Sob o título ‘Todo o mundo é actor em
Tavarede’, a revista plateia publicou uma reportagem sobre a nossa terra e
sobre o nosso teatro. Numa pequena
aldeia, a oito quilómetros da Figueira da Foz, existe um povo que “tem
necessidade” do Teatro. Tirar-lho seria destruir uma tradição recebida dos
antepassados e que os presentes querem entregar, valorizada, aos vindouros. Em
Tavarede, assim se chama a aldeia, todo o mundo ama o teatro e é actor.
Há 66 anos, já se havia apagado há
muito na memória dos tavaredenses a lembrança da antiquíssima vila de Tavarede
que, em tempos, fora sede de importante Couto e campo de acesas lutas de
predomínio, entre os Cónegos da Sé de Coimbra, donatários da povoação, e os
Quadros, senhores da Casa que António Fernandes de Quadros fundara no recuado
século XVI. Da sua velha importância, cedida à jovem cabeça de concelho, a
Figueira da Foz, bafejada pelo mar e enriquecida pelo comércio, apenas restava
um “aglomerado de poucas e humildes casas de humildes criaturas que viviam de
cavar a terra e de trabalhar nos ofícios, sem proprietários abastados (a
maioria dos agricultores amanha terras de renda…) nem brasileiros com dentes de
ouro e algibeira recheada (a árvore das patacas nunca mandou os seus frutos à
terra do limonete)”.
Foi nesta pequena, pobre e acanhada
aldeia de menos de mil habitantes que um grupo de homens de humilde condição,
tomou a iniciativa de fundar a Sociedade de Instrução Tavaredense. A acta da
fundação, datada de 15 de Janeiro de 1904, está assinada por dois pedreiros, um
tanoeiro, um serralheiro, um carpinteiro, três cavadores, um ferreiro, dois
ferroviários, um canteiro e um comerciante.
A Sociedade “é uma associação
essencialmente destinada à instrução e educação das classes populares”, segundo
o artigo primeiro dos seus estatutos. Para realizar os seus fins, servir-se-á
da escola nocturna e gratuita “para ensino dos sócios que dela queiram
utilizar-se, e para ensino dos filhos destes” e, “como elementos educativos de
recreio – afirma-se no artigo terceiro – terá uma biblioteca e utilizará o seu
teatro, mantendo uma secção dramática”.
“Não obstante o meio acanhado em que
exerce a sua acção, tão pobre de recursos materiais como humanos, vencendo as
naturais dificuldades no recrutamento de pessoal numa aldeia tão pequena como a
de Tavarede, a Sociedade de Instrução Tavaredense mantém o seu grupo cénico em
actividade permanente desde há mais de cinquenta anos. Durante este longo
período, renovando todos os anos os seus espectáculos teatrais – refere o
programa das festas comemorativas do 66º aniversario da fundação da
colectividade – a Sociedade de Instrução Tavaredense deu teatro ao povo da sua
terra, falou-lhe de teatro, procurou interessá-lo pelo teatro, ensinou-o a amar
o teatro – mesmo contra as dificuldades que se lhe opunham e apesar das
solicitações que modernamente desviam as populações, sem excluir as das
freguesias rurais, para outro género de divertimentos”.
“Em certos casos, é sobre os elementos
que constituem os grupos de amadores que mais profundamente actuam a função
educativa e cultural do Teatro. No caso da Sociedade de Instrução Tavaredense,
por exemplo. Tenha-se presente que se trata dum grupo de amadores duma humilde
e pequena aldeia, pobre entre as que o mais são. O recrutamento é difícil,
porque a população é pequena. São bem poucas as famílias que não têm
representação no elenco. Aqui se encontram os trabalhadores do campo e das
oficinas: rapazes e raparigas que passam o dia cavando as terras e vêm à noite
ao ensaio, operários, carpinteiros, pedreiros, serralheiros, raparigas dos
alfaiates e das modistas da cidade vizinha, um ou outro empregado de escritório
também”, explica-nos José da Silva Ribeiro, de 76 anos, crítico teatral, autor
dramático, ensaiador do grupo cénico e empregado de escritório
Ele tem sabido descobrir, na
rusticidade de modestos aldeões, o sentido belo de um teatro todo feito de amor
e dedicação. Autodidacta, ensinou o povo da terra que o viu nascer, a amar, de
modo diferente, a difícil e bela arte de Talma. Solidário com os humildes,
dedica as poucas horas vagas “aos homens da enxada que cavam o amargo pão de
cada dia em terras que não são suas”.
“Se se pretende alguma coisa mais do
que mexer fantoches para divertir o público; se desejamos que os intérpretes
tomem consciência das respectivas personagens, dos sentimentos que lhes são
alma, das ideias que as determinam, da época que vivem, do ambiente em que se
movem, teremos de adoptar processo bem diferente do que se usará com elementos
de outra cultura. Por isso, aqui, o grupo cénico participa da disciplina
escolar e do prazer dum passatempo”, escreveu José Ribeiro no prefácio de “Chá
de Limonete”, uma fantasia em 3 actos e 24 quadros, especialmente composta para
ser representada pelo “seu” grupo cénico.
