A última parte deste nosso serão, vai ser uma saudosa
evocação. Sem grande conversa, recordaremos mais uns saborosos retalhos da
vastíssima obra de Mestre José Ribeiro. Comecemos por três manifestações da
civilização da nossa terra.
Futebol -
(Falando, dentro da música)
Futebol - instituição nacional! (Cantando)
A grande causa que
excita
E
agita
A
vontade nacional,
É
o desporto da bola
Que
rebola
E
domina em Portugal!
Um
pontapé
Faz
delirar multidões...
E
certo é
Que
electriza os corações.
Nossos
rapazes
São
jogadores sem rival!
Os
nossos azes
São
a glória nacional!
Fado -
(Falando, dentro da música)
Fado - canção nacional! (Cantando)
Não há voz
igual à minha
Pois
do Fado sou rainha!
Todos
me beijam a mão...
Fui
a Londres e a Paris,
Ao
Brasil e aonde quis...
Sou
a alma da Nação!
(bis, três últimos versos)
Teatro –
(Falando, dentro da música) Teatro - miséria nacional! (recita com a
música)
Porque sou velho e já
cansado venho
Duma longa jornada, milenária,
Passando
vão os novos adiante,
E
deixam-me p’ra trás, como a um pária...
Glorioso
Teatro que já fui,
Tive
riqueza e beleza também.
Se
me perguntam hoje quem eu sou,
Respondo
erguendo o meu bordão: - Ninguém!
Setembro era o mês das vindimas. Com que alegria ranchos de
vindimadores e vindimadeiras, cestos e tesouras nas mãos, iam manhã cedo,
caminho do Saltadouro acima até às vinhas, onde os cachos de uvas madurinhos,
que carregavam as cepas, breve seriam cortados pelas mãos ágeis daquela boa
gente. Em cima do carro de bois, a enorme dorna breve se enchia.
Uvas -
Uvas
são beijos que o Sol,
Com
seu poder criador,
Deixou
caír sobre a Terra
Para
dar vida ao Amor.
Uvas
doces, perfumadas,
São
benditas com razão:
Dão
frescura a quem tem sede
E
calor ao coração.
Coro -
As
uvas cheirosas
Nas
moças airosas
Desafiam
beijos...
De
a vida levar
A
rir e a cantar
Acendem
desejos.
Rubis
escaldantes,
Topázios
brilhantes
De
raro fulgor,
Provai
sem temer,
Mordei
com prazer
- São bagos de Amor!
Uvas -
Fruto
roxo ou fruto loiro,
As uvas de Frei Manuel
São
bagos de luz e oiro
Com a doçura do mel.
Duas capas bem famosas
Dão
calor ao nosso vinho:
São
as capas milagrosas
De
Noé e S. Martinho.
Coro das Uvas -
As
uvas cheirosas
etc.
etc. etc.
Falámos na estrada do Saltadouro. E porque não recordar,
também, o então tão agradável vale do Sampaio. Desde o Prazo até Tavarede, era
um verdadeiro encanto... As claras águas do ribeiro, que desciam mansamente até
cá abaixo, eram a força poderosa que fazua rodar as enormes rodas das azenhas.
Mas... onde está agora o lugar das Azenhas e as suas azenhas cantantes?
Lugar das Azenhas -
Sou
um pobre abandonado
das
filhas, que muito amei!
Azenhas...
foram-se embora
em
má hora,
mas
o nome conservei.
Azenhas
é o meu nome velhinho,
e
não sei por que pecado
as
azenhas me fugiram
e
assim me deixaram pobrezinho...
abalaram,
sucumbiram,
e
eu Azenhas continuo a ser chamado,
- mas sem
azenhas já, coitado!
Sou
Azenhas, o lugar
onde
azenhas havia a trabalhar.
As
azenhas, minhas filhas adoradas
é
que deram o nome ao pai.
Tão
longe que isso já vai!...
Não
moem águas passadas...
Agora
sou em estado de desgraça!
Sumiu-se
a graça
das
rodas sempre a girar
e
a cantar
com
a água saltitante,
de
cubo em cubo passando,
sempre
a rir,
a
descer e a subir
num
vai-vem que não tem fim.
Ai!
pobre de mim!
Sou
Azenhas sem as ter...
Tenho-as
visto morrer
sem
que Sampaio acuda
e
dê ajuda
a
esta desolação...
