domingo, 7 de dezembro de 2014

Histórias e Lendas - 10

            “Desce-se por uma rampa em degraus, limpa e arranjadinha, com verdura e flores a ladeá-la. Ao fundo, um alpendre bonito alberga a linfa sussurrante. Não falta sequer o azulejo alusivo, moderno, mas de bom gosto. Depois, é beber, mesmo sem sede.
            Não admira que o culto ancestral das águas tivesse sobrevivido até quase aos nossos dias. Sabe-se lá se o tal homem primitivo que por ali andou não foi o primeiro a celebrar esta fonte?
            Era no primeiro de Maio, quando a terra se cobre de flores e os dias são mais alegres. Lá iam, de manhã cedo, rapazes e raparigas de todas as aldeias em redor a buscar a água fresca. Durante a noite, as cachopas nem se tinham deitado, a enfeitar as cantarinhas com flores, laços e fitas de seda. Cantarinha cheia... coração a bater mais...
            Era o folguedo, tambem e principalmente. Juntavam-se toques de guitarras e violões, flautas e harmónios, ferrinhos e pandeiretas. Dançava-se de roda pelas ruas e largos enquanto as vozes cristalinas subiam nos ares, a desafiar os passarinhos num hossana á mãe natureza.
            Depois vinha tudo até à Figueira fazer as compras ao mercado e a trazer à cidade o ar do campo, afinal ali tão perto”

Era um dos nossos passeios favoritos nas noites quentes e luarentas do verão. Sentávamo-nos nos degraus das escadas que dão acesso à fonte e ali nos quedávamos horas infindas. O ar que se respirava cheirava deliciosamente ao limonete. Era dos muitos arbustos das leiras e dos quintais vizinhos. Muitas vezes, no silêncio da noite, ouvia-se o chilrear dos rouxinois e dos pintassilgos nos salgueirais próximos.

“A todos deixo contentes, porque a todos satisfaço o desejo que os trás à fonte: dou-lhes de beber, e ensino-lhes, com a minha canção, a não dizer mal de ninguém...”. (Chá de Limonete)

Inspirava poetas. Pela tardinha lá iam as mulheres tavaredenses, com os seus potes e cântaros de barro, buscar água fresquinha para se beber e para cozinhar. Da cidade vizinha também era a hora de virem à nossa fonte encher os garrafões. Conta-se que o saudoso tavaredense António Cordeiro, tinha no seu estabelecimento no Bairro Novo, um enorme cântaro com água da nossa fonte, o qual era muito procurado por apreciadores duma boa água pura e fresquinha.

No ano de 1946, a autarquia local mandou beneficiar e alindar o local.

“A risonha aldeia de Tavarede, que – diga-se de passagem – completamente desacompanhada por quem tinha o dever de o fazer, em muitas úteis e proveitosas tem contribuído para o bom nome e prestígio do concelho da Figueira, num legítimo anseio de fugir do sistema rotineiro em que, no factor melhoramentos, há largos anos se debate, acaba de dar provas do que vale a acção e boa-vontade da sua ordeira gente, empreendendo e realizando alguns melhoramentos públicos, cuja falta bastante se fazia sentir.
            A actual Junta de Freguesia, presidida pelo sr. António Lopes, além de outras obras de grande utilidade, já consumadas, no passado sábado inaugurou um chafariz no largo do Senhor da Arieira e descerrou, na pitoresca fonte da afamada água de Tavarede, duas interessantes lápides com os seguintes versos do ilustre poeta e publicista figueirense, nosso querido e velho amigo, sr. Manuel Cardoso Martha:

Tu, sequioso, que vens                                   É casta, límpida e pura         
À fonte de Tavarede,                                      e assim deves ser também;               
Cuida na água e seus bens                            é calada, e, se murmura,
Enquanto matas a sede.                                Nunca diz mal de ninguém.

            Cerca das 13 horas, chegaram ao Senhor da Arieira as entidades oficiais, nomeadamente, os srs. dr. Álvaro Malafaia, presidente da Câmara Municipal, engenheiros António Rei e José Redondo, capitão Militão e João Guilherme Delgado, vereadores, que foram recebidos, festivamente, pela Junta de Freguesia e por muito povo. O sr. dr. Malafaia cortou a fita simbólica. Soam palmas. E “vivas”. Detonam foguetes. Gentis raparigas, entre sorrisos alegres, entregam ao sr. presidente da Câmara flores viçosas colhidas nos canteiros ubérrimos da linda “Terra do Limonete”.
            Entretanto, a caravana desce ao burgo, sendo recebida em alvoraçada manifestação de apreço e carinho pelo povo, não escondendo as ilustres entidades a sua alegria pela surpresa colhida, através dos benefícios pela Junta introduzidos na terra, que ainda há meses se encontrava em miserável estado de asseio.
            Seguidamente, autoridades e povo tomam o caminho da fonte, muito asseiada e ornamentada com plantas e flores. Nas paredes laterais aos canos que brotam, espontaneamente, duas maravilhosas e cristalinas linfas, que são a delícia do povo da terra e da Figueira, pendem duas colgaduras de seda, sob as quais estão, em azulejos desenhados pelo lápis privilegiado de Rogério Reynaud, os versos que acima transcrevemos.
            É ainda o sr. dr. Álvaro Malafaia quem procede aos respectivos descerramentos.
            António Lopes, activo e dinâmico bairrista, cuja vontade de ferro em elevar a melhor nível de prosperidade a sua terra, e que por nada arrefece ou desanima, fala pela paróquia a que preside. E evoca nomes, a quem rende homenagens e agradecimentos. Diz do que já se fez e do muito que ainda há para se fazer em Tavarede. Confia em si e nos colegas da Junta. Confia na boa-vontade do seu povo. E conta com a imprescindível colaboração da Câmara Municipal. Findou o seu discurso com “vivas” à Câmara, a Cardoso Martha, a Rogério Reynaud, a António Vítor Guerra, etc.,  etc..
            Encontrando-se casualmente, em Tavarede, sua terra natal, o sr. António Medina Júnior, director do “Jornal de Sintra”, acompanhado de sua esposa, também natural daquela hospitaleira localidade concelhia, a Junta convidou-os a assistir às festas a que nos vimos de reportar. Assim, no uso da palavra, o sr. Medina Júnior agradeceu a António Lopes todos os benefícios em prol do seu lindo burgo e pediu ao sr. presidente da Câmara que acarinhasse, o melhor possível, as boas vontades que ali se encontravam e estavam empenhadas em trabalhar pelo progresso e prestígio de uma adorável aldeia que fôra mãe da “Rainha das Praias de Portugal”.
            Seguiu-se no uso da palavra o ilustre poeta Cardoso Martha, que teceu um hino às belezas e tradições de Tavarede e do seu bom povo.
            Numa das dependências do palácio do Paço de Tavarede, propriedade do grande amigo da freguesia sr. Marcelino Duarte Pinto, foi oferecido, pela Junta e servido por gentis raparigas, um almoço regional às entidades camarárias e a alguns convidados de honra.
            Durante o repasto, que revestiu um cunho acentuadamente familiar, usaram da palavra os srs. dr. Álvaro Malafaia, Cardoso Martha, António Lopes, capitão Militão, António Medina Júnior e Marcelino Duarte Pinto.
            Às entidades oficiais foram oferecidos mais ramos de flores, a que não faltava o característico limonete, quando da sua retirada para esta cidade, o que se deu por entre palmas e “vivas” entusiásticos.
            À noite exibiu-se, na esplanada da Sociedade de Instrução Tavaredense, o aplaudido “Rancho das Rosas”.
            Embora a Junta de Freguesia não fizesse participações à Imprensa, não podemos deixar de nos associar, com muito prazer, às festas realizadas no passado sábado em Tavarede, festas essas que aliás representavam pensamentos e sacrifícios postos em prática e traduzem obras públicas que impõem o meio e dignificam quem as empreendeu e realizou.
            Estas manifestações de actividade e de progresso regozijam-nos. Por isso as registamos nas nossas colunas com o maior aprazimento e carinho.
            Para breve, novo e importante melhoramento se realizará na fidalga e hospitaleira “terra do limonete”.
            Para a frente, pois. E parabens.

Em Janeiro de 1993 novas obras foram inauguradas.

                “E a fonte de Tavarede voltou a renascer na tarde do passado sábado, perante a presença de significativa multidão de tavaredenses e convidados que participaram no conjunto de actos levados a efeito para assinalar esta reabertura que, em nosso julgar, mais do que o refrescar de corpos, vale acima de tudo pelo reencontro que, os tavaredenses estabeleceram com um passado pródigo em tradições e, para muitos também, simbolizado nesta centenária fonte, à volta da qual se teceram tantas histórias de idílicas cores.
            As cerimónias tiveram início com uma recepção havida na sede da Junta de Freguesia, com a presença de diversos convidados, dos quais destacamos o presidente da Câmara e vereadores socialistas, bem como do presidente da Assembleia Municipal.
            Aqui as honras da casa seriam da responsabilidade do engº Rui Carvalheiro, presidente da Assembleia de Freguesia, o qual realçou o esforço que o executivo tavaredense tem despendido ao serviço da terra, afirmando que “eles não podem fazer mais do que aquilo que já fazem”. Depois referir-se-ia à obra que iria ser inaugurada, como “singela mas de grande significado”, particularmente para os tavaredenses mais bairristas.
            Como que em resposta à intervenção do autarca tavaredense, o engº Aguiar de Carvalho discursaria de seguida para também ele destacar o simbolismo da inauguração, numa terra em crescente salto demográfico resultante da instalação de pessoas não originárias de Tavarede, mas que os tavaredenses necessitam de integrar no “modus vivendi” da terra.
            Reviver o passado, como naquele dia se procedia em Tavarede, pode ser uma das formas de união, segundo crê engº Aguiar de Carvalho.
            E se esta cerimónia pouca participação popular haveria de ter, todas as outras se caracterizariam pelo elevado número de assistentes que congregaram.
            Terminada a recepção na Junta, um autêntico cortejo, a que não faltou os acordes da Tuna de Tavarede, encaminhou-se para o local da inauguração, onde muita gente desde há muito aguardava pacientemente o momento esperado.
            Aqui, isto é, na Fonte de Tavarede, bem defronte das bicas, melhor torneiras, o padre Matos procedeu à benção da obra proferindo uma prédica cuidadosamente estudada e adaptada às circunstâncias.
            Entretanto o presidente da Câmara foi convidado a descerrar uma lápide evocativa desta cerimónia, retirando a bandeira da Figueira, para deixar à vista a inscrição que perpetuará o dia 9 de Janeiro de 1993, como data da recuperação deste património tavaredense.
            O engº Rui Carvalheiro usaria de novo da palavra para voltar a enaltecer a inauguração a que se procedia, destacando a acção desenvolvida por António Simões Baltazar, presidente da Junta, dissertando depois sobre as dificuldades que enfrentam as Juntas para, sem dinheiros, procederem às beneficiações que os moradores necessitam e merecem.
            Aludiria ainda ao Paço de Tavarede que, tal como está, ”a todos nos envergonha um pouco”, mas adiantou que a Junta já elaborara ante-projectos de recuperação, aguardando agora decisões superiores.
            O oradora seguinte foi a drª Ana Maria Caetano, que servindo-se de palavras de José da Silva Ribeiro, em especial retiradas da peça “Chá de Limonete” teve uma agradável e pouco vulgar intervenção, merecedora de rasgados aplausos.
            Digamos que o Teatro também esteve presente na Fonte de Tavarede.
            E foi com visível emoção que António Simões Baltazar nos veio dizer de sua justiça, numa sentida intervenção, que espelha bem a sua dedicação a Tavarede e o empenhamento que colocou na recuperação da Fonte, da sua Fonte de Tavarede, tendo agradecido a tanta gente, e tanta ela foi, que contribuiu para que a fonte voltasse a ser fonte, dando a conhecer que em breve, numa das paredes do caminho que leva à fonte, vai ser colocado um “quadro de honra”, no qual se perpetuará o nome de tavaredenses ilustres, citando vários nomes já aprovados pela Assembleia de Freguesia (José da Silva Ribeiro, João Cascão, Violinda Medina, António Jorge da Silva, José Nunes Medina, António de Oliveira, etc.). Esta cerimónia seria encerrada com o discurso proferido pelo presidente da Câmara que felicitaria os autarcas de Tavarede, “motores e intérpretes de um sentimento profundo das vossas populações”.
            Depois foi o abrir das torneiras para que todos, e muitos o desejaram fazer, pudessem beber água que de novo voltou a dar vida a uma das salas de visita da povoação.
            Sabemos que a festa se prolongou pela tarde e noite, num convívio onde a gastronomia se uniu à cultura, fazendo do 9 de Janeiro de 93 uma data a inscrever no historial das gentes de Tavarede”.



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