No ambiente sóbrio e acolhedor da sua
casa em Tavarede, quadros de Alberto Lacerda, Zé Penicheiro, Belmiro Amaral,
Paula Campos, Edmundo Tavares e outros “convivem” com retratos que são
recordações de família. Nas estantes, obras completas de Luís Francisco Rebelo,
Gil Vicente, Marcelino Mesquita, Lopes Mendonça, Molière, Shakespeare, Redondo
Júnior ou Brecht.
Não sabe falar de si. Só lhe interessa
a Sociedade de Instrução Tavaredense.
“O grupo de amadores de Tavarede, pela
sua constituição e pelo público para quem especialmente representa, não
pretende sair do seu lugar de grupo de amadores rurais, onde permanece com
plena humildade e perfeita consciência da utilidade da acção que exerce”, -
explica o ex-chefe da redacção do extinto semanário da Figueira “A Voz da
Justiça”.
“Na Sociedade de Instrução Tavaredense
– continua – não se ensaiam peças para concurso, isto é, não se fazem coisas
para júri ver. A actividade do grupo de Tavarede não visa a finalidade do
concurso. Os prémios? Mas… sem dúvida nenhuma que servem para inchar umas
tantas vaidades e alimentar despeitosas rivalidades que chegam a transbordar
nas colunas dos jornais. Se, algumas vezes, atendendo honrosos convites e
sempre com total desinteresse, o grupo deixa a sede e vai representar para
outro público, leva as obras que deu ao povo da terra. Não tem outras – pois
não escolhe nem ensaia peças tendo em vista a cultura e a exigência de outras
plateias”.
Actor aos dez anos, ensaiador desde
1916, José Ribeiro apenas conheceu os interregos da guerra, duma ou outra doença,
de determinados impedimentos.
“Enquanto for vivo e puder, Tavarede
terá teatro. Depois… o problema já não será meu”, - conclui, com um sorriso.
“Examinando a lista das peças
representadas, verifica-se que o reportório do grupo cénico foi subindo de
categoria, incluindo obras cada vez de maior responsabilidade. Os elementos do
grupo cénico foram afirmado as suas qualidades e a sua técnica, e é inegável
que a sua actuação influiu no gosto do público, cuja evolução não pode
ignorar-se. Em Tavarede, aonde, aliás, também chega a influência do futebol e
do mau cinema, existe um público que vai ao teatro por prazer e tem paladar de
certo modo apurado, não obstante ser um público simples, aldeão, de instrução e
cultura rudimentares” pode ler-se no livro das bodas-de-ouro da Sociedade.
Tavarede vive para o Teatro. Na sede,
construída pelo povo, com a ajuda da Fundação Calouste Gulbenkian, o teatro tem
lugar de honra. Quase todas as noites, de Inverno ou de Verão, esteja frio ou
haja calor, os ensaios começam às 21,30 e prolongam-se “sem o protesto de quem,
no dia seguinte, tem de entrar no emprego às 7,30” .
Legendas das gravuras: Sede: Sede da
Sociedade de Instrução Tavaredense, uma obra feita pelo povo, com o patrocínio
da Gulbenkian. Aqui, Tavarede ensaia, representa, convive e descansa nas horas
vagas. José da Silva Ribeiro: uma vida inteiramente dedicada ao teatro de
Tavarede. Violinda Medina e Silva: Com 65 anos e a viver na Figueira da Foz,
Violinda Nunes Medina e Silva nunca falta a um ensaio. “para lá vou na
camioneta da carreira e, no fim, vêm-me trazer de carro ou de lambreta” -
explica. Casada com Adriano Augusto da Silva, contra-regra e aderecista, aos 71
anos, considera o Teatro “como uma verdadeira escola. Uma autêntica
universidade quando se possuem mestres da categoria de José Ribeiro”. Amadora,
aos 13 anos, tem sido quase sempre a principal personagem feminina das peças
que o grupo tavaredense tem levado à cena. João de Oliveira Júnior: É o “mau”
do grupo. “Como ninguém gosta de fazer os papéis antipáticos e eu não me
importo, sou sempre o escolhido”. Chama-se João de Oliveira Júnior, tem 49 anos
e estreou-se, há cerca de 35 anos, “numa peça em que apenas dizia três
palavras”. Escriturário de 1ª classe, com funções de encarregado do Armazém
Regional da CP, na sede do concelho, é pai de uma jovem “que também faz teatro
sempre que pode”. Representar traz grandes benefícios tanto para as relações
humanas como para uma cultura geral. “Tenho renunciado a horas de descanso e a
dinheiro para poder estar presente em todos os ensaios” – conclui. Maria Inês
Barosa Lavos: Empregada de escritório, num armazém de mercearia, Maria Inês
Barosa Lavos entrou para o grupo de Tavarede há cerca de cinco anos, mas “já
fazia teatro quando andava na escola primária”. “Sempre gostei muito de Teatro
– afirma – e só é pena um dia não poder vir a ser profissional”. Aos 26 anos,
espera casar e, “se possível, continuar a representar. Não posso abandonar
facilmente uma coisa que me tem dado tantos momentos de alegria e me tem
ajudado tanto”. “Dente por Dente”, de Shakespeare foi a peça que mais adorei”.