Foram-me
roubando a água
que
era do Prazo fartura...
A
mágoa, a desventura
tomaram
meu coração.
Oh!
poéticas azenhas farfalhantes,
pingando
gotas de prata cristalina
sobre
avencas viçosas, verdejantes,
em
fundo musical, suave e brando
ao
irrequieto bando
da
orquestra divina
de
melros, rouxinóis e cotovias
em
concertos magistrais todos os dias...
Lá
de cima, dos Monteiros, a água vinha
descendo,
mansinha,
alimentar
outra azenha irmã
sua
vizinha.
E
a mota seguindo, sem se desviar,
a água vinha
brincar,
rebrilhando
ao oiro da manhã
na
azenha do Domingos, o dos bois...
Depois...
Ai!
há quantos anos!...
era
a azenha dos Canos,
até
que, infatigavelmente,
a
água finalmente
ia
mover na Várzea a azenha derradeira,
e
seguia caminho da Figueira...
Ao
meu lugar já eu ouvi chamar
Vale
de Sampaio.
Ah!
Não! Eu, deixar-me roubar?
Nessa
não caio!
Eu
sempre serei o Lugar das Azenhas
- dmbora, pobre de ti! já as
não tenhas.
De quando em vez, lá vinha uma bicadinha. Das
últimas que escreveu, escolhemos esta.- O
Sr. Simplício e o Zé Sem-Mais-Nada -
Zé - São os papéis que eu dei à tua Mãe ontém à noite.
O Filho - Já sei, estão aqui.
Zé - Trá-los cá, e avia-te, a ver se ainda apanho o Sr. Simplício.
O Filho - São estes. E salvei-os a
tempo.
Zé - Salvaste-os?...
O Filho - É que a Mãe ia metê-los no lume.
Zé - Essa agora!...
O Filho - Como o Pai, depois de ter ouvido o homem que falou na Televisão,
esteve tanto tempo de volta dos papéis, a Mãe pensou que o Pai tinha decorado
tudo e que já não precisava deles.
Zé - Decorado...? Quanto mais li menos entendi.
O Filho - O homem da Televisão disse que era muito fácil de entender.
Zé - E tu, entendeste?
O Filho - Não senhor.
Zé - Também não sei p’ra que raio andas tu no Liceu... Bem... Vou
procurar o Sr. Simplício p’ra me tirar desta confusão. O diabo é se já não o
apanho. (Encontrando Simplício) Eu tinha ido procurá-lo, porque a gente, já se vê, quando precisa de ajuda
tem de ir bater à porta de quem sabe. Desculpe incomodá-lo aqui mesmo...
Simplício - Ora essa, não incomoda nada. Ainda bem que me encontrou aqui, porque
eu em casa é raro apanharem-me. Então de que se trata?
Zé - É por causa daquilo que me disse para ver na Televisão, onde um
senhor ia explicar tudo muito bem. O tal Imposto...
Simplício - Ah! lembro-me agora. E diga-me senhor José... Desculpe, mas não sei
o seu nome completo.
Zé - Zé - sem mais nada.
Simplício - Muito bem. E então, entendeu, não é verdade? Foi tudo muito bem
explicado.
Zé - Ah! Sim senhor, tudo ali muito bem explicado, tim-tim por tim-tim.
Olhe que aquele senhor, para saber assim dizer tanta coisa...
Simplício - E o senhor José entendeu tudo, não é verdade?
Zé - Não senhor, não entendi nada. Isto é, eu já tinha umas luzes, pelo
que o senhor Simplício me tinha dito na véspera. Mas agora... apagaram-se as
luzes e fiquei mesmo às escuras. De forma que vim à sua procura para me tirar
daquela complicação, e tive a sorte de o encontrar aqui no caminho. Eu trazia
os papéis...
Simplício - Não senhor, não é complicação
nenhuma. Foi tudo simplificado. Quer ver? Eu explico-lhe e o sr. José fica
sabendo tudo.
Zé - Muito lhe agradeço.
Simplício - Isto é a declaração modelo
um. É a declaração para a secção A - pessoas singulares.
Zé - Não é para mim, pois não?
Simplício - É para si, pois claro.
Zé - Eu sou singular? Só agora o sei. Bem diz o ditado: aprender até
morrer.
Simplício - É singular, porque é sòzinho.
