E mais uma vez Molière teve uma peça
sua em cena. Aqui deixamos um comentário. Molière
voltou a Tavarede e parece-nos que em boa hora!
A noite estava muito fria e chuviscosa,
e desaconselhada numa sala sem aquecimento. Contra isso, além do agasalho,
sempre pouco e de alguns rebuçados, levava o gosto de ver os amadores de
Tavarede e Molière.
Valeria... entretanto, o risco? Porque,
desta vez, havia mesmo risco... Ia levar meu filho ao teatro; era a primeira
vez que tal acontecia: como iria reagir ele, nos poucos anos que ainda tem?
Os primeiros momentos aumentaram as
minhas dúvidas: o mobiliário pareceu-me pobre, desirmanado como não é uso em
Tavarede; João de Oliveira, um dos melhores elementos do grupo, pareceu-me
suportar com dificuldade um papel que lhe não quadraria bem; José Medina,
sempre cheio de brio e de coragem – nesse esforço de aplicação, acho-o
comparável só a Maria Inês -, não conseguia também imprimir a necessária
convicção ao papel que lhe competia; e Amilcar Vitorino, num criado a favor do
“jovem enamorado”, não possui ainda, jovem como é, nem voz nem postura própria,
no palco...
A pouco e pouco, porém, as coisas
entraram de encaminhar-se. E, ao longo do tempo, João Cascão e Violinda sempre,
e João Medina com bastante frequência, tomaram conta da situação: a posição
difícil dos outros foi-se esbatendo; e o palco entrou a encher-se de alegria e
força bastantes para suportar uma que outra crise, como a da voz suave, mas
cheia de monotonia, de Alice Lontro.
O espectáculo merece, pois, nota
positiva. Pessoal, mas sentida: o meu filho seguiu sempre atento o desenrolar
da peça, compreendeu-a, riu sem reticências nos melhores momentos cómicos e
ainda hoje frequentemente os evoca. De quanto não estará servindo, aos
Tavaredenses, a reflexão que têm feito sobre Molière?...
E a notícia de que estão no fim as
representações do “Avarento”, não pode deixar de causar-me pena. Quando tanto
se fala em Cultura, é de lamentar que espectáculos como este que Tavarede tem
oferecido a todos, não sejam vistos nem apreciados ao menos por uma maioria de
estudantes: seriam o melhor complemento de muitas aulas, sobretudo de História
e Literatura. Para quando o movimento em tal sentido?
Sobre esta peça, recordamos que o
tradutor da mesma, o ilustre vulto do teatro amador dos Estudantes de Coimbra,
Professor Dr. Paulo Quintela, veio propositadamente assistir a um espectáculo. Se o actor faz o espectáculo, o público faz
o actor. É assim no sentido do melhor, como no sentido do pior. Isso mesmo
esteve à prova no sábado passado, na sala de espectáculos da Sociedade de
Instrução Tavaredense.
Voltámos a Tavarede. Não iamos,
propriamente, ver Molière, que já ali nos fora dado semanas antes; iamos ver os
Tavaredenses, estar um pouco com eles, no acto do seu encontro com quem lhes
fornecera uma versão em
cena. Iamos , portanto, no melhor estado de espírito: sobre o
espectáculo, já prestáramos as provas, fracas mas bem intencionadas, que
haviamos de prestar, quando aqui mesmo, em tempo nos referimos a esta
representação de “O Avarento”; desobrigados disso, apenas queriamos fazer
companhia aos Tavaredenses, dar-lhes a nossa parte na estima que se lhes deve,
pelo quanto de bom têm feito, através do Teatro, pela sua terra e pela
Figueira.
Bem mal avisados iamos, afinal! Porque
o nosso espírito crítico foi outra vez provocado, impondo este regresso...
O actor faz o espectáculo; o público
faz o actor...
Representar deve ser sempre um acto
sério, para os amadores de Tavarede; mas representar diante do mestre de Teatro
Paulo Quintela, era coisa bem mais grave: imprimia ao acto uma espécie de
solenidade...
Terão sentido isto os Tavaredenses:
sentados nos balcões, longe do palco, bem notámos que andava no ar, enchendo a
sala, a atmosfera tensa de um dia de exame...
E a prova foi positiva! As figuras
gradas não deixaram de o ser e as mais humildes generosamente deram o melhor de
si; certas posições no palco ganharam um pouco de à-vontade, algumas vozes
adquiriram naturalidade maior, e a representação subiu toda. Um tal progresso
não se deve, seguramente, apenas a um maior número de ensaios.
