1970.07.08 -
DE NOVO E SEMPRE MOLIÈRE EM TAVAREDE
(MAR ALTO)
O
génio de teatro, que se chamou Molière, há anos já foi descoberto por José
Ribeiro, que generosamente o tem vindo a ensinar no seu belo palco de Tavarede,
a todos quantos o representam ou vêm representar. Foram, primeiro, “As
Artimanhas de Scapino”; depois, “O médico à força” e “O avarento”; agora será
“Tartufo”, uma das mais famosas e estudadas peças do maior comediógrafo
francês.
A
fama e o estudo são justos, até na medida em que Tartufo, o falso devoto de
toda a ideologia, nem por sombras é uma figura histórica: ele aí está, pleno de
vitalidade e próspero; vive no meio de nós, cruza-se connosco na rua, nas
repartições, nos recintos de diversão, na igreja; passa e repassa, fazendo o
seu governo à custa dos incautos; maneja a hipocrisia com subtil perícia e
arrojo; no respeitante a processos, claro que tem evoluído com o tempo, que o
mesmo é dizer, progredido muito sensivelmente...
Pois
é essa a figura que uma vez mais hoje se desmascarará perante um público sempre
fiel, no palco da Sociedade de Instrução Tavaredense.
Como
será, desta vez?... Continuarão aqueles valentes amadores a ser capazes de
representar Molière? Quem não gostará de ir hoje a Tavarede?
Mais
uma vez, a representação foi um êxito: casa praticamente cheia, interessada,
vivendo ao sabor da acção que no palco ocorria, rindo muito nos momentos de
rir, sentindo menos os momentos de sentimento.
É
natural esta diferença, quando está em cena uma peça do génio comediógrafo de
Molière. Mais natural é ainda também no grupo de Tavarede, uma vez que, na
obra, as cenas de maior expressão sentimental cabem aos jovens, enquanto as de
efeito cómico couberam aos mais velhos, que ainda hoje dentro do grupo se
impõem decididamente, ou só pela superior prática e vivência de palco, que
todos têm, ou também pela maior capacidade artística que alguns deles
incontestavelmente possuem. Sob a pressão do momento, estamos ainda a
lembrar-nos muito bem de todos: de João Medina (Orgon), de José Luís do
Nascimento (Cleanto), de Fernando Reis (Meirinho)...; mas, para exemplificação
do pensamento antes expresso, recordemos outros.
Recordemos
Maria Teresa de Oliveira (Mme. Pernelle), essa extraordinária artista que, mau
grado o destroço que nela causa a doença, ainda consegue excepcionais
apontamentos, sobretudo em atitudes e jogo fisionómico!
Recordemos
João Cascão que, em cinco minutos de cena, no brevíssimo desempenho de um
(Leal) oficial de diligências, é o exemplo acabado do artista perfeito num
papel que lhe quadra.
Mas
recordemos também João de Oliveira Júnior, por ser um caso diferente dos
anteriores: mau grado outra vez vestido numa pele que lhe não cai bem – um
“Tartufo” não “de carne e osso”, como algures na peça se diz, mas
exclusivamente “osso”; uma figura naturalmente hirta, boa para asceta ou
marcial, para crítico ou homem de ciência exacta, metida na personagem que se
presume untuosa e anafada do hipócrita oportunista e cruel -, às vezes
conseguiu mesmo integrar-se no papel, para acabar muito bem, na atitude de
vencido.
Recorde-se,
por último, Violinda, toda dentro da função, a representar sempre, mesmo quando
é mera figura de fundo. Esta mulher põe em risco de desequilíbrio toda a cena
em que entra, uma vez que as restantes personagens, se se descuidam, podem
desaparecer, apagadas pela sua presença superior!
Eis
por que as demais figuras, as mais jovens do elenco, estão em nítida
desvantagem, neste novo jogo de Molière. Vale-lhes o não se entregarem
vencidas, desempenhando sempre o melhor que sabem e podem os seus papéis: José
Medina (Damis), Maria Inês Lavos (Elmira), e Rosa Maria da Silva (Mariana), por
exemplo, tiveram momentos francamente bons, os dois primeiros às vezes já muito
mais naturais do que em representações anteriores.
Mas,
repetimos, aqui os jovens estão com os papéis mais difíceis de salvar, pois são
quase todos de sentimento, e o primeiro tom da peça é de comicidade aberta.
Sente-se,
de resto, neste precioso grupo amador, uma crise de gerações: entre os mais
velhos do palco e os novos nele, falta uma meia-idade; de onde, talvez, o
desequilíbrio a que acabamos de aludir. Onde estarão os sucessores directos e
naturais dos “velhos”?... Parece-nos que seria necessário aos jovens que lá
andam que amadurecessem teatralmente depressa, muito depressa. E estará isso ao
seu alcance?...
Supomos
que a resposta pode ser de esperança. E damo-la precisamente quando vamos falar
de António Manuel Morais, que esta noite, supomos, fez a sua estreia.
Embora
secundário, o papel de “Valério” exigia mais do que podia dar-lhe o seu
intérprete: é a movimentação no palco; sobretudo, são os braços, ao mãos, as
atitudes. Isso é difícil, de facto! E, não obstante, António Morais conseguiu
um desempenho meritório; sobretudo, possui uma voz estimável, capaz de
modulações curiosas, e já diz bastante bem. Estudante, como é, aproveite essa
excepcional vantagem e leia muito teatro, mesmo só para si; diga-o em voz alta
e represente-o, mesmo só para si; faça isso em casa; ouça o parecer dos pais; a
mãe talvez possa dar-lhe preciosa ajuda no assunto, professora como é.
