D.
Antónia Magdalena - 10ª. Senhora de
Tavarede
Julgada por crime de lesa-majestade
Se
folhearmos cuidadosamente os escritos existentes narrativos sobre a ilustre
família Quadros, os célebres Senhores de Tavarede, encontraremos, sem
dificuldade, muitos membros que se destacaram como religiosos, guerreiros,
beneméritos e, até, criminosos e assassinos.
Destacando,
como exemplos, só um de cada das espécies citadas, recordamos Frei Álvaro
Teles, da Congregação de S. Bernardo, confessor no convento do Lorvão, mestre
de Teologia no mosteiro de Alcobaça, abade em Seiça, etc.; Manuel de Melo de
Quadros, combatente que morreu em combate, em 1664, na batalha de Almeida,
defendendo a independência reconquistada; António Fernandes de Quadros, o
primeiro Senhor de Tavarede, que doou terrenos e dinheiro para a construção do
convento de Santo António, na Figueira; Fernando Gomes de Quadros, que morreu
na cadeia da Portagem, em Coimbra; e seu filho e herdeiro Pedro Joaquim,
assassino de um tio frade simplesmente por este o ter repreendido de uma
desobediência ao pai, e que igualmente morreu na mesma cadeia.
Houve,
no entanto, um elemento desta grande família, cuja história profundamente nos
impressionou. Pois poder-se-ia imaginar
que uma descendente de tão poderosa família, amiga e protegida por reis, fosse
um dia presa, julgada e condenada por um crime de lesa-majestade?
Mas, na
verdade, isso aconteceu. E foi protagonista da história a 10ª. Senhora de
Tavarede, a morgada D. Antónia Madalena de Sousa e Quadros. E antes de iniciar a narrativa, queremos referir que
talvez tenha sido o palco da Sociedade de Instrução Tavaredense que nos
influenciou a aprofundar este acontecimento.
Recordamo-nos
que, em Janeiro de 1957, foi levada à cena a peça “A conspiradora”, da autoria
do dramaturgo Vasco de Mendonça Alves. A acção o drama situa-se na intensas e
dramáticas lutas travadas entre os portugueses no período miguelista, ou
absolutista, nos anos finais de década de 1920 e principios da década seguinte.
Terá,
na verdade, D. Antónia Madalena sido uma liberal? É dificil fazer um julgamento
correcto. Terá sido uma ‘extravagante’ como a apelidou o historiador
figueirense Dr. José Jardim? Também duvidamos. A morgada de Tavarede, em nossa
opinião, terá sido mais vítima do que culpada. Nascida em casa de seus avós
maternos, cedo terá começado a viver a vida da fidalguia da queles tempos, considerando-se uma
classe superior e dominadora.
Mas
vamos relembrar um pouco da sua vida até chegar à triste situação de presa
política.
Diz
uma tradição local, que D. Antónia Madalena de Sousa e Quadros, 10ª. Senhora de
Tavarede, falecida no dia 25 de Fevereiro de 1835 e sepultada no Convento de
Santo António, na Figueira, terá sido ‘enterrada ainda viva’.
Quando
iniciei as muitas consultas para compilar o primeiro caderno de ‘Tavarede – a
terra de meus avós’, esta nota ficou gravada no meu pensamento. E, a partir de
então, procurei ler tudo a que fosse possível sobre a vida desta Morgada de
Tavarede, tendo o meu interesse aumentado consoante ia colhendo mais elementos.
Não é
verdadeira aquela tradição. A morgada de Tavarede acabou os seus dias em Lisboa,
no palacete do Grilo que herdara de uma sua parente, a viscondessa de Condeixa,
e foi sepultada no cemitério lisboeta do Alto de S. João.
D. Joana Madalena da Silva e Castro,
terceira filha do casal Fernão Gomes de Quadros e D. Brites Josefa da Silva e
Castro, casou com seu primo José Joaquim Juzarte de Quadros. E no dia 13 de
Junho de 1774, no Paço de Tavarede, nasceu Antónia Madalena.