Mas o espectáculo desta vez, não findou
com o avarento virando costas à vida, dando ao mundo o seu testamento negativo.
Talvez determinado pelas palavras com que José Ribeiro abriu a representação,
talvez também por esta mesma, e sem dúvida pela chamada que no final lhe foi
feita, Paulo Quintela foi ao palco. E deu uma lição.
As suas profundas raízes no povo, a sua
completa escola de teatro, a sua cultura verdadeira, a sua vivência de professor,
tudo ali se juntou, para uma lição inteira, com exposição e crítica, com
aplauso e apelo.
Nós, que sabemos tão bem quanto valem
estas coisas, estamos certos de que as palavras do Prof. Doutor Paulo Quintela
foram o melhor prémio para os Tavaredenses, para José Ribeiro, para os
admiradores fiéis do esforço pelo Teatro da SIT, e, até, para alguns que
naquela noite ali estiveram só por dever social.
Num dos intervalos do espectáculo,
foram oferecidas lindas flores às Exmas. Esposa e Filha do Prof. Paulo
Quintela.
Após o espectáculo, no salão nobre da
Sociedade, realizou-se um beberete, durante o qual usaram da palavra os srs.
António Lopes, presidente da Direcção, o Doutor Paulo Quintela e José Ribeiro.
Nesse encontro, além dos corpos dirigentes da agremiação, dos artistas amadores
e de amigos e familiares do ilustre visitante, lembramo-nos de ter visto os
srs. dr. Artur Beja e Esposa, banqueiro Jerónimo Pais e esposa, gravador
Moreira Júnior e Esposa, dr. Adelino Mesquita, reitor do Seminário, industrial
Freitas Lopes e arquitecto Isaias Cardoso.
E é também imprescindivel a transcrição de uma nota, escrita
por Mestre José Ribeiro, sobre a situação da cultura na Figueira. _ Vocês atordoam-me logo com o primeiro
quesito: “Como situa o actual panorama cultural da Figueira? Porquê? Soluções”.
Certamente vos enganou algum Frei
Manuel de Santa Clara, guiando-vos a Tavarede: já aqui não mora aquele D.
Francisco de Mendanha, meu vizinho, senhor de larga cultura nas filosofias e
que falava e escrevia o italiano e o francês tão bem como o português...
Cortando cerce a questão: - não me
julgo capaz de responder ao quesito formulado. Tentando fazê-lo, sinto-me
emaranhado em
confusões. Primeiramente , teria de me determinar sobre o que
deve entender-se por panorama cultural. Um panorama cultural não será um
conjunto de vários aspectos de cultura? Uma alta cultura científica pode não o
ser nos domínios da arte; um grande artista plástico, ou músico, ou bailarino,
com larga cultura nos domínios restritos da sua Arte, pode desconhecer a
cultura científica (digo que pode, não digo que deve); um
consagrado escritor, um romancista de génio, podem ser alheios à cultura
musical; um grande nome no desporto pode ser glória nacional sem deixar de ser
analfabeto...
Mas se bem interpreto o vosso
pensamento, por panorama cultural deve entender-se um conjunto de
actividades nos domínios do espírito, aquele conjunto de manifestações
intelectuais e artísticas que constituem o que se chama civilização. (Cuidado
que também nos civilizados pode haver ausência de cultura...). Sendo
assim, responderei que o panorama cultural da Figueira não é brilhante, muito
pelo contrário. Digo isto sem esquecer alguns esforços e tentativas que não me
canso de aplaudir e convém intensificar: conferências, exposições, concertos
musicais, espectáculos de bailado e de teatro, etc.
...de teatro.
Ou muito me engano, ou foi o teatro que
vos lembrou Tavarede. Não vejo outro motivo que justifique a minha chamada ao
vosso inquérito.
No que respeita a teatro, andamos
realmente muito por baixo. Pode dizer-se que o nível desceu bastante. Não me
refiro à qualidade do teatro que se representa, mas à quantidade
do público que vê teatro. Há anos atrás, uma Companhia de declamação que viesse
à Figueira tinha garantidas duas e até três casas cheias por assinatura, e
ainda uma extraordinária. Hoje... com um só espectáculo, a casa fica vazia. As
peças não tratam problemas actuais? Os assuntos e a técnica são as do teatro
burguês? Desculpas de mau pagador... Peças actuais nos assuntos e
arrojadíssimas na técnica e na encenação – ficam às moscas. Ainda não há muito
aí esteve uma Companhia com Pirandello: 80 pessoas perdidas, afundadas no vazio
dum barracão que levaria mil. E com amadores? Se se não impingem os bilhetes com
a circularzinha a pedir aceitação – o público não vai. Uma nossa associação de
raiz bem popular e com uma enorme e entusiástica e orgulhosa massa associativa,
quis ter Molière na sua festa de anos; e Molière foi-se embora envergonhado com
a vergonha de lhe terem virado as costas, deixando-o em cena a fazer rir... as
cadeiras vazias.
