E
não devemos deixar de registar que o espectáculo, em Coimbra, com a peça O tartufo, em benefício da Obra do Prof.
Dr. Elísio de Matos, foi filmado pela Radiotelevisão Portuguesa que,
posteriormente, apresentou diversos excertos.
Com
toda a certeza que se estranhará, neste trabalho de relembrar o associativismo
na terra do limonete, dedicarmos tanto espaço com transcrições de notícias
sobre a actividade da Sociedade de Instrução Tavaredense e fazermos tão poucas
referências ao Grupo Musical e de Instrução e à terceira congénere da
freguesia, o Grupo Musical Carritense. Toda a razão, é verdade, mas o caso tem
uma explicação, por acaso bem simples. O Grupo Musical e de Instrução
Tavaredense, que teve um brilhante passado e que durante cerca de vinte anos
desenvolveu extraordinária influência na vida associativa e cultural da nossa
terra, nomeadamente através do teatro e da música, devido à falta de
instalações, dedicava-se, neste tempo, quase que em exclusivo, à realização de
festas dançantes, das quais guardamos tão saudosas lembranças, com a excelente
colaboração do seu conjunto musical privativo, o Lúcia Lima Jazz, não deixando,
também, e quando o julgava oportuno, aqui trazer outras afamadas orquestras, as
quais eram sempre um atractivo para elevado número de frequentadores.
Não
esquecemos, igualmente, a confraternização que proporcionava com a realização
de passeios e a diária afluência de espectadores assíduos aos serões
televisivos. Quanto ao Grupo Musical Carritense, que inicialmente se dedicou,
mais activamente, à música, com a sua tuna e a sua aula de música, igualmente
se dedicava ao recreio de seus sócios e famílias, passou, algum tempo depois, a
dedicar-se também ao teatro. Mas, a principal razão de pouca informação nossa, é
que, quando nos dedicámos à recolha das notícias da nossa terra,
preocupámo-nos, quase que exclusivamente, à velha e pequenina aldeia, não
recolhendo, e agora o lamentamos, muita da informação encontrada sobre a
restante freguesia. Confessamos este nosso pecadilho, mas, confessamos, já não
temos coragem de voltar à leitura dos velhos jornais figueirenses, para
rebuscarmos o que não recolhemos na altura. E dada a explicação, que entendemos
necessária, continuemos com a nossa história do associativismo em Tavarede.
Como
todos sabemos, a década de 70 trouxe grandes alterações, não só a Tavarede,
como a todo o País. O antigo Paço dos condes de Tavarede havia mudado de
proprietário. E a mudança trouxe novos problemas ao Grupo Musical, com o
senhorio a querer a sua saida e sem querer fazer quaisquer obras de
conservação, ressentindo disso o imóvel, com o inevitável aumento de
degradação.
Em Agosto de 1971, a colectividade
festejou os seus sessenta anos de existência. Mais uma colectividade de grandes serviços prestados à cultura popular
que vai comemorar o seu aniversário: o Grupo Musical e de Instrução
Tavaredense. Com as suas actividades bastante restringidas, nem por isso o
Grupo Musical deixa de ter jus à homenagem que lhe é devida.
Programa das festas: 22 de Agosto – às
8 h. alvorada e saída de uma fanfarra que percorrerá as ruas de Tavarede; às 12
h. exposição da sede; às 22 h. sessão solene e posse aos novos corpos gerentes,
seguindo-se um baile de gala abrilhantado pelo seu magnífico conjunto privativo
Estrelas do Mondego. Como
se nota, o programa era bastante simples e o seu conjunto musical privativo já
pertencia ao passado.
Na Sociedade, de depois de nova
fantasia, História e... histórias de
Tavarede, o grupo cénico voltou aos dramaturgos portugueses e apresentou,
na sua sede, A forja. Alves Redol faz girar o conflito que separa
e isola e destrói os personagens, uma família, à volta de três temas centrais:
a perseguição cega de um objectivo materialista com fim único da vida (no caso
de “A Forja”, a compra de uma casa); a decepção da mulher perante o homem
outrora amado, decepção que ela pretende ultrapassar centrando o amor de mãe no
filho mais novo, a esperança na vida renovada; e o inelutável fracasso da vida
se o homem abandona o seu destino em mãos alheias (mesmo que sejam as do
próprio pai).
O dramatismo da peça adensa-se porque
Redol lança mão não de um mas de dois sentimentos profundos: o materialismo
cego do pai e o excessivo amor da mãe.
Redol segue a lição de Balzac, que
introduziu na literatura o tema da importância vital do dinheiro na vida.
Balzac concentra, digamos, o amor ao
dinheiro e aos três filhos numa personalidade, no pai, em Goriot. Redol
serve-se de dois personagens para dar figuração àqueles sentimentos. O “père
Goriot” é mais humano: o amor às filhas vence as preocupações do dinheiro.