Zé - Mas eu não sou sòzinho, tenho mulher e filhos...
Simplício - Sim, mas é singular porque não é uma identidade colectiva, uma
sociedade...
Zé - Já estou a ficar atrapalhado.
Simplício - Não se preocupe. Isto é muito simples. Vai ver como é simples. Mas
antes de preencher a declaração convém ler as instruções. Cá estão. Aqui está
tudo o que o contribuinte tem a fazer. Muito simples, tudo simplificado.
Zé - Pois é, senhor Simplício, mas um papel tão grande é para meter medo
a muita gente.
Simplício - Nem por isso. São só oito páginas. (dobra e
desdobra) Lendo isto fica-se logo a
saber tudo. Oiça: Eu digo-lhe só os títulos dos capítulos; depois o senhor José
lê e fica apto a preencher a declaração modelo 1. Ora oiça: I - Quem deve
apresentar a declaração; II - Quando deve ser apresentada a declaração; III -
Onde deve ser apresentada a declaração; IV - Categorias de rendimentos; V -
Como obter os elementos para preencher a declaração; VI - Rendimentos não
determinados; VII - Deduções a efectuar; VIII - Notas sobre o preenchimento da
declaração. Aqui está. Tudo muito simples, tudo simplificado.
Zé - Estou a ver, senhor Simplício.
Simplício - Lidas estas instruções - pronto, está habilitado a preencher a
declaração. A declaração tem quadros, quadro 1, quadro 2, por aí fora até ao
quadro 24. Cada quadro tem posições, os itens, que são uns quadradinhos com os
números 1, 2, 3, por aí fora.
Zé - Tudo simplificado, senhor Simplício.
Simplício - E os quadros ainda têm linhas
e alíneas, para ninguém se enganar. A declaração tem três anexos... aqui é que
se fazem as contas...
Zé - (interrompendo) Para ver em que posição fico. (áparte) De cócoras.
Simplício - O anexo 1 está dividido em quadros: quadro 1, quadro 2, quadro 3,
por aí fora até ao 10; os quadros têm posições: posição 1, posição 2, por aí
fora até à posição 63.
Zé - Tanta posição! Como há-de a gente saber em que posição fica?
Simplício - Nada mais simples. Já vimos as instruções, consultámos o modelo 1,
os anexos, e agora procuram-se os quadros, as posições, as linhas, as alíneas,
a tabela simplificada, as taxas, os escalões, as deduções. Inscrevem-se os
rendimentos, os encargos, as colectas, soma, subtrai, multiplica e assim
sucessivamente. Vê senhor José?
Zé - Muito simples, muito simplificado, Senhor Simplício.
Simplício - Em chegando ao quadro 8 encontra o resultado com as posições
seguintes: 34 = 35; 35 x 36 = 37; 37 - 38 = 39 e por aí fora até que acha 52 =
33; 53 + 54 = 55. E pronto, é isso que tem a pagar. Como vê, tudo muito
simples.
Zé - Tudo muito simplificado. Em todo o caso, tenho medo de me perder
nessa simplificação tão complicada. De modos que tenho estado a ouvi-lo, senhor
Simplício, e a pensar que o meu rapaz, que está a acabar o Liceu e quer ser
médico, em vez de ir p’rá Medicina o melhor é mandá-lo para isso das
Económicas... Sempre é bom ter em casa uma pessoa que saiba pôr-se nas posições
e linhas e quadros e alíneas e capítulos e anexos e instruções e tabelas e
percentagens e declarações e não sei que mais de toda essa simplificação tão
complicada. Que me diz, senhor Simplício?
Simplício - Mas está tudo tão simplificado... Não precisa, senhor José. Boa
tarde. (sai)
Zé -
Que
coisa tão complicada
É
a simplificação...
Não
me chega a tabuada
P’ró
quadro e p’rá posição...
Sinto
a cabeça arrasada
Com
tanta complicação!
Vai
à frente ao cinquenta,
Volta
atrás ao trinta e três...
Vinte
e quatro mais quarenta,
Deduz
e soma outra vez...
A
posição é sessenta
E
a linha vinte e dois...
Aqui
baixa, ali aumenta
E
a soma vem depois.
Que
coisa tão complicada
etc.
etc. etc.
Vira
e torna a virar (executa)
O
papel das Instruções
P’ra
escolher as posições
No
quadro a utilizar.
