sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Teatro da S.I.T. - Notas e Críticas - 39


1970.07.08     -     DE NOVO E SEMPRE MOLIÈRE EM TAVAREDE (MAR ALTO)

                O génio de teatro, que se chamou Molière, há anos já foi descoberto por José Ribeiro, que generosamente o tem vindo a ensinar no seu belo palco de Tavarede, a todos quantos o representam ou vêm representar. Foram, primeiro, “As Artimanhas de Scapino”; depois, “O médico à força” e “O avarento”; agora será “Tartufo”, uma das mais famosas e estudadas peças do maior comediógrafo francês.
                A fama e o estudo são justos, até na medida em que Tartufo, o falso devoto de toda a ideologia, nem por sombras é uma figura histórica: ele aí está, pleno de vitalidade e próspero; vive no meio de nós, cruza-se connosco na rua, nas repartições, nos recintos de diversão, na igreja; passa e repassa, fazendo o seu governo à custa dos incautos; maneja a hipocrisia com subtil perícia e arrojo; no respeitante a processos, claro que tem evoluído com o tempo, que o mesmo é dizer, progredido muito sensivelmente...
                Pois é essa a figura que uma vez mais hoje se desmascarará perante um público sempre fiel, no palco da Sociedade de Instrução Tavaredense.
                Como será, desta vez?... Continuarão aqueles valentes amadores a ser capazes de representar Molière? Quem não gostará de ir hoje a Tavarede?
                Mais uma vez, a representação foi um êxito: casa praticamente cheia, interessada, vivendo ao sabor da acção que no palco ocorria, rindo muito nos momentos de rir, sentindo menos os momentos de sentimento.
                É natural esta diferença, quando está em cena uma peça do génio comediógrafo de Molière. Mais natural é ainda também no grupo de Tavarede, uma vez que, na obra, as cenas de maior expressão sentimental cabem aos jovens, enquanto as de efeito cómico couberam aos mais velhos, que ainda hoje dentro do grupo se impõem decididamente, ou só pela superior prática e vivência de palco, que todos têm, ou também pela maior capacidade artística que alguns deles incontestavelmente possuem. Sob a pressão do momento, estamos ainda a lembrar-nos muito bem de todos: de João Medina (Orgon), de José Luís do Nascimento (Cleanto), de Fernando Reis (Meirinho)...; mas, para exemplificação do pensamento antes expresso, recordemos outros.
                Recordemos Maria Teresa de Oliveira (Mme. Pernelle), essa extraordinária artista que, mau grado o destroço que nela causa a doença, ainda consegue excepcionais apontamentos, sobretudo em atitudes e jogo fisionómico!
                Recordemos João Cascão que, em cinco minutos de cena, no brevíssimo desempenho de um (Leal) oficial de diligências, é o exemplo acabado do artista perfeito num papel que lhe quadra.
                Mas recordemos também João de Oliveira Júnior, por ser um caso diferente dos anteriores: mau grado outra vez vestido numa pele que lhe não cai bem – um “Tartufo” não “de carne e osso”, como algures na peça se diz, mas exclusivamente “osso”; uma figura naturalmente hirta, boa para asceta ou marcial, para crítico ou homem de ciência exacta, metida na personagem que se presume untuosa e anafada do hipócrita oportunista e cruel -, às vezes conseguiu mesmo integrar-se no papel, para acabar muito bem, na atitude de vencido.
                Recorde-se, por último, Violinda, toda dentro da função, a representar sempre, mesmo quando é mera figura de fundo. Esta mulher põe em risco de desequilíbrio toda a cena em que entra, uma vez que as restantes personagens, se se descuidam, podem desaparecer, apagadas pela sua presença superior!
                Eis por que as demais figuras, as mais jovens do elenco, estão em nítida desvantagem, neste novo jogo de Molière. Vale-lhes o não se entregarem vencidas, desempenhando sempre o melhor que sabem e podem os seus papéis: José Medina (Damis), Maria Inês Lavos (Elmira), e Rosa Maria da Silva (Mariana), por exemplo, tiveram momentos francamente bons, os dois primeiros às vezes já muito mais naturais do que em representações anteriores.
                Mas, repetimos, aqui os jovens estão com os papéis mais difíceis de salvar, pois são quase todos de sentimento, e o primeiro tom da peça é de comicidade aberta.
                Sente-se, de resto, neste precioso grupo amador, uma crise de gerações: entre os mais velhos do palco e os novos nele, falta uma meia-idade; de onde, talvez, o desequilíbrio a que acabamos de aludir. Onde estarão os sucessores directos e naturais dos “velhos”?... Parece-nos que seria necessário aos jovens que lá andam que amadurecessem teatralmente depressa, muito depressa. E estará isso ao seu alcance?...
                Supomos que a resposta pode ser de esperança. E damo-la precisamente quando vamos falar de António Manuel Morais, que esta noite, supomos, fez a sua estreia.
                Embora secundário, o papel de “Valério” exigia mais do que podia dar-lhe o seu intérprete: é a movimentação no palco; sobretudo, são os braços, ao mãos, as atitudes. Isso é difícil, de facto! E, não obstante, António Morais conseguiu um desempenho meritório; sobretudo, possui uma voz estimável, capaz de modulações curiosas, e já diz bastante bem. Estudante, como é, aproveite essa excepcional vantagem e leia muito teatro, mesmo só para si; diga-o em voz alta e represente-o, mesmo só para si; faça isso em casa; ouça o parecer dos pais; a mãe talvez possa dar-lhe preciosa ajuda no assunto, professora como é. Acreditamos que, se quizer trabalhar com inteligência, aplicação e humildade, em breve estará com os restantes jovens do grupo, realizando o tal amadurecimento rápido que nos parece necessário. Se puder, faça isso e ajude a fazer.
                Estamos convencidos de que José Ribeiro precisa de todos os seus amadores vivos: os de agora, os que já foram, e os que podem sê-lo. Precisa de todos e merece-os. Que ele tem dado a Tavarede o melhor que alguém pode dar a outrem: cultura.

