sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

RECORDAÇÕES DE TAVAREDE

Mettido no esconderijo e sem mais preambulos, panno acima, elle ia subindo, subindo, e o caixão dando balanços desencontrados, fazia com que o Ignacio pensasse mais do que uma vez que a comedia descambaria em tragedia.


Gargalhadas e mais gargalhadas da plateia, ditos, assobios - um inferno; - e lá dentro clamava voz em grito: - panno abaixo! panno abaixo! panno abaixo!


Caiu o panno.


Sabidas as contas, todo este desastre scenico não foi mais do que uma partida que antes havia sido combinada entre a troupe da Figueira.


* * *


O Jozé do Ignacio era por tal nome conhecido, assim como um seu irmão se appelidava Manuel do Ignacio. Costumes da povoação que, apesar do decorrer d’annos, se consideravam no mesmo pé.


O verdadeiro nome d’elle era Jozé Luiz Ignacio, e a sua mulher, pelo mesmo costume, lhe chamavam a Luiza da Genoveva.


Jozé Luiz, gosava dos foros de homem bom, honradissimo, e exerceu por muitos annos o logar de mestre dos tanoeiros da casa dos srs. Jardins, n’esta cidade, aonde ha annos falleceu quasi repentinamente, victima d’uma congestão pulmonar.


Ficou a Luiza, a mulher, rodeada d’umas filhas ainda creancinhas, que se tem creado e vivido.


Nunca ella, agora que recordamos o passado, nos esquece.


A sua casa, que tinha uma modesta tenda no rez-do-chão, era a estação terminus obrigada dos rapazes da Figueira.


Ahi é que se fazia alto!


Recebia-nos com toda a lhaneza e attenções, não lhe ficando atraz o marido, um extremo cortez.


As horas passavam-se rapidas em tão agradavel companhia.


A Luiza havia-se casado em segundas nupcias com Jozé Luiz. Tinha os rasgos de animo, atraiçoados sempre por um sorriso de bondade, que nos fazia supor por momentos uma mulher-homem.


Pois apesar de duas vezes casada, e por isso um pouco gasta physicamente, apresentava-se ainda com uma frescura de espirito bastante para invejar.


Foi assim, e por estas alturas, que a vimos ainda representar no drama que já falámos - Os miseraveis de Londres - em que desempenhava o papel de uma mãe desgraçada, lamentando a sorte d’um filhinho, que jazia n’um berço a dormir o somno da innocencia, emquanto a infelicidade lhe pairava em volta, abrindo-lhe a vereda do fatalismo.


Deixemos por aqui esta lembrança que nos veio ao bicco da penna, quando defrontámos com a casa onde viveram os dois - Luiza e Jozé Ignacio.


* * *


Seguimos rua Direita abaixo em direcção á egreja. Cerca de meio caminho andado, estavamos frente a frente com a casa da tia Maria Bretôa. Desconheciamos quasi aquella habitação, hoje modificada com o acrescentamento d’um andar. A tia Maria havia morrido ha annos. A sua loja, que conhecemos, tinha á porta um molho de carqueija e uma cavaca, symbolo imprescindivel da industria de que vivia.


Lá dentro, um balcão de taboas toscas, mal ligadas, deixando entre si largas fendas, e umas divisões de boanna, muito caiadas, a desafiar a alegria.


A tia Maria era n’esse tempo o repositorio dos segredos cupidescos dos rapazes e raparigas do sitio e... dos arredores. Com ella iam desabafar os amantes infelizes, contando-lhe os seus azares, e ella, coitada, Deus lhe fale n’alma, a todos ouvia e acarinhava, dando-lhe palavras de esperança, d’um futuro lisongeiro, isto enquanto machinalmente fazia girar o fuso d’uma roca, sua habitual companheira.


Todos ali iam. Aquillo era um balçamo consolador dos pobres arrebentados do coração. Hoje... passou á historia. Coitadita! (Gazeta da Figueira - 8-4-1896)

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