Foi baptizada na capela do Paço, em 14
de Julho, tendo como madrinha sua avó materna e como padrinho o seu tio mais
velho. “Aos catorze dias do mês de Julho
de mil setecentos e setenta e quatro, baptizei solenemente na capela do Paço
desta freguesia, com licença do ordinário, a D. Antónia, nascida a treze(?) de
Junho da dita era, filha legítima do doutor José Juzarte de Quadros e de sua
mulher D. Joana Madalena de Quadros, neta paterna de António Xavier Juzarte de
Quadros e de D. Brites de Menezes e Quadros, da cidade de Coimbra, e neta
materna de Fernando Gomes de Quadros e de D. Brites Josefa da Silva e Castro.
Foram padrinhos Pedro Joaquim Lopes de Quadros, por procuração feita a mim, e
D. Brites de Menezes e Quadros, por seu legítimo procurador e filho Francisco
Juzarte de Quadros e foram testemunhas o reverendo José Vieira Pinto e o
reverendo Inácio do Amaral Mascarenha.” (registo paroquial)
Tendo sua mãe, D. Joana Madalena,
falecido com a idade de 36 anos, Antónia Madalena, que tinha a idade de cerca
de quatro anos e meio, foi viver com seu pai para Coimbra, onde ele tinha o
cargo de provedor da comarca coimbrã.
Tendo seu pai falecido em 13 de Janeiro
de 1791, Antónia Madalena, orfã aos 17 anos, foi mandada recolher ao convento
da Encarnação, em Lisboa, pela rainha D. Maria I, a requertimento de seu tio
materno António Leite de Quadros.
E no dia 26 de Dezembro do mesmo ano, “casou com o grande D. Francisco de Almada e
Mendonça, famoso fidalgo do Conselho de D. Maria I, senhor da vila de Ponte da
Barca, primeiro alcaide-mor de Marialva, comendador da Ordem de Cristo,
desembargador do Paço, intendente geral e inspector das obras públicas das três
províncias do norte, superintendente do tabaco e saboarias do Porto, intendente
da marinha da mesma cidade, corregedor perpétuo da sua comarca e juiz geral das
coutadas do reino”. (Dicionário Portugal Antigo e
Moderno, de Pinho Leal)
Tratou-se de um casamento arranjado, de
simples conveniência, como era uso entre as famílias da nobreza. Nenhum dos
noivos esteve presente na cerimónia e o novo casal fixou residência na cidade
do Porto.
A Casa de Tavarede, que havia sido tão
poderosa e tão rica, entrara em decadência. Podemos apontar como causas
diversos motivos. A mudança da Câmara de Tavarede e suas justiças, para a nóvel
vila da Figueira da foz do Mondego, no ano de 1771, resultante da luta travada
durante muitos anos com o Cabido da Sé de Coimbra, donatário do lugar de S.
Martinho de Tavarede, terá sido uma das causas principais.
Acresce, porém, e não de menor
importância, a vida dissoluta e despótica do morgado Fernando Gomes de Quadros,
que igualmente havia falecido encarcerado na cadeia de Coimbra acima referida,
o desregramento de seu filho herdeiro, preso nas Berlengas por assassínio de um
tio frade e que, indultado pela rainha D. Maria I, não teve emenda e continuou
como boémio e criminoso, até ser novamente preso, terão sido causas de
decadência desta família.
As administrações nomeadas para o
governo da Casa, devido ao impedimento justiceiro dos herdeiros, igualmente se
mostraram pouco diligentes nas suas tarefas.
Solteiro, António Leite, que faleceu
relativamente novo, deixou como sua herdeira a sobrinha Antónia Madalena. No
entanto, quando esta entrou na posse da herança, além do morgado, ainda possuía
o prazo de Lares, muitas propriedades e foros na Figueira e terras vizinhas,
assim como o prazo de Rendide, em Torres Vedras.
“Não se duvide que se tratou de um
casamento arranjado, de simples conveniência. Foi assim precedido da habitual
escritura antenupcial, celebrada em Lisboa em 24 de Dezembro desse ano, estando
presentes José de Seabra como procurador do noivo, Fernando Leite como
procurador do deão de Coimbra António Xavier de Brito e Castro, primo da noiva,
e esta em pessoa. D. Antónia Madalena dotou-se com a Casa de Tavarede e, por Francisco de Almada não possuir Casa,
constituiram-se arras de 50.000 reis mensais, com hipoteca sobre os bens
daquela Casa, confirmada por provisão régia de 10 de Maio de 1792”. (A
Casa de Tavarede, de Pedro Quadros Saldanha)
O noivo, Francisco de Almada e
Mendonça, nasceu em Lisboa no dia 28 de Fevereiro de 1757, sendo filho de João
de Almada e Melo e de Ana Joaquina de Lencastre e Moscoso. “Doutorou-se em leis na Universidade de Coimbra, foi
comendador da Ordem de Cristo, primeiro senhor donatário de Ponte da Barca e
primeiro alcaide-mor de Marialva e fidalgo da Casa Real. Na comarca do Porto
foi provedor, corregedor, presidente do cofre, intendente da Marinha,
presidente da Junta Administrativa da Fazenda, das saboarias e do tabaco,
conservador no juizo das encomendas e do sal, avaliador das obras
literárrias produzidas, assim como nos
processos policiais, contrabando e moeda. Foi igualmente juiz geral das
coutadas do reino e inspector das obras públicas do norte”. (Wikipédia)
“...