1970.10.24     -     O PROCESSO DE JESUS (O FIGUEIRENSE)

                O grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense apresenta hoje no elegante teatro da sua sede a célebre peça em 2 partes, “O Processo de Jesus”, uma obra de teatro revolucionário que consagrou Diego Fabri como um dos mais notáveis inovadores do teatro moderno italiano.
                “O Processo de Jesus” evoca os passos do drama bíblico com exemplar clareza e, como disse a crítica aquando da estreia da peça em Portugal, interpreta figuras e factos à luz de um critério, poético e humano, feito de compreensão e tolerância. “As razões de Caifás, a traição de Judas, o alheamento de Pilatos, as hesitações de Pedro adquirem, deste modo, sentido bem diferente do que a lenda e o rodar dos séculos lhes emprestaram”.

1970.11.28     -     O TARTUFO, EM COIMBRA (O DESPERTAR)

                A noite de 23 foi o que, optimista e hiperbolicamente, poderemos designar como abertura da temporada teatral citadina, e ao grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, representando em homenagem à Casa da Infância Desvalida Doutor Elísio de Moura, se devem as primeiras salvas de palmas que nesta época, soaram no Avenida, quando apresentou “Tartufo” (será preciso acrescentar: - de Molière?) na versão portuguesa de António Feliciano de Castilho.
                E porquê esta versão?
                No fim do espectáculo, José Ribeiro, que há longos anos se dedicou devotadamente a manter acesa a arte dita de Talma na Terra do Limonete e, por feliz adição, nas terras onde os tavaredenses logram ir mostrar quanto vale a perseverança da sua obra, explicou-nos que, de todas as traduções suas conhecidas e nem sempre de melhor qualidade, os direitos a pagar tornavam incomportável para o Grupo a sua utilização, o que, por prescrição, não se verificava já com a versão de Castilho. Mais uma vez se prova, assim, - se mais alguma prova fosse necessária – que nem sempre se faz o que se deseja mas sempre e só o que se pode, pese isto aos que pouco ou nada fazem, embora saibam (saberão?...) como deveria fazer-se muito. Aliás, para além das inevitáveis dificuldades em vencer o ritmo do poema (nem sempre logradas, reconheça-se) o que nos chocou na versão utilizada foi, ao que nos pareceu, a sucessiva utilização da mesma frase, das segundas e terceiras pessoas verbais, aquelas para o modo de tratamento utlizado na época, estas para ocasionais necessidades de concordância de rima.
                Aceite, porém, a versão escolhida, há que reconhecer o equilíbrio do espectáculo apresentado, tanto no estilo da representação, como no guarda-roupa, adereços e cenografia, ressalvando as cortinas com apontamentos (mais que apontamentos, afinal) de papel engradado, nas portas do segundo cenário.
                A interpretação foi digna dos pergaminhos alcançados há muito pelo Grupo de Tavarede, que nos apresentou um muito geitoso naipe feminino – desde a veterana Violinda em Dorina (é extraordinária a vitalidade e o amor com que ela se atira às personagens que lhe são distribuidas) à, segundo nos disseram, estreante Rosa da Silva, em Mariana, com passagem pela também veterana Teresa de Oliveira, em Madame Pernelle, e por Inês Lavos, Elmira, prestes a abandonar a actividade por imperativos... agora que se afirmava muito positivamente.
                No naipe masculino, Nascimento (Cleanto), João Medina (Orgon), Oliveira Jor. (Tartufo) lembrando fisicamente Jouvert mas que talvez preferíssemos mais untuoso, e Reis (num curto mas correcto Meirinho), deram o que nos pareceu a justa medida, com Cascão algo exuberante no oficial de diligências Leal, José Medina um pouco contrafeito em Damis e Morais ainda incipiente no osso de Valério.
                José Ribeiro, bem secundado pelos seus auxiliares técnicos (Cordeiro a ouvir-se aqui e além, Silva, Almeida e Sousa), continuou a ser a alma do Grupo, ainda que a sistemática omissão do seu nome nos programas merecesse um castigo.
                Nas palavras que proferiu antes de abrir o pano, Ribeiro pediu que os possíveis aplausos que viessem a alcançar se destinassem também a homenagear a memória de Molière. Que homenagem, porém, poderia ser maior do que essa que os séculos já lhe prestaram transformando em adjectivo qualificativo o que inicialmente não passava dum simples substantivo próprio – Tartufo?
                Foi, então, assim que, como inicialmente dissemos, abriu a época teatral de Coimbra – sob o signo da desmistificação. Oxalá possa prosseguir desmistificando e demitificando, nem que para isso seja preciso continuar com Molière, subir cronologicamente a Gil Vicente, atingindo até o próprio Plauto.

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