sexta-feira, 16 de março de 2012

RECORDAÇÕES DE TAVAREDE

A noute apresentava-se de má catadura, forrada d’um negro profundo, não dando muita vontade de palmilhar o caminho de Tavarede á Figueira, mas isso era inevitavel.


Despedimo-nos do nosso amigo promettendo voltar a vel-o, e, quando já ao sair para a rua, Alexandre que nos acompanhava a porta, tendo reparado no calliginoso da noite, diz-nos:


- Que noite...! Nada, eu não consinto que vás. Ficas.


- Hei-de ir, repetimos-lhe.


- Pois muito bem, - já que não ficas, has-de levar um revolwer que ali tenho.


E subindo a buscal-o, entregou-nos.


Ao recebermos aquelle arcabuz ainda lhe objectámos: que só para o satisfazer o traziamos, pois que o caminho, apesar de em peores circumstancias do que hoje, era comtudo como actualmente é - limpo de maus visinhos.


Depois... aquilo não era um revolwer; era um machinismo immenso, interminavel: - uma especie de peça de Paulo Cordeiro.


Despedimo-nos então e fomos estendendo as pernas pelo caminho, não sem receio de cair em alguma ravina cheia d’agua, porque, a respeito de lama, louvado Deus, havia que fartasse: marinhava-nos já pelas calças acima. A cada passo, quando da escuridão emergia algum ponto mais escuro, julgavamo-nos logo de cara a cara com algum matador de má catadura e logo... apertavamos na mão a coronha do revolwer, pondo-o prompto á primeira voz em defeza das nossas costellas.


Chegando ás proximidades da quinta do fallecido dr. José Maria de Lemos e da capellinha das Almas, deu-nos na vista um pequeno ponto luminoso em um vallado fronteiro a ella.


Ahi temos algum malvado á nossa espera; querem vêr?


Do seio da escuridão avultava um corpo, de homem, necessariamente, mais negro ainda, e o negregado fumava muito tranquillamente o seu cigarro, sem remorso de esperar o momento em que nos mandaria para os anjinhos.


N’estas alturas bem dizia a lembrança do Alexandre em nos fornecer o revolwer.


A respeitosa distancia demos um tiro para o ar, fazendo saber ao do vallado que estavamos prevenidos.


E o maldito ficou hirto e quêdo, insensivel a tudo!


Outro tiro!


A nada o bruto se movia!


Mais outro e outro tiro...


O mesmo resultado negativo.


Motivado pelas detonações áquella hora, já se percebiam umas inquietações de luzes atravez das vidraças da casa do dr. Lemos.


Enchemo-nos de coragem, então. O medo, a conservação propria, produz algumas vezes um valente. Guardamos os dois tiros restantes para o que désse e viesse e fomos passar pela frente do facinora que nos esperava.


Arma em punho e prompto, já se vê.


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Oh! desillusão!


O terrivel, não passava de um velho piteirão, de que deixaram apenas um pouco de tronco, e o cigarro que fumava:- ... um d’esses insectos luminosos da especie dos pyrilampos, que repousava sobre o tronco carcomido do defensor dos vallados! (Gazeta da Figueira - 29.07.1896)

1 comentário:

  1. Sr. Vitor,

    Adoro ler estes relatos antigos sobre as gentes de Tavarede.

    Muito obrigado.

    Beijinhos grande

    Sandra Grilo

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