E
sem haver mais cantiga
Agora
é que vou pagar...
Não
me posso demorar...
Já
sinto dores de barriga...
Ora,
pobrete mas alegrete, nunca o nosso povo perdia a oportunidade de um alegre
bailarico. Tiveram fama as festas ao S. João. As cavalhadas de Tavarede eram as
mais apreciadas. E deram, até, causa a situações bem curiosas, como aquela em
que o senhor prior, no ano de 1889, a mando do senhor Bispo, recusou entregar
as bandeiras benzidas para as cavalhadas. Grande problema! Cavalhadas sem
bandeiras podia lá ser! Como arranjar outras? E, demais, benzidas? Do que
haviam de pensar… Arranjavam duas bandeiras novas, levavam-nas escondidas para
a Igreja e quando, na missa de domingo, o senhor prior desse a benção final,
erguiam as bandeiras e aí estavam elas benzidas! Dito e feito. E ainda não foi
dessa vez que as cavalhadas se realizaram sem as bandeiras... E no final lá
houve o costumado bailarico.
Rapariga -
P'rá festa de S. João
Negou
o padre a bandeira.
Pois
vamos todos bailar
Ao
redor desta fogueira.
Rapaz -
Ao redor desta fogueira
Cachopa,
toma sentido,
Quero
dar-te quatro beijos
Em
troca dum prometido.
Todos -
Ai
meu São João,
Meu
São Joãozinho,
Vem
ver-me dançar
C’o
meu amorzinho...
São
doces seus beijos,
Quentes
seus abraços...
Quem
dera viver
Sempre
nos seus braços.
Rapariga -
São
João, meu São João,
Dá-me
noivo p’ra casar...
E
irei ajoelhar-me
Diante
do teu altar!
Rapaz -
Diante
do teu altar
Cachopa,
muito a preceito
Quero
eu rezar também
No
altar desse teu peito.
Todos -
Ai
meu São João,
etc.
etc. etc.
Recordações...
Recordações e nada mais... A velha e pequena aldeia cantada em todas aquelas
revistas e fantasias que, ao longo de dezenas de anos, desfilaram no nosso
palco, já bem pouco tem do seu passado... Tudo se modificou. Naquelas terras,
esventradas pela enxada do cavador para delas arrancar os frutos benditos da
sua manutenção, já não se vêem as tenras couves, as frescas alfaces. Em seu
lugar começaram a surgir enormes urbanizações. E daquelas que escaparam até
agora, grande parte estão ao abandono. Tavarede já não tem cavadores!... Pouco
resta. Aquele jardim que era a terra do limonete, com canteiros de flores por
toda a parte, já não se avista. Ai, como seria difícil, até, arranjar flores
fresquinhas e garridas para enfeitar os lindos potes do rancho 1º de Maio!
E o limonete? Pouco, muito pouco. Agora, as noites
luarentas do verão já não têm o ar perfumado com o seu delicado aroma. Mas,
enfim, resignemo-nos. É o progresso!... E tenhamos uma certeza. Com ou sem
flores, com ou sem limonete, enquanto houver um tavaredense a nossa terra será
sempre recordada e cantada como a terra do limonete.
Limonete -
Limonete!
Eu sou o rei
Da
aldeia tavaredense!
O nome à terra eu o dei!
Essa
glória me pertence.
Embora
velho par’cendo
O
meu tronco é sempre novo,
Pois
a raiz vem do povo:
Vigoroso
vou crescendo.
Ramos do Limonete
A seiva, meu pão e vinho,
Dá-me
em ramos os meus braços,
Que
se estendem como abraços
Ao
muro tosco e velhinho.
Folhas do limonete
E
vêm folhas viçosas,
Verdes,
esguias, cheirosas,
Dar alegria e frescor
Ao
jardim do cavador.
Flores do limonete
Então,
nas pontas franzinas
Dos
meus ramos verdejantes
Despontam
flor’s pequeninas
Como
estrelas cintilantes.
Coro
-
Limonete!
Rústica
planta plebeia
Que
na nossa terra cresce!
-
Limonete!
Por
toda a parte floresce
E
dá cheiro à nossa aldeia...
-
Limonete!
De
tão viçosa verdura,
A
Tavarede dás graça,
-
Limonete!
Dás
alegria e frescura
E perfumas a quem passa...
-
Limonete!
-
Limonete...
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