foi, contudo, no Porto que mais se revelaram as suas qualidades de
administrador autero e sumamente empreendedor...”. O casal fixou a
sua residência naquela cidade e foi lá que nasceram seus dois filhos: Ana
Felícia de Almada e Quadros e Lancastre, no ano de 1792, e João de Almada e
Quadros de Sousa Lancastre, em 28 de Fevereiro de 1794.
Francisco de Almada e Mendonça faleceu
no Porto, no dia 18 de Agosto de 1804, com a idade de 47 anos. “Morreu pobre em 1804, no Porto, sendo sepultado na
Igreja da Misericórdia. Em 1839 foi trasladado para o cemitério do Prado do
Repouso a expensas da Câmara Municipal do Porto, tendo-lhe sido erguido um
mausoléu com um busto de Soares dos Reis”. (Wikipédia)
“A
‘desgraçada viuvez’, como lhe chamaria mais tarde, encontrou D. Antónia
Madalena com 30 anos de idade e com dois filhos menores. A sua situação
financeira não seria das melhores pois sabe-se que seu marido fora acumulando
dívidas, não em resultado de uma vida gastadora mas sim do serviço público.
Nada a ligava ao Porto após a morte de seu marido pelo que logo se decidiu a ir
viver para Tavarede”. (A
Casa de Tavarede)
O seu regresso à terra natal
verificou-se em 7 de Dezembro de 1804.
Enquanto viveram no Porto, o casal
vinha passar temporadas em Tavarede. No ‘Dicionário Portugal Antigo e Moderno’
escreve-se que “quando aqui
residiam eram a providência dos pobres destes sítios. As senhoras de sua
família deram muitos ornamentos para a igreja matriz, alguns dos quais ainda
existem”.
É oportuno recordar que, e tudo assim o
indica, o casal teve grande influência no desenvolvimento cultural do povo da
terra, nomeadamente incutindo nele o gosto pelo teatro, que, desde então, foi o
principal veículo educacional para as gentes tavaredenses. Lembremo-nos que D.
Francisco de Almada fundou, no ano de 1798, o Teatro de S. João, onde fez
apresentar as melhores companhias teatrais e de dança, nacionais e
estrangeiras.
Com a ida de D. Antónia Madalena para o
Porto, a administração da Casa de Tavarede passou a ser gerida por
procuradores. Um desses gestores foi o padre dr. José Vieira Pinto que, tendo sido
destituído do cargo em Dezembro de 1794, procedeu à elaboração de um inventário
dos bens móveis e dinheiros. Este relatório está transcrito no anexo 6 do
trabalho ‘A Casa de Tavarede’, da autoria do doutor Pedro Quadros Saldanha e ao
qual nos temos referido por diversas vezes. “...
os móveis ali existentes em 1794 e os que se encontravam numa casa sita em
Lares, mostram ainda a grandeza do Paço e a riqueza dos seus proprietários”.
As elevadas dívidas deixadas pelo
falecimento de D. Francisco de Almada, tendo sido vários os credores que
procederam judicialmente para a cobrança das dívidas, levaram à continuação do
aforamento de muitos bens imóveis, especialmente na Morraceira e na Figueira,
em condições desvantajosas.
