por certo que
largaria asneira nalgumas das ditas partes. Mas o perentório A P não esteve com
meias medidas, largou a dislatar a torto e a direito.
=
Vizinho e amigo, observou Roque Maleitas, agora que estão em moda as
designações por iniciais, as dêste figurão não poderiam traduzir-se por Asno
Perfeito? Que lhe parece?
= Amigo
Roque, tanto pode dar-se essa tradução como outra adequada. Eu, sem repelir a
que lhe dá, que fica a matar, optaria pela de: - A P – a pedido – e cá tenho as
minhas razões. Mas nada de divagar e deixe-me dizer-lhe o que penso.
Em
tôdas as operetas, ainda as mais cuidadas, como o Solar dos Barrigas, o Burro
do Sr. Alcaide, a Noite e Dia, Os Sinos de Corneveille e outras, o entrecho, a
efabulação, emfim a parte meramente literária resumem-se em fantasias quási
sempre ilógicas, desenrolando-se e caminhando a acção com o fim evidente de
exibir música, e para isso não se despreza o mais insignificante episódio. Os
Amores de Mariana, produto dum artista sem mira a ostentar resplendor na
cabeça, é uma peça modesta, sem pretensões e portanto imerecedora duma crítica
ríspida, tão radical e exterminadora que a todos se afigura feita de encomenda.
Para que evocar nêste caso o Barão de Antanholes, que não é uma peça inteiriça,
nem vinca cousa alguma, como conselheiramente declara o A P? Ninguém leva a mal
ao exigente crítico a familiaridade com as operetas do sr. Pereira Correia.
Nesse ponto goza de tanta liberdade como certos animais importunos... Depois,
amigo Maleitas, afirmar que Os Amores de Mariana têm passagens pouco decentes é
mostrar desconhecimento da Giroflé – Giroflá, da Perichole, da Mascote e
tantas, tantas. Cá por mim não lhe vi cousas próprias a provocar caretas a um
pater – familias ou a fazer córar uma donzela beiroa. Com tão assanhadiço pudor
não deve o austero Aristarco pôr os pés no teatro mas deve ficar em casa
bebendo capilé de cavalinho e lendo a Imitação de Cristo. Referindo-se ao
desempenho, repare o amigo Roque, o tremebundo crítico manobrou uma rêde
varredura! Por magnânina complancência escaparam Helena de Figueiredo e António
Coelho; mas não poupou da indispensável ferroada. Para mim, meu estimável
vizinho, Helena tem mais do que jeito, tem compreensão, apresenta-se sem
bisonho acanhamento, possui voz maleável, canta agradavelmente, e bem melhor
que várias belfécias que às vezes nos impingem as secções dramáticas da
Figueira, que em questões de recta pronúncia, metem num chinelo o Padre António
Vieira.
António
Coelho pode desafrontadamente pedir meças aos esperançosos amadores em que A P
descobre futuros Talmas. Tem intuição clara das situações e não merece na scena
da embriaguês o reparo sandeu. Jaime Broeiro, que é um amador
caracteristicamente cómico, apreciável; António Silva, que exibiu um morgado
típico; Idalina Fernandes, que em scena não deixa surpreender a mais passageira
gaucherie, e os demais rapazes só mereceram do peitado crítico o esmagador
ditame: Nada mais se aproveitou!
Este
articulista de afirmações acácias, as quais não passam de lérias pacóvias, não
compreende nem avalia o esfôrço pertinaz, o trabalho paciente e exaustivo,
quási heróico, de preparar criaturas, umas insuficientemente cultas e outras
mais ou menos rudes e pô-las em condições de se exibirem em público. Não
compreende nem avalia esse trabalho colossal, e daí o artiguelho inábilmente
acintoso, verdadeira cornucópia de baboseiras, despejadas com ares doutorais.
Sentenceia êle que a marcação lhe parece deficiente. Vê-se que disso não
percebe êle nada e nem sequer sabe o que seja marcação. Melões confunde com
batatas. Desconfio, amigo Maleitas, que tôda em burundanga visa o José Ribeiro,
que é o ensaiador. Suponho que errou o alvo e perdeu o seu tempo e feitio,
porque êste belo rapaz tem como lema o conceituoso provérbio árabe: “Os cães
ladram mas a caravana passa”.
Asseguro-lhe
meu prezado Maleitas, que não é hercúlea empresa desfazer o resto da meada de
estultas frioleiras dêste Aristarco pataqueiro, mas a conversa já vai longa.
Não quero todavia deixar sem reparos a preciosa observação, talvez um pouco
ousada que reza da forma seguinte: “Em Tavarede é natural que estes senões não
se notem, agora nesta cidade, onde nem sempre agradam os nossos melhores
amadores e muitas vezes até artistas de carreira, foi arrôjo exibir uma opereta
inferior, mesmo muito inferior”.
Apesar
de residir neste velho Buarcos, você sabe, amigo Maleitas, que a tal cidade
disfruta a justa fama de ser um imenso foco de civilização, um copioso alfôbre
de sábios e de altas mentalidades, que em crítica de arte são bem mais
exigentes que os dilettants do teatro Scala, e tanto assim que amadores
ensaiadores (todos em primô-castello!) são criaturas que deram as suas provas
passando em seguida à categoria de notabilidades consagradas. Os habitantes de
Tavarede e do resto do concelho são todos bárbaros e selvagens. Como o vizinho
leu, o crítico encapotado achou cediça a música coordenada à ligeira e
interpretada deficientemente. Foi realmente um êrro de palmatória, é preciso
confessar, porque a opereta, popular e despretenciosa como é, devia ser ornada
com música dos Huguenotes ou do Barbeiro de Sevilha, e interpretada, está bem
de ver, por artistas da envergadura da Patti, da Borghia Mamo e do Caruso.
Terminando,
amigo Maleitas, e sério, sério, acho muito mais decente e honesto, mais digno
de elogios e incitamentos que o grupo dramático da Sociedade de Instrução
Tavaredense empregue em coisas teatrais o tempo que tira aos seus labores ainda
com o risco de sofrer as zagunchadas de zoilos peitados e de língua corrosiva,
em vez de seguir o exemplo da jeunesse doirée dos finitos de papo-sêco que
desperdiça os seus ócios nos gineceus da R. da Cêrca e nos santuários
recônditos da batotinha amena.
De
resto, vizinho e amigo Maleitas, que assistiu à representação da modesta
opereta, abismado com o severo julgamento dêste crítico plugúrrio, aplicará ao
mesmo a sublime quadra, que bem assenta em casos tais:
Pilriteiro
que dás pilritos
Porque
não dás coisa boa?
Cada
um dá o que tem
Conforme
a sua pessoa.
Sr. Director, pela publicação destas
linhas, que pretendem simplesmente fazer um pouco de justiça a quem a merece e
enfreiar filáucias mal intencionadas, ficar-lhe hei sumamente grato. Um leitor
da “Voz”.
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