É preciso que nos convençamos de que
popular não é sinónimo de grosseiro, tosco, boçal, rude e inferior, pois ao
povo podemos e devemos ir procurar as bases das melhores tradições artísticas.
Não cabe, como é óbvio, nos limites de
uma simples notícia como esta, apreciação detalhada do desempenho. No entanto
não é descabido o apontamento de que a nota mais frisante dele deve sem dúvida
consistir na homogeneidade, apuro e equilíbrio do conjunto. Um bravo pois a
todos os intérpretes e com muito mais razão a José Ribeiro, que conseguiu o
milagre de pôr de pé espectáculo de tal categoria e de assim fazer representar
o povo de Tavarede. Evidentemente que a ninguém, por ingenuidade ou má fé, é
licito chegar à conclusão, em face do que fica dito, que de qualquer forma se
pretenda ignorar ou sequer diminuir, o mérito, até excepcional, da intervenção
nas peças representadas, de vários e justamente consagrados amadores da
Sociedade de Instrução Tavaredense. Bastaria o exemplo de Violinda Medina para
tornar ridícula tal conclusão. A sua “Maria Parda” constitui uma interpretação
notável, com a qual só seriam capazes de emparceirar as de algumas das nossas
primeiras actrizes. Mas também Fernando Reis (onde estão os profissionais que
desdenhassem dos méritos e da correcção do seu Gil Vicente?), António Jorge da
Silva (cuja reaparição se saúda e sobretudo em “João Murtinheira, vilão”, deu convincente
prova dos seus invulgares dotes histriónicos), João Cascão e outros, tiveram
intervenções pessoais que muito contribuiram para o brilho do espectáculo. E
até aquela jovem Ilda Manuela Duarte Gomes foi um encantador e verdadeiro
“Serafim”. O que não invalida, porém, a nossa já expressa opinião de ser a
homogeneidade, o apuro e o equilíbrio do conjunto, a faceta mais destacada do
notável espectáculo agora oferecido aos figueirenses, em comemoração do “V
Centenário do Nascimento de Gil Vicente”.
E a propósito de Gil Vicente, vamos transcrever um
apontamento publicado num periódico local. Procedendo
à análise cronológica da obra vicentina, este mestre (Prof. Fidelino de
Figueiredo) organizou o seu quadro de desenvolvimento em quatro fases: um
período embrionário, outro de ascensão, um terceiro de plenitude e um final,
não decadente mas de maturidade no apogeu.
E tudo
isto, que não ultrapassa os limites do conhecimento geral, eis que entretanto
pode oferecer um especial atractivo aos que, nesta Cidade do Mar, se interessam
pela Cultura. Porque, no concelho, há quem a Gil Vicente tenha dado muito do
seu melhor esforço: jovens e velhos, mulheres e homens, inteligências,
sentimentos e acções, cerne do povo, que um de entre eles foi capaz de
aglutinar. Não vamos dizer que José Ribeiro e o seu grupo cénico são Gil
Vicente; pecaríamos por excesso e por defeito; mas pode afirmar-se, sem medo de
impugnação, que grande parte da vida da Sociedade de Instrução Tavaredense e do
seu director teatral se justificam em Gil Vicente.
Concretizemos um tanto, e só dentro daquilo que já nos foi
dado ver.
Na
primeira fase vicentina, entremisturam-se a religião e o bucolismo, numa
rudimentar acção dramática. Ora, quem já não viu isto mesmo, posto ao vivo
naquele célebre “Monólogo do Vaqueiro”? Haverá quem se não recorde da força
que, a esse auto ainda titubeante, imprimiu João Cascão, em 1961?
Na
segunda fase do Mestre, além de uma facilidade maior na acção, no cómico e no
diálogo, começa avultando o tema vicentino por excelência, o da crítica social.
A atenção de José Ribeiro não tem vindo muito sobre este período; mas já
tivemos o gosto de lhe ver apresentar, em 1963, uma versão d farsa do “Velho da
Horta”.
Na sua
penúltima fase, o Génio já plenamente se encontrou; por conseguinte, tudo no
seu teatro floresceu: a temática e o enredo, a crítica e a religiosidade, o
cómico e o lírico. E este período sim,
tem sido um rico manancial, para os artistas da Terra do Limonete. Citemos: um
passo do “Auto Pastoril Português”; o espantoso “Auto da Barca do Inferno”;
mas, sobretudo, ao menos para nós, o grotesto “Pranto de Maria Parda”; dizemos
“sobretudo”, porque esse entremês escarnento, ou talvez maledicente, nos é
“imposto” por uma Violinda Medina que aí se define pela sua maior característica:
a personalidade.
Na fase
derradeira, Mestre Gil já não tem que inovar; cresce, porém, de maneira nítida,
em teatralidade.