Acreditamos que, se quizer trabalhar com inteligência, aplicação e humildade,
em breve estará com os restantes jovens do grupo, realizando o tal
amadurecimento rápido que nos parece necessário. Se puder, faça isso e ajude a
fazer.
Estamos
convencidos de que José Ribeiro precisa de todos os seus amadores vivos: os de
agora, os que já foram, e os que podem sê-lo. Precisa de todos e merece-os. Que
ele tem dado a Tavarede o melhor que alguém pode dar a outrem: cultura.
1970.10.24 - O
PROCESSO DE JESUS (O FIGUEIRENSE)
O
grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense apresenta hoje no elegante
teatro da sua sede a célebre peça em 2 partes, “O Processo de Jesus”, uma obra
de teatro revolucionário que consagrou Diego Fabri como um dos mais notáveis
inovadores do teatro moderno italiano.
“O Processo de Jesus” evoca os passos do drama
bíblico com exemplar clareza e, como disse a crítica aquando da estreia da peça
em Portugal, interpreta figuras e factos à luz de um critério, poético e
humano, feito de compreensão e tolerância. “As razões de Caifás, a traição de
Judas, o alheamento de Pilatos, as hesitações de Pedro adquirem, deste modo,
sentido bem diferente do que a lenda e o rodar dos séculos lhes emprestaram”.
1970.11.28 -
O TARTUFO, EM COIMBRA (O
DESPERTAR)
A noite de 23 foi o que, optimista e
hiperbolicamente, poderemos designar como abertura
da temporada teatral citadina, e ao grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, representando em homenagem à Casa da Infância Desvalida Doutor Elísio de
Moura, se devem as primeiras salvas de palmas que nesta época, soaram no
Avenida, quando apresentou “Tartufo”
(será preciso acrescentar: - de Molière?) na versão portuguesa de António
Feliciano de Castilho.
E porquê esta versão?
No fim do espectáculo, José Ribeiro, que há longos
anos se dedicou devotadamente a manter acesa a arte dita de Talma na Terra do Limonete e, por feliz adição,
nas terras onde os tavaredenses logram ir mostrar quanto vale a perseverança da
sua obra, explicou-nos que, de todas as traduções suas conhecidas e nem sempre
de melhor qualidade, os direitos a
pagar tornavam incomportável para o Grupo a sua utilização, o que, por
prescrição, não se verificava já com a versão de Castilho. Mais uma vez se
prova, assim, - se mais alguma prova fosse necessária – que nem sempre se faz o
que se deseja mas sempre e só o que se pode, pese isto aos que pouco ou nada
fazem, embora saibam (saberão?...) como deveria fazer-se muito. Aliás, para
além das inevitáveis dificuldades em vencer o ritmo do poema (nem sempre
logradas, reconheça-se) o que nos chocou na versão utilizada foi, ao que nos
pareceu, a sucessiva utilização da mesma frase, das segundas e terceiras
pessoas verbais, aquelas para o modo de tratamento utlizado na época, estas
para ocasionais necessidades de concordância de rima.
Aceite, porém, a versão escolhida, há que reconhecer
o equilíbrio do espectáculo apresentado, tanto no estilo da representação, como
no guarda-roupa, adereços e cenografia, ressalvando as cortinas com
apontamentos (mais que apontamentos, afinal) de papel engradado, nas portas do
segundo cenário.
A interpretação foi digna dos pergaminhos alcançados
há muito pelo Grupo de Tavarede, que nos apresentou um muito geitoso naipe
feminino – desde a veterana Violinda
em Dorina (é extraordinária a
vitalidade e o amor com que ela se atira às personagens que lhe são
distribuidas) à, segundo nos disseram, estreante Rosa da Silva, em Mariana, com passagem pela também veterana Teresa de Oliveira, em Madame Pernelle, e por Inês Lavos, Elmira, prestes a abandonar a actividade
por imperativos... agora que se afirmava muito positivamente.
No naipe masculino, Nascimento (Cleanto), João Medina (Orgon),
Oliveira Jor. (Tartufo) lembrando
fisicamente Jouvert mas que talvez preferíssemos mais untuoso, e Reis (num
curto mas correcto Meirinho), deram o
que nos pareceu a justa medida, com Cascão algo exuberante no oficial de
diligências Leal, José Medina um
pouco contrafeito em Damis e Morais
ainda incipiente no osso de Valério.
José Ribeiro, bem secundado pelos seus auxiliares
técnicos (Cordeiro a ouvir-se aqui e além, Silva, Almeida e Sousa), continuou a
ser a alma do Grupo, ainda que a
sistemática omissão do seu nome nos programas merecesse um castigo.
Nas palavras que proferiu antes de abrir o pano,
Ribeiro pediu que os possíveis aplausos que viessem a alcançar se destinassem
também a homenagear a memória de Molière. Que homenagem, porém, poderia ser
maior do que essa que os séculos já lhe prestaram transformando em adjectivo
qualificativo o que inicialmente não passava dum simples substantivo próprio –
Tartufo?
Foi, então, assim que, como inicialmente dissemos,
abriu a época teatral de Coimbra – sob o signo da desmistificação. Oxalá possa
prosseguir desmistificando e demitificando, nem que para isso seja preciso
continuar com Molière, subir cronologicamente a Gil Vicente, atingindo até o
próprio Plauto.
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