“As dívidas que ficaram de seu
marido, a necessidade (e vontade) de viver de acordo com a sua condição social,
a necessidade de dar destino aos filhos, alguma inabilidade e a certa falta de
preparação para a gestão dos seus bens, os muitos interesses de terceiros que
geraram à volta dessa administração e principalmente as consequências locais
das invasões francesas serão as causas mais seguras para o descalabro
económico”. (A Casa de Tavarede)
A situação levou a Morgada a resolver
mudar-se para a capital. A situação dos filhos, nessa ocasião, era a seguinte:
Ana Felícia havia sido recolhida, como educanda, no convento da Visitação, em
Lisboa, por ordem do príncipe regente D. João VI, e seu filho João, que fora
educado no Colégio dos Nobres e entretanto recebera o título de ‘barão de
Tavarede’, mercê real concedida em memória de seu pai, casou, aos dezasseis
anos, com uma fidalga trancosense, Maria Emília da Fonseca Pinto de Albuquerque
Araújo e Menezes, foi residir para Trancosco, após um breve período que o casal
morou em Tavarede.
De notar que, aquando do casamento, D.
Antónia Madalena dotou o filho com “a propriedade e
o usufruto de um terço dos seus bens livres e administração e uso da Casa de
Tavarede, vínculos e prazos, bens livres, em cujo governo entraria logo que
casasse, ficando este obrigado a pagar-lhe 2.800.000 reis anuais, em mesadas
iguais, vivendo ela separada do filho.
Caso ele não cumprisse estas obrigações, D. Antónia
Madalena retomaria a administração da Casa de Tavarede, ficando com a obrigação
de dar àquele 6.000 cruzados anualmente a título de alimentação”.
Por volta do ano de 1810, D. Antónia
Madalena resolveu ir viver para a capital, recolhendo-se ao convento de Santos,
juntamente com sua filha que, até então, se encontrava internada no convento da
Visitação. De referir que, ainda enquanto residente em Tavarede, a morgada
havia tomado ao seu serviço João Anselmo de Melo Barreto de Eça, natural de
Águeda, que mais tarde se tornaria seu mordomo e administrador e que, como se
verá, teve grande influência no seu destino.
Estando em Lisboa, e na tentativa de
evitar que a Casa de Tavarede fosse consumida no pagamento das enormes dívidas
existentes, D. Antónia Madalena requereu a administração judicial da sua Casa. “Consistia numa providência régia, pela qual o
senhor de uma Casa assolada por circunstâncias que a punham em perigo, obtinha
a graça da transferência da sua administração para um magistrado judicial. O
principal benefício consistia na paralisação dos meios que os credores dispunham
para a cobrança dos seus créditos, cobrança essa que ficava sujeita, por
rateio, às disponibilidades do rendimento do património. O outro benefício
consistia no pagamento de uma pensão ao senhor da Casa, para sua subsistência e
decente sustentação, pensão essa que também saía do rendimento”. (A
Casa de Tavarede)
A requerida administração foi concedida
por provisão datada de 12 de Novembro de 1810, sendo nomeado administrador o
Desembargador José António da Silva Pedrosa. A morgada de Tavarede receberia
uma pensão de 60.000 reis mensais que, segundo ela disse mais tarde, ‘só davam para tenda, aguadeira e lavadeira’.
Entretanto, e por decisão régia de
Fevereiro de 1811, Ana Felícia voltou ao convento da Visitação para acabar a
sua educação.
Enquanto residente em Lisboa, a morgada
seguia, com a maior atenção, a situação da sua Casa. Notando que a
administração judicial não estava a actuar convenientemente, decidiu-se a
apresentar superiormente o caso. “Diz D. Antónia
Madalena de Quadros e Sousa, Senhora de Tavarede, viúva de Francisco de Almada
e Mendonça, que tendo obtido de Sua Majestade a graça de lhe conceder uma
administração judicial para a sua Casa de Tavarede, de que V.Exª. é digníssimo
Juiz, vem a Suplicante informar que representam a sua Casa com mágoa e
defraudação, pelo que a sua Casa está sofrendo em alguns dos seus direitos. E
principia, agora no presente requerimento, pelo abuso que várias pessoas da
Figueira, Lavos e Vila Verde, têm feito da passagem para a Ínsua da Morraceira,
sem reconhecimento, licença ou facultado deste Juizo ou da Suplicante.
Entre os bens desta Casa se
compreende a dita Ínsua da Morraceira, que é uma ilha próxima à foz do Mondego,
cuja ilha é toda da Suplicante, e compondo-se de salinas, é a passagem para a
dita ilha privativa da Casa da Suplicante, e ninguém pode atravessar por ela
senão nos barcos estabelecidos para esse fim, e de cuja passagem pagam
direitos, desde tempo imemorial, à Casa da Suplicante, tendo havido já
sentenças obtidas pela Suplicante e seus antepassados a favor destes direitos.