Assim , pôde inclusivamente adaptar à cena obras alheias,
mesmo quando bastante enredadas, como é o caso das novelas de cavalaria. Vimos
a perfeita ilustração disto, pela primeira vez em 1963, com a representação da
já conceituosa tragicomédia “Dom Duardos”; e agora, em Outubro último, pudemos
voltar a Tavarede, a saborear o moralismo social de um delicioso “Auto da
Feira”; o lirismo transcendente, à maneira das “Barcas”, de um passo bíblico do
“Auto da História de Deus”; e, outra vez, a voz crítica, em um momento da farsa
“Romagem dos Agravados”, com três figuras cheias de valor, mas onde nos pareceu
vir a lume, acentuadamente, a esplêndida naturalidade de António Jorge.
Será, ou não, que Mestre Gil anda por
aqui, enraizado de corpo e alma nas gentes desta linda terra.
No ano de 1966, depois de ter realizado
diversas deslocações, o grupo cénico da SIT levou à cena uma nova peça. Já há vinte e cinco séculos um filósofo
helénico, de nome Górgias, dizia que a Verdade é inatingível; e que, se fosse
atingível, não seria exprimível; e que, se fosse exprimível, não seria verificável…
Pirandelo, o insigne e perturbante
dramaturgo italiano (falecido há 30 anos), decidiu um dia exprimir esse
tríplice apotema, convertendo a sua demonstração num significativo imbróglio
tragicómico a que deu o título: “A cada um a sua verdade”.
No fundo, essa peça esquisita parece
ser o reflexo de um drama vivido pelo próprio dramaturgo, cuja esposa, ciumenta
em último grau, acabou por enlouquecer, mas de uma loucura tão discreta, que
Pirandelo conseguiu viver ainda, em sua companhia, cerca de dez anos. Obscuro
sigilo doméstico e obscuro heroísmo!
Numa recente passagem pela airosa
Figueira da Foz, que já há muito não visitávamos, foi-nos dada a surpresa de
assistir à representação dessa sugestiva tragicomédia, levada a efeito por um
simpático núcleo de actores amadores da aldeiazinha próxima de Tavarede,
orientados por um incansável devoto da arte de Talma, o jornalista José
Ribeiro, que há mais de três décadas se consagram de alma e coração, ao oficio
gratuito de manter, ali, naquele subúrbio figueirense, a chama da vocação
artística dos seus conterrâneos.
O teatrozinho onde o espectáculo se
realizou era, e é, já por si, um verdadeiro mimo de simplicidade, ajustada e
sóbria.
O autor experiencial do Wilhelm Meister
ficaria decerto encantado se o encontrasse, de mão beijada, naquele belo tempo
em que o “teatro” era, para o seu espírito, a mais rica fonte de ingenuidade
mitogónica da Infância no espírito do Homem pragmatizado.
Daqui exorto o velho amigo e admirado
confrade António Pedro, magister theatri rebus, a ir verificar e homologar,
vendo, como vimos, o drama irónico de Pirandelo, na interpretação tão meritória
dos actores amadores de Tavarede.
O drama irónico de Pirandelo
entranha-se nesta anedótica “historieta”:
Uma pequena cidade de província
desperta da sua sonolência com a chegada de um funcionário da Prefeitura, vindo
não se sabe donde, e que traz consigo, além da esposa, a sogra. O casal
instala-se no último andar de um prédio alto; a senhora de idade, com
estranheza de toda a gente, vai viver noutra casa, um pouco afastada do genro e
da filha. À senhora nova ninguém mais a vê. O funcionário, sempre de luto,
visita, mas sempre a sós, a senhora de idade, igualmente de luto. Uma vez por
outra, a senhora de idade aproxima-se da casa alta onde a filha reside, mas
nunca sobre. A vizinhança apenas vê isto: um bilhetinho que desce pelo cabaz
das compras, outro que sobe pelo mesmo cabaz, um breve aceno lá de cima, outro
de baixo – e nada mais.
Duas famílias, “das melhores da terra”,
vizinhas da senhora idosa, tentam descobrir o segredo daquela singularidade.
Como compreender aquelas vidas separadas: da mãe e da filha? Como entender
aquelas visitas diárias do genro? E, sobretudo, como explicar a clausura, para
não dizer o ar de sequestro, em que o novo funcionário da Prefeitura mantém a
sua esposa, misteriosa e invisível?
Algumas senhoras tecem hipóteses sobre
hipóteses para explicar aqueles pequenos enigmas da vida íntima do burocrata
recém-vindo. O secretário da Prefeitura, a esposa, a filha, as suas visitas (e
até o próprio prefeito!) vivem intensamente o drama possível que julgam estar
na penumbra daquela trindade exótica.
A pesquisa da verdade oculta obriga-os
a dar mil voltas, interrogando, inquirindo, questionando. Alguns inclinam-se a
ver que a senhora invisível, esposa do funcionário, é uma mártir, vítima
decerto do marido sádico ou desconfiado. Algumas, abertamente, questionam e
acusam: Que sanha ou fobia levará aquele homem atarracado e bigodoso, de luto
pesado, a manter emparedada aquela pobre senhora, sem a companhia da própria
mãe?