O povo foi chamado e levado para outras
manifestações culturais. Que o desporto, e portanto o futebol, também entra no
panorama cultural. Neste aspecto a Figueira subiu bastante. Já nem lhe faltam
cenas de tiros no campo para atingir categoria internacional. No folclore já lá
chegámos – a Figueira é internacional (que Lopes Graça nos acuda!)...
A abundância de campos de jogos
confrontada com a míngua de teatros define uma orientação, marca bem uma
preferência, não é assim? “O teatro é um grande meio de civilização, mas não
prospera onde a não há” – disse Garrett. (Recomendem ao tipógrafo que empregue
caixa alta – que os grafadores modernos me desculpem a caturrice – porque eu
não me resigno a escrever Garrett com o mesmo g minúsculo com que
escrevi grafadores).
Mas... vamos a ser francos! Não vos
parece que o programa cultural da Figueira não o é apenas da Figueira, porque é
o panorama geral do país? As mesmas deficiências e desvios que notamos no nosso
concelho vêem-se por toda a parte. (Digo concelho, supondo que Vocês, quando
dizem Figueira, não pensam apenas na cidade). É verdade que noutras terras há
manifestações de arte e de cultura (cá estou eu sem querer a fazer divisões) em
que a Figueira se fica muito atrás – e é isto que dói à nossa prosápia
bairrista... Por exemplo: a Figueira não tem um teatro. O Peninsular não
satisfaz e o Parque é uma vergonha. Quando é que o vosso jornal desencadeia a
corajosa campanha meritória que faça derrubar o barracão hediondo que há tantos
anos aguarda camartelo?
Pedem Vocês que eu indique soluções
para o panorama cultural! Coisa complexa, que excede as minhas possibilidades.
Porque, quanto a mim, o panorama cultural engloba problemas que têm a sua base
num problema mais amplo – o da educação. Sim – a educação! Esse é que é o
grande, o fundamental problema. Tudo o mais vem daí.
... Se as entidades oficiais deveriam
debruçar-se...
Claro. Se o não fizerem não cumprem a
sua função. E não apenas as autarquias locais, que o problema não é local, é
nacional. Mas cuidado com o debruçar. Debruçar sem perder o equilíbrio,
para não caírem, porque se caem, esmagam-nos. Como tem acontecido. Os
resultados estão à vista. Aqui, e só no problema do teatro, poderia eu desfiar
um longo rosário. Iríamos longe, não digo no tempo... mas no espaço. O
silêncio é de ouro, diz o ditado. Eu sinto que é de chumbo.
Restringindo-me ao panorama cultural
da Figueira, penso que a Câmara Municipal, a Comissão de Turismo, as Juntas
de Freguesia (coitadas dalgumas, que não têm verbas sequer para tapar os
buracos dum caminho) alguma coisa podem e devem fazer, dando incentivo a apoio
material a certos empreendimentos susceptíveis de influírem na melhoria do
nível cultural do nosso povo; e o mesmo direi dos clubes desportivos, das
filarmónicas, das colectividades que têm ou podiam e deviam ter grupos de
teatro.
Que se tem feito neste capítulo?...
Acode-me agora à lembrança a tão bela e
patriótica “Campanha Vicentina”. Fê-la um grande poeta, o mesmo que com
enérgica e expressiva palavra, aqui irreproduzível, definiu o estado patológico
da alma nacional. Pois Afonso Lopes Vieira conta-nos na sua “Campanha
Vicentina” que numa das visitas ao grande pintor Columbano o encontrou a
pintar. E enquanto o artista-pintor ia pintando, o artista-poeta desabafava
numa elegia sobre os males de Portugal. O artista-pintor continuava a pintar...
E o artista-poeta longamente carpiu, chorou e lamentou o abandono das crianças,
a tortura dos animais, o estrago das paisagens, a desonra dos monumentos, o
desprezo da linguagem... Columbano voltou-se para o poeta, e com a paleta e os
pincéis na mão, respondeu: - “Pois eu, por mim, não posso fazer mais”. E
continuou a pintar.
Também eu não posso fazer mais. Mas eu
não passo de pilriteiro.
Só
posso dar pilritos.
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