Acontece, pois, que ao presente
muitas pessoas, com ofensa destes direitos, põem barcos para a passagem para a
Morraceira, sem quererem reconhecer este Juizo ou a Suplicante, como senhora
exclusiva deste direito, e por isso ela recorre a esta administração para que
se digne mandar ordem ao Juiz de Fora da Figueira, a fim de se evitar este
abuso, fazendo-se citar quaisquer pessoas que tenham barcos para a dita
passagem, para mais o não praticarem, sem reconhecimento a este Juizo ou à
Suplicante, com a pena de que fazendo o contrário lhe serem apreendidos e
inutilizados os barcos, intimando-se igualmente Domingos José da Costa, da vila
da Figueira, actual recebedor das rendas da Casa da Suplicante, para que com o
seu conhecido zelo, fiscalize o exacto cumprimento da ordem sobredita, pondo os
barcos necessários, fazendo os ajustes convenientes e recebendo o produto
destes direitos, da mesma forma que recebe as mais rendas da Casa da
Suplicante.
A V.Senhoria se digne assim o haver
por bem. D. António Madalena de Quadros e Sousa”.
Em Julho de 1811 foi forçada a
abandonar o convento de Santos, onde estava recolhida, devido a não ter
possibilidades de cumprir o pagamento da sua estadia, uma vez que o
administrador da sua Casa deixara de lhe pagar a pensão estabelecida, argumentando
a falta de rendimentos. Refira-se que a fidalga “nunca negou as dificuldades que passou”, tendo-se visto na
necessidade da “venda do prazo de Torres
Vedras e das suas jóias, móveis, carruagens e bestas”.
Terá sido um período bastante difícil
para a morgada. A doença também a atacou, conforme uma certidão médica, de
Junho de 1811 que diz “D. Antónia
Madalena sofre de moléstias que tornavam a sua existência penível e sempre
objecto de remédios, muito principalmente agora que se tem exacerbado algumas
delas para as quais precisa de remédios e exercício de quitação e banhos de
mar”.
Uma outra certidão, do mesmo mês, refere que “se
acha bastante doente em razão de se terem agravado as suas antigas moléstias; e
tendo-se aplicado alguns remédios, entre estes ‘leite de burra’, entendia que
devia passear de sege ou a cavalo, do que se acha impossibilitada de os tomar
por falta de meios”.
Resolveu, então, pedir aumento da
pensão mensal que “tem a
suplicante há mais de um ano passado os mais cruéis vexames e duras
necessidades, sendo violentada a prejudicar seus filhos e a decência da sua
pessoa, pela ‘arratadíssima’ venda de todas as suas mobílias e próprias roupas,
e que os 60.000 reis mensais não chegavam para um terço do mês, visto o
tratamento que precisava pelas moléstias que tinha. Sustentava-se com o seu
próprio bacalhau e arroz porque tinha aquele lastimoso recurso e ainda quem lhe
emprestasse alguns vintens para ir suprindo 120 ou 130.000 reis que cada mês
gastava”. (A Casa de Tavarede)
E em Dezembro de 1811 verificou-se a
substituição do administrador da Casa de Tavarede pelo também Desembargador
José Guilherme de Miranda.
As quezílias com seu filho e,
especialmente, com o sogro deste, bem como as contínuas exigências dos
credores, não a deixavam em sossego. E em Março de 1813 regressou à sua casa em
Tavarede.
Três meses depois do seu regresso a
Tavarede, teve lugar o casamento de sua filha Ana Felícia, com Tomás da Cunha
Manuel Henriques de Melo e Castro, morgado da Roliça.
Natural de Coimbra, onde nasceu em 8 de
Agosto de 1777, era filho de D. Rodrigo da Cunha e de D. Isabel Bray, foi o
décimo-primeiro morgado da Roliça, moço fidalgo da Casa Real e tenente coronel
do Regimento de Milícias da Figueira da Foz, tendo sido condecorado com a
medalha da guerra peninsular, e faleceu em Lisboa no dia 26 de Outubro de 1849.