Fernando Severino dos Reis: “O Teatro faz parte da minha vida. Chega-se a uma
altura que já não se pode passar sem ele”. Fernando Severino dos Reis tem 57
anos. Faz teatro desde os 14 e a filha também representou várias vezes, “mas
por causa do casamento teve de abandonar. Foi pena porque o teatro faz muito
bem às pessoas” – explica. Chefe de brigada da secção de carpintaria da CP, na
Figueira da Foz, levanta-se todos os dias às seis horas para poder estar no
emprego às 07,30, “mas – comenta com orgulho – isso nunca será motivo para se
deixar os ensaios”. José Luís do Nascimento: José Luís do Nascimento,
carpinteiro, tem 50 anos e é pai de dois filhos. Natural de Brenha, uma aldeia
vizinha de Tavarede, começou a fazer teatro na “Trupe Recreativa Brenhense”
onde conheceu José Ribeiro “numa ocasião em que ele foi lá dar os últimos
retoques a uma peça”. Nascimento afirma que representará “enquanto tiver forças
para o fazer. O teatro deu-me um á-vontade muito grande e grande facilidade de
conversa: não tenho medo de falar com um médico ou com um advogado”, - explica.
Maria Teresa de Oliveira: Irmã do encenador, Maria Teresa da Silva Oliveira
começou a representar aos 11 anos, em “Espadelada”, uma espécie de opereta
muito simples. Aos 65 anos, considera que o teatro “é muito útil para a cultura
geral e insubstituível nos intervalos da minha vida de dona de casa”. João
Rodrigues Medina: Aos 38 anos, João Rodrigues Medina gostaria que o seu filho,
de sete, continuasse a herança que ele já recebeu do pai. Natural de Tavarede,
desloca-se todos os dias para a Figueira, onde é proprietário duma pequena
barbearia, num dos principais largos da cidade. Amador há 22 anos, considera
que o teatro “como se faz em Tavarede, é muito útil para as pessoas. Aprende-se
muita coisa que, de outro modo, nunca se conseguiria”. João da Silva Cascão: “O
Teatro é a minha segunda casa. E não o é mais porque a saúde e a idade já não
me permitem muitas brincadeiras” – afirma João da Silva Cascão, natural de
Tavarede, mas, actualmente, a residir na Figueira da Foz, onde é proprietário
duma pequena serralharia de quatro empregados. Actor sem interrupção, desde os
18 anos, começou a representar porque “era a única maneira do pai (César da
Silva Cascão, um dos fundadores do grupo) me deixar sair à noite”. Agora, aos
65 anos, “só pode ser uma rábula pequena para o nome vir no programa. Já tenho
muitas dificuldades em decorar e ouvir o ponto”. José Lopes Medina: Casado, com
30 anos, José Lopes Medina representa desde os 15 anos. “Para a cultura foi a
melhor coisa que poderia ter conseguido. A minha familia tem largas tradições
no grupo e, por isso, eu não poderia deixar de representar”. Convidado, para um
“teste” pelo “Teatro Experimental do Porto” a sua vida profissional (sócio
gerente duma casa de artigos electrodomésticos, impediu-o de aceitar a
proposta. “É uma pena – comenta – que todas as terras não tenham o seu grupo
teatral”. António Manuel Morais: Tem 17 anos e frequenta o sétimo ano do liceu.
Filho dum segundo oficial, chefe da secção do Grémio dos Armadores de Pesca da Sardinha,
e duma professora primária de Tavarede, foi para o grupo “por saber que era
dirigido por um homem de talento que sabe muito de teatro”. Grande apaixonado
da fotografia e da música considera o Teatro “como uma evasão e uma fuga”. O
profissionalismo é hipótese a considerar e, quando em Outubro for para a
Universidade (estudar Direito) tentará o teatro universitário. Rosa Maria dos
Santos Rodrigues da Silva: Tem 17 anos e é a mais velha duma familia de sete
irmãos. Aprendiz de costureira numa fábrica de malhas foi para o teatro pela
mão da Maria Inês. Natural de Cacia (Aveiro) vive há seis anos no Casal, uma
aldeia que dista de Tavarede cerca de meia hora. “Nunca faltei a nenhum ensaio
a não ser quando estou doente”. Ser actriz profissional é o grande sonho da sua
vida.
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