Talvez propositadamente Redol só dá rapazes ao casal desgraçado, assim isolando
ainda mais o “pai”.
Mas a densidade do dramatismo da peça
de Redol ressalta ainda num traço próprio da alma portuguesa, a visão exagerada
do trágico da existência, que nos atraía Unamuno, o genial espanhol, um dos
estrangeiros que mais nos admirou e amou.
Este elemento, a visão exagerada do
trágico da existência, é sabiamente explorado por Redol.
A intensidade dos sentimentos, o apego
do pai à forja, fonte do dinheiro que permitirá a compra da casa; a decepção da
mãe, que a leva a centrar toda a capacidade de amar no filho mais novo, e quase
cega para o plano inclinado em que a família, como um bloco, rola para a
destruição, desenham estas figuras a traços fortemente marcados, diremos mesmo,
excessivamente acentuados.
Redol fez uma peça para portugueses, é
certo, para gente que, como o “pai” da “Forja”, aceita o trágico da existência,
a força do destino, como ele repete. Mas não terá Redol perdido, dalguma
maneira, o sentido da medida? Não terá ele ido um pouco além? Não quererá
Redol, com este apontar da resignação ao trágico da existência, criticar,
mostrar o absurdo deste sentimento? Redol parece dizer, através do “pai”, que o
homem deve ser indiferente ao destino, deve lutar sempre, como um homem
autêntico. A morte do “pai” às mãos da “mãe” parece deixar crer que o homem
será castigado se viver alheio a tudo, ao seguir cegamente uma paixão. O “pai”
sente que fracassou por se ter fixado, abandonado a vida de vagabundo. Também
aqui Redol aflora um tema trágico: o das paixões amorosas intensas, fonte de
infelicidade.
No fundo, este entrechocar de temas e
sugestões, Redol talvez queira dizer que na miséria, entre gente esmagada por
dívidas, sacrificada pelo trabalho, mal alimentada, a luta acaba na
auto-destruição. O trabalho só por si, bem no fundo, nada resolve, é inútil o
esforço.
Todavia, esses excessos de Redol, homem
de sentimentos profundos, homem que talvez se revoltasse contra uma visão
dominadora do trágico da existência, não prejudica a peça. Sentimo-nos opressos
pelo dramatismo de Redol, mas não nos cansamos.
A arte de Redol surge a toda a luz no
perdão que concede aos pais, na simpatia pelo povo, o povo humilde, por vezes
endurecido por séculos de miséria e opressão.
Certo que Redol humaniza por vezes a
ferocidade dos dois desgraçados. Fá-lo, porém, episodicamente, em lances
propositadamente rápidos. O ambiente bravio e tormentoso em que o conflito se
desenvolve, em tom ora colérico ora lamentoso, ameniza-se por vezes
instantâneamente, como acontece nas grandes tempestades. Mas desde logo a
cólera, o ódio, o desencanto retomam os seus direitos. Tudo isto é dado com uma
arte, um poder, uma força latente que a encenação de José Ribeiro nos parece
ter servido fielmente.
As aproximações e os distanciamentos
das figuras estão bem marcados, conjuga-se bem o texto com a movimentação dos
personagens.
Se aqui e ali se notam certas
hesitações, uma ou outra rigidez de atitude, tudo incipiências próprias duma
primeira representação, a movimentação das figuras, o ritmo global da
representação foi francamente bom. As aparições da “Morte” são momentos de
grande beleza rítmica e de intensa densidade emocional.
A presença de Violinda Medina garantia,
a priori, um êxito para a peça; mas a actuação de sábado excedeu a expectativa.
Uma notável representação da excelente amadora, que se elevou há muito tempo a
um nível invulgar. Todo o dramatismo da figura difícil e atormentada de uma mãe
vergastada por sentimentos contraditórios é transmitido com sobriedade,
delicadeza e verdade.
João Medina, no pai, enquadra-se num
esquema simples, que aceitamos, porque o sentimos emanado do texto e da
encenação, mas a que pomos algumas reticências. Não poderia haver menos rigidez
nas atitudes, com mais frequência? O clima geral da peça, o vigor do texto, a
força da movimentação dos personagens não permitiriam atenuar a dureza das
atitudes individuais?
Mas, digamo-lo sem reservas, Violinda e
João Medina quase se igualam no vigor, na firmeza com que nos deram uma noite
de teatro de aplaudir.
José Medina e João de Oliveira Júnior,
dois dos quatro filhos, souberam também acompanhar o nível da representação. E
nisto está o seu melhor elogio. João de Oliveira Júnior é o elemento
consciencioso de sempre, a um tempo sóbrio e brilhante, e José Medina sustentou
bem – e valorizou-as – cenas que poderiam afrouxar nas mãos de um amador menos
bem dotado.