Apesar de ter melhorado o
relacionamento de D. Antónia Madalena com o novo administrador judicial, o
desembargador José Guilherme de Miranda, a morgada requereu, em Janeiro de
1817, a cessação da administração judicial, com a alegação de estar a sofrer
grandes prejuizos, mas a mesma não foi concedida.
“Mas
o que D. Antónia Madalena não conseguiu directamente viria a obter por outra
via e talvez de melhor forma. Mais uma vez intervém João Anselmo de Melo,
aparentemente no interesse de D. Antónia Madalena, reduzida à situação de não
receber sequer a sua mesada. Foi de facto o ‘cumplice’ de D. Antónia Madalena,
que com sua família a seguira para a Figueira da Foz, onde estava como
negociante, que arrematou o rendimento da Casa de Tavarede. Se o tivesse feito
quando aquela requereu a cessação da administração seria legítimo supor que o
arrendamento fazia parte de uma estratégia para terminar a administração”. (A
Casa de Tavarede)
E foi só no ano de 1826 que a morgada
de Tavarede recuperou a administração da sua casa. “Estes
anos de administração foram de facto
maus para a Casa. No decorrer o rendimento dos bens foi diminuindo,
mesmo quando os tempos já eram menos turbulentos e a oportunidade de negócio
aumentava. Teria D. Antónia Madalena a sua quota-parte de culpa nos factos que
levaram a Casa a entrar em administração. As circunstâncias da sua viuvez,
alguma inexperiência e talvez o mau conselho são circunstâncias fortemente
atenuantes dessas culpas”. (A Casa de Tavarede)
Mas, no ano seguinte, 1827, a vida da
fidalga tavaredense mudou radicalmente. A viscondessa de Condeixa, sua tia D.
Maria Madalena Leite de Castro Oliveira, já então viúva do visconde Pedro Maria
Xavier de Brito Ataíde, faleceu em Lisboa, no dia 27 de Julho, tendo deixado D.
Antónia Madalena como sua herdeira.
A herança trouxe-lhe o vínculo de
avultados bens nos arredores de Lisboa, diversas herdades no Alentejo e o
palácio e a quinta do Grilo em Xabregas. E logo que entrou na posse da herança
D. Antónia Madalena fez a sua mudança para a capital, indo residir naquele palácio.
A morgada de Tavarede vivera catorze anos no seu paço tavaredense.
“…
chegando a esta minha casa, que foi de minha tia, e achando-a sem móveis e só
com as paredes, comprei a mobília necessária para a ornar com decência
correspondente ao decoro da minha pessoa. Comprei parelha e carruagens…”.
“Chegados a este ponto, parece-me
conveniente fazer um pequeno comentário. Como se disse, D. Antónia Madalena
casou com um ilustre e poderoso fidalgo, D. Francisco de Almada e Mendonça,
rico de nobreza e sentimentos mas de pequenos rendimentos. Enquanto viveram no
Porto, preocupou-se este fidalgo, devido ao seu cargo de governador, com o bem
público, mandando fazer imensas obras de interesse social, mas sem apoio
financeiro do governo, pelo que se individou.
Enviuvando muito cedo e regressando
a Tavarede, a fidalga tavaredense, precupou-se em pagar as dívidas de seu
marido, endividando-se por sua vez. Por outro lado, apesar de todos os esforços
que fez, também tomou imensos encargos com a educação e com o casamento de seus
filhos. Não teve, no entanto, qualquer apoio da parte destes. Nisso terá tido
muita importância o ascendente que sobre seu filho tomou o sogro deste, com
quem se incompatibilizou de tal forma, que teve de abandonar a sua casa em
Tavarede, mudando-se para Lisboa, onde viveu em precárias condições económicas.
Acredito que a sua ‘miséria’ terá
sido empolada um bom bocado, tentando que lhe fosse concedida melhor pensão. É
certo que sempre D. Antónia Madalena levou, ou pretendeu levar, uma vida de
certa opulência, incompatível com seus rendimentos, mas a que se julgava com
direito como fidalga que era. Não terá sido ‘extravagante’, como escreveu o Dr.
José Jardim, mas talvez tenha sido a ‘voz do sangue’ que a isso a impelisse. Já
sabemos como haviam sido os fidalgos seus antecessores…
Entretanto a situação política em
Portugal também se tinha alterado. Escorraçados os franceses e depois da
regência de D. João VI, chegou ao poder D. Miguel, a quem o filho de D. Antónia
se aliou, esperançado que todos os bens de sua mãe fossem perdidos por esta, a
quem acusou, por diversas vezes, de esbanjamentos, no que era também culpado
seu mordomo, João Anselmo.
Foram muitos os requerimentos que João
de Almada fez na tentativa de retirar da posse de sua mãe os seus bens. Temia,
diz ele, que ela dissipasse os bens que herdara da Viscondessa de Condeixa, da
mesma forma que dissipara os bens da Casa de Tavarede. Foram ouvidas muitas
testemunhas, de ambas as partes, mas a verdade é que foi dada razão a D.
Antónia Madalena, como refere o despacho do corregedor que julgou o caso … seria muito violento privar de modo tão
sumário D. Antónia Madalena de uma Casa que era sua por direito próprio… E
por decisão do Desembargo do Paço, de 16 de Março de 1829, o assunto ficou
encerrado para sempre.
Parecia, agora, que D. Antónia
Madalena, então com 55 anos de idade, iria passar a ter uma velhice tranquila
na sua casa de Lisboa. Mas não foi isso que sucedeu. A Morgada de Tavarede era
uma liberal. Tinha sofrido enorme desgosto por seu filho ter assumido o
absolutismo. Não sei, na verdade, se o liberalismo da nossa fidalga era uma
verdade indiscutível ou se seria levada a isso por oposição a seu filho. Na
verdade muitas foram as vezes em que ela invocou seus títulos e os de seu
marido, defendendo a sua posição. “Mas sabe-se que
o seu mordomo, João Anselmo, e o padre capelão José Vitorino de Sousa, natural
de Formoselha, que tomara a seu serviço aquando passara a residir em Lisboa,
eram liberais e convictos. E tambem se sabe que, no dia 4 de Julho de 1832,
pelas 2 horas da noite, o Corregedor do Crime de Alfama, com o escrivão e
acompanhados por tropas da Guarda Real da Polícia e dos Voluntários Realistas
de Castro Daire, entraram no seu palácio, sito no ‘pátio da Tavarede’, na Rua
do Grilo, levando presos todos quantos ali se encontravam”. (Quadros
– Os Senhores de Tavarede)
Mais uma vez as tormentas atacaram a
morgada de Tavarede e agora com a acusação, terrível para o tempo, de
liberal...
Além de D. Antónia Madalena, do seu
mordomo João Anselmo de Melo e do padre capelão José Vitorino de Sousa, também
foram detidos os hóspedes: António Manuel da Silva Vieira Broa, alferes
demitido do Regimento de Infantaria de Lisboa; José Maria Rodrigues, natural do
bairro do Castelo de Lisboa; e Joaquim Pessoa da Silva Amorim. Este último,
oferecendo resistência à sua detenção, pois pretendia destruir alguns impressos
comprometedores que tinha em seu poder, foi ferido ainda que sem gravidade.
No dia 7 de Julho a morgada fez uma
petição a D. Miguel requerendo “... por seus
privilégios e por ter sido presa por uma denúncia vaga de crime político, por
suas doenças perigosas, como há quatro dias se acha sem socorros médicos,
incomunicável no segredo da Corte, para Sua Majestade a mandar para onde lhe
aprouver, mas onde a suplicante possa evitar a sua morte”.
Tal petição foi atendida e por aviso
régio de 10 do mesmo mês, foi mandada “ser
transferida do segredo da cadeia da Corte para o mosteiro de Santa Joana”,
onde terá dado entrada no dia 21 daquele mesmo mês, afim de ser julgada por “crime cometido contra a Augusta Pessoa de
Sua Majestade El-Rei Nosso Senhor e segurança do Estado”, com a alegação de
que haviam sido apreendidos papéis subersivos em sua casa.
D. Antónia Madalena, entretanto, havia
sido interrogada quando foi presa. “Ano de 1832.
Aos 6 de Julho do dito ano, nesta cidade de Lisboa e cadeia da Corte, onde veio
o dr. Jerónimo Moreira Vaz, Corregedor do crime do Bairro de Alfama, comigo
escrivão do seu cargo e o assistente no fim assinado, aí mandou chamar à sua
presença a D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa, presa na dita cadeia, e
depois de lhe deferir juramento dos Santos Evangelhos quanto a terceiro, lhe
fez as seguintes perguntas. E eu, José Joaquim Galvão, o escrevi.