Num verdadeiro frenesi interrogativo,
as senhoras visitam-se para trocarem com sofreguidão alguma nova que as auxilie
à descoberta da verdade. Apenas uma pessoa se afasta deste cancã e
sardonicamente o reprova. É Lamberto Laudisi, cunhado do secretário da
Prefeitura, personagem concentrado e normalmente silencioso, mas que, no final
de cada acto, se destaca pela sua exclamação hilariante e montaigniana:
- “Mas, afinal, onde está a Verdade?”
O desenrolar da tragicomédia (se assim
se pode chamar) apresenta, na realidade, os mais desconcertantes. A Senhora
Frola (por sinal, um dos mais impressivos papéis desempenhados pelo grupo de
Tavarede) acaba por aceder às solicitações incansáveis e telepáticas das senhoras
suas vizinhas, visitando-as e aceitando o inaudito suplicio do seu
bisbilhotismo. No fim de contas, a verdade parece ser extremamente simples: o
genro é um demente meio curado, em certa fase que, alguns anos antes, teria
perdido a razão por se convencer de que a esposa morrera e só ao fim de um
penoso período de prostração se teria restabelecido, casando, por ficção de
alguns familiares e amigos, com a mesma mulher…
O bisbilhotismo das senhoras fica
trespassado de pasmo.
Mas a surpresa não tarda a redobrar.
Aparece o funcionário novo da
Prefeitura, o sr. Ponzo, que vem esclarecer tudo de modo diverso. Ao fim de uma
dramática cena confidente, a verdade, afinal, parece ser esta, pura e simples:
Quem está demente é a senhora idosa, a sua sogra, a Senhora Frola. Na
realidade, a sua filha foi uma das vítimas do tremor de terra em que pereceu
quase toda a familia. Mas a pobre senhora, enlouquecida, não quer crer que a
filha tenha falecido. Por isso, ele, genro, por um puro acto de piedosa
mentira, tendo casado segunda vez, mantém a pobre senhora à distância, para ela
não ver que a sua actual esposa não é já a sua filha, mas outra.
Mais uma vez as senhoras, incansáveis
pesquisadoras da verdade, se sentem trespassadas de assombro e perplexidade – e
mais uma vez, o sarcástico e seco Lamberto Laudisi solta a sua exclamação
montaigniana:
- “Mas onde está a verdade?”.
A cena final é um verdadeiro
tour-de-force de tagarelismo e de confusão. O drama, por instantes, atinge o
cume da mais angustiosa exaltação e da mais estranha ironia.
A incerteza e a perplexidade assalta o
espírito de todas as pessoas que andam de um lado para outro, numa roda-viva, à
procura da “verdade”. Por fim, uma última dúvida e última hipótese surge:
Existirá, de facto, a esposa invisível do discutido funcionário? Será um ser
real ou fictício?
Por isso se impõe uma decisiva
acariação e uma última prova: a prova, digamos, de S. Tomé. Nem essa, porém,
resolve o enigma. Uma vez afastados da cena, irmanados no maior desespero, a
sogra e o genro, a mulher sequestrada aparece, diante de todos, como supremo
símbolo do insanável enigma.
- “Sou o que sou. Quanto à Verdade, que
cada um a entenda como melhor entender e aprover…”.
E o irónico drama termina assim mesmo,
sem se saber onde está a demência, a mistificação ou a verdade.
A propósito desta peça, Mestre José
Ribeiro deu uma nova entrevista a um jornal figueirense. Os Tavaredenses não são
profissionais de Teatro; alguns labutam as doze horas por dia e, mal jantam,
vão viver a sua paixão - ouvir, comentar, ensaiar ou representar -, até pela
noite fora.
Pois bem: por mais estranho
que tal pareça, constituiram um grupo cénico de apreciável categoria, do melhor
que vai pelo País, em amadorismo puro: hoje possuem uma casa de trabalho e de
espectáculos bastante boa - auxílio da Fundação Gulbenkian -, e vão a toda a
parte onde lhes é solicitada a presença, sem intenções lucrativas.
O milagre é de todos: de
José Ribeiro, o director e o elemento essencial, corpo e alma dados ao Teatro;
e de cada um dos seus companheiros e colaboradores, alguns com uma vida toda
amarrada às tábuas do palco ou às cordas dos cenários.
Só graças a esse espírito
devoto se torna possível realizar, com felicidade, obra difícil como
representar bem uma peça de Pirandello. Num trabalho de equilíbrio, como este,
as principais figuras contracenam de facto, situando-se num belo e harmonioso
plano.
Interessados no assunto,
quisemos fazer perguntas a José Ribeiro, que gentilmente a isso se prontificou,
sabendo embora que estava falando para um leigo apenas curioso.
Salvo o respeito pela
opinião contrária, cuidamos que um director cénico precisa de possuir sempre
uma razoável dose de tirania; quando procede à primeira leitura de qualquer
peça ao seu grupo, salvo raras excepções isso quer dizer que a obra vai para a
frente, que a coisa está decidida...
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