Os restantes surgem como peças
secundárias mas nem por isso menos essenciais ao equilíbrio do conjunto. Que
nunca tivessem claudicado com manifesta evidência, é mérito deles e duma
encenação cuja mão firme e sabedora está sempre presente.
As virtudes desta peça de Redol e deste
grupo de magníficos amadores poderiam levar-nos mais longe, mas cremos que
estas linhas serão suficientes para dar ideia da valia do espectáculo de sábado
em Tavarede, e que o público soube compreender.
De vez em quando, a chamada ‘grande
imprensa’ lembrava-se da nossa humilde aldeia. Nesta ocasião foi a revista
Radio & Televisão. Tavarede é uma
pequena aldeia a dois passos da Figueira da Foz. Aparentemente, nada a
distingue das que lhe são vizinhas: todas as manhãs os tavaredenses partem para
o trabalho no campo, no escritório, na fábrica, na oficina e todas as tardes
regressam cansados. Mas Tavarede é uma aldeia única, não só no concelho da
Figueira da Foz como, talvez, no País: há quase 70 anos que o teatro constitui
ali um poderoso factor de educação e de cultura.
A Sociedade de Instrução Tavaredense
vai comemorar, no mês de Janeiro, o seu 68º aniversário. Com um espectáculo de
teatro, como sempre, já que a Sociedade é o orgulho da aldeia e o teatro entrou
de há muito na sua vida. Que espectáculo será, ainda não se sabe. Mas a
despeito do tempo que falta, ninguém se sente grandemente preocupado. A seu
tempo, tudo se resolve e os 40 amadores do Grupo de Teatro da Sociedade de
Instrução Tavaredense, além da confiança cega que depositam no seu director,
José da Silva Ribeiro, têm já muita pratica do oficio. Bastará dizer que, para
eles, não há temporada: trabalham durante o ano inteiro.
Aparentemente, Tavarede é uma aldeia
como qualquer outra, sem nada que a diferencie. Mas Tavarede tem a Sociedade de
Instrução Tavaredense e foi (talvez) a única aldeia do País onde se comemorou a
sério o IV Centenário da publicação de “Os Lusíadas”.
Tudo começou há meses, quando o
director dos Serviços Culturais da Câmara Municipal da Figueira da Foz, dr.
Vítor Guerra, solicitou à Sociedade de Instrução Tavaredense que organizasse um
espectáculo comemorativo da publicação de “Os Lusíadas” e que o Município
ofereceu ao público da Figueira. Em pouco mais de três meses, José Ribeiro
montou um espectáculo que envolve todos os componentes do grupo. A população da
Figueira da Foz viu e aplaudiu, mas a estreia fez-se, como sempre (“Tudo o que
fazemos é para o povo de Tavarede”, afirma José Ribeiro), em Tavarede.
A primeira parte é constituída pela
representação do “Auto de El-Rei Seleuco”, de Camões. Como actores principais,
participam um barbeiro, quatro estudantes do ensino secundário, dois empregados
de escritório, um serralheiro e um carpinteiro. A segunda parte é constituída
pela representação de uma evocação (“Camões e Os Lusíadas”), da autoria de José
Ribeiro.
Nomes? Talvez não valha a pena. Cita-se
apenas como exemplo João Medina, de 40 anos de idade, barbeiro de profissão.
Actor amador há cerca de 25 anos, desempenhou o papel de “El-Rei Seleuco” e foi
este o primeiro contacto que teve com a obra de Camões. Sempre que pode, lê o
seu livro, como aliás todos os outros, que frequentam assiduamente a biblioteca
da Sociedade. Mas a maior parte das suas horas livres vai para o teatro, e João
Medina tem hoje uma experiência que lhe permite falar de Shakespeare, de
Molière, de Gil Vicente, de tantos outros que a grande maioria da população
rural portuguesa desconhece inteiramente.
Referindo-se ao Grupo de Campolide,
assinalava recentemente Joaquim Benite numa entrevista ao “Jornal de Noticias”
que “o grupo encara o teatro como uma tribuna, cumprindo-lhe duas funções: a
lúdica e a cultural, uma e outra inseparáveis”.
Estas palavras são válidas para o Grupo
de Teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense. Ali, a função lúdica e a
função cultural vivem lado a lado, interpenetram-se, confundem-se até. Não se
trata apenas de representar para passar o tempo. Como me dizia um dos actores
mais velhos, João Cascão (68 anos conservados), o que se procura fazer é teatro
educativo.
Camões? Pois venha lá Camões. E durante
os ensaios todos falaram de Camões – da sua vida e da sua obra, da época em que
viveu, do seu lugar na História da Literatura, de tudo o que dissesse respeito
a Camões – sob a orientação segura de José Ribeiro, que aos 78 anos de idade (a
completar no próximo dia 18) fala e trabalha com a alegria e o vigor de um
jovem.
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