E perguntado pelo nome, filiação,
naturalidade, morada, estado e idade, respondeu chamar-se D. Antónia Madalena
de Quadros, filha de José Juzarte de Quadros e Dona Joana Madalena Leite,
natural de Tavarede, moradora da Estrada do Grilo, em Lisboa, é viúva de
Francisco de Almada e Mendonça, e tem de idade 58 anos, incompletos.
E perguntada quando, aonde, por que
ordem e por que motivo foi presa, respondeu que fôra presa na noite de 3 para 4
do corrente, em sua casa, por ordem do Ministro e que ignora o motivo.
E perguntada há quanto tempo viviam
em casa dela, interrogada, Joaquim Pessoa da Silva Amorim, natural de Castelo
Branco, António Manuel da Silva Broa, natural do Sardoal, e que foi alferes do
novo regimento de infantaria de Lisboa, e José Maria Rodrigues, natural da
freguesia de Santa Cruz, do cartel desta cidade de Lisboa, e o Padre José
Vitorino de Sousa, natural de Formoselha, e que mais pessoas eram frequentes em
sua casa, ou por visita ou em efectiva residência.
Respondeu que Joaquim Pessoa da
Silva Amorim, há 5 ou 6 meses na casa dela interrogada, e António Manuel da
Silva Vieira Broa, que reside na casa dela, interrogada, há 3 meses, e José
Maria Rodrigues residia em casa dela, interrogada, haveria um mês, pouco mais
ou menos, e que o seu padre capelão José Vitorino de Sousa, reside na casa
dela, interrogada, há 5 anos, e que não tinha visitas.
E perguntada se antes de admitir na
sua casa, e na sua companhia, os referidos Joaquim Pessoa da Silva Amorim,
António Manuel da Silva Vieira Broa, José Maria Rodrigues, examinara ela,
interrogada, como devia examinar, a conduta religiosa, moral e política destes
indivíduos, e os títulos por que eles puderam legalizar a sua residência na
Corte, principalmente aqueles que dela não serão naturais.
Respondeu que há 3 anos, pouco mais
ou menos, que Joaquim Pessoa da Silva Amorim frequentou a casa dela,
interrogada, visitanto o seu administrador João de Melo Barreto de Eça, com o
qual tomou conhecimento numa hospedaria e contraíram tal amizade que o referido
Joaquim Amorim, frequentando por este motivo a casa dela, interrogada, lhe
pediu o deixasse residir nela, ao que
anuiu ela, interrogada, não lhe investigando a sua conduta, não lhe
importando o que ele fazia, e quando o via era a reunião do almoço, jantar e
ceia; e que António Manuel da Silva Vieira Broa era conhecido dela,
interrogada, há muito tempo, bem como a família dele, e por isso o admitiu em
sua casa e lhe permitiu que nela vivesse, ignorando o seu emprego militar, no
que reconhece o seu pouco cuidado e sua culpa; e que José Maria Rodrigues foi
conduzido a casa dela, interrogada, por um seu tio, chamado Fortuna,
caserneiro, por ocasião de visita e jogo de voltarete, e tomando depois
conhecimento, o dito José Maria Rodrigues, com os filhos do administrador dela
interrogada João José de Melo Barreto de Eça, lhe pediram aqueles que o
deixasse persistir em sua casa, ao que ela interrogada anuiu, ignorando que ele
tivesse culpas.
E por ora ele Ministro não fez mais
perguntas à respondente, que sendo-lhe lidas disse estarem conformes e que as
respostas as ratifica, e assinou com a respondente e nós escrivães, em fé de
verdade. E eu José Joaquim Galvão o escrevi e assinei.
D. Antónia Madalena, a 10ª. Senhora de
Tavarede, foi condenada ao pagamento de
300 000 reis, sendo duas partes para a Casa Pia e uma para os oficiais e
soldados da diligência, por conservar de cama e mesa na sua casa os réus de
Lesa Majestade. Esta sentença foi, porém, revogada.
Presume-se que a Morgada de Tavarede
ainda se encontraria no Convento de Santa Joana no dia 24 de Julho de 1833,
quando Lisboa foi tomada pelos liberais. Com a abertura da prisão aos presos
políticos, certamente que D. Antónia Madalena terá regressado ao Palácio do
Grilo, onde, a 26 de Fevereiro de 1835, faleceu, sendo sepultada no cemitério
do Alto de S. João.
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