Este
morgado de Tavarede, Fernão Gomes de Quadros e Sousa, terá sido aquele que pior
administração teve na Casa de Tavarede, levando uma vida de dissipação, criando
enormes dívidas que, posteriormente, quase levaram à ruína…
Entretanto,
a sua violência sobre o povo, os vexames com que constantemente feria alguns e,
sobretudo, as agressões de carácter sexual, de que foram vítimas muitas
mulheres, levaram a que o Cabido da Sé de Coimbra deliberasse tomar a
iniciativa de mudar a câmara, as justiças e a cadeia para a Figueira, convicto
de que, com esta mudança, se acabaria com o ‘poder feudal’ que o morgado usava
constante e abusivamente sobre os pobres povos de Tavarede e outros lugares
vizinhos.
Para
este fim, e tendo obtido o acordo da câmara de Tavarede, formalizou uma queixa
ao rei D. José I. A história desta questão foi minuciosamente estudada pelo
ilustre investigador Dr. Rocha Madahil que, no ‘Album Figueirense’, publicou um
extenso e bem elaborado estudo que intitulou ‘A mudança da câmara de Tavarede
para a Figueira’, e no qual transcreve entre muitos outros documentos, a queixa
apresentada e a resposta que a nobreza e o povo (obrigado a isso pelo seu
senhor) deram, mas que, ao fim e ