Regresso. Regresso da Figueira da Foz, sim, mas desta vez maravilhado. A Figueira é cidade que de longe se me tornou familiar. Lá passei mais de três anos da minha já distante mocidade; lá criei amizades que a morte, no seu ceifar constante, desamoravelmente vai destruindo; e lá, ainda, dei os primeiros passos vacilantes, da difícil missão de educador. Recordo com saudade nomes que me foram queridos: o dr. Mendes Pinheiro, sábio e pedagogo, que modelou o seu colégio pelo figurino das “Écoles dês Roches” e de onde saíram rapazes que marcaram na vida, porque saíram dali apetrechados para a dominarem e vencerem; os drs. Manuel e José Cruz, dois irmãos ilustres, o primeiro, advogado dos melhores do seu tempo, e o último, médico abalizado, amigos democratas da mais pura gema; o tenente Girão, que foi tempos depois major na Grande Guerra, que morreu coronel de artilharia, comandando em Vargens, sua terra adorada, o regimento local; o Paulo Santos, músico distinto, folgazão, sempre metido no seu fraque impecável; o dr. Manuel Gaspar de Lemos, estudioso e culto, que mais tarde foi ministro da República, e que, felizmente ainda vivo, é uma relíquia da Democracia portuguesa, que, pelo seu aprumo moral, se impõe ao nosso respeito e veneração; o Júlio Vaz, escultor de mérito, que modelou o gigante Adamastor; o Augusto Pinto, rapaz ao tempo dado às letras pátrias, e que é de há muito um jornalista de vulto; e tantos outros que os anos fizeram desaparecer, da vida ou do meu convívio social.
Quem substituiu o lugar destas figuras marcantes da linda cidade ribeirinha?
Praia por excelência, a Figueira atrai-me, mesmo antes dos grandes melhoramentos com que constantemente tem sido dotada. Ficaram marcados no meu cérebro em caracteres indeléveis, aqui e além, factos que vivo hora a hora, com saudade intensa, aquela saudade que “é um mal de que se gosta e um bem que se padece”.
Desta vez fui à Figueira para me deleitar com a representação da fantasia histórica de Tavarede, escrita e posta em cena pelo José Ribeiro, esse autodidata inteligente e culto, que, com uma “pena de ouro”, alimentada com tinta da mais preciosa, fez de “A Voz da Justiça” jornal desejado e lido por muitos milhares de portugueses, e que nunca mais quis ser o jornalista de mérito que é, viúvo saudoso da grande gazeta, que é ainda o sonho querido da sua vida, cheia de ideias mais firmes e vigorosas.
Regresso, repito, maravilhado pelo que vi e ouvi naquela noite inolvidável de Agosto. O “Chá de Limonete” é, acima de tudo, uma peça literária, que põe em cena toda a história da antiga vila de Tavarede, desde os tempos mais recuados e é desempenhada com uma arte tão sublime que explica o valor e a devoção que a “Escola da Arte de Representar”, de Tavarede possui, e que faz do homem da plebe, um actor consumado. Aqueles que dizem que o Teatro está em crise, que venham admirar a obra educativa que a Sociedade de Instrução de Tavarede organiza, e defende, neste país onde a bola impera despoticamente e sem finalidades quanto ao problema educativo, de que deveria ser complemento salutar.
Como é que José Ribeiro fez de um grupo de trabalhadores agrícolas um elenco admirável que poderia e deveria levar a todos os recantos do país? Só ele o sabe. José Ribeiro marca no seu meio como um gigante das artes e das letras, impondo-se ainda pela sua grande modéstia, e pela sua grande elevação moral, à estima de quantos o conhecem e admiram. Poderá um Homem desta craveira ter inimigos? Águia que voa alto demais para que possa ser atingida por homúnculos e anões; trabalha sem cessar com uma abnegação e um estoicismo que encantam e arrebatam, sem atropelar ninguém, sem dizer mal de ninguém, contente consigo próprio, honrando a terra que lhe foi berço, e tornando “ditosa a Pátria que tais filhos tem”.
“Chá de Limonete”! Acabo também de te ler com o mesmo interesse e com o mesmo carinho com que te vi representar. Ficarás no rol das minhas recordações, como jóia do mais fino e puro quilate.
(O Mundo Português – Rio de Janeiro - República 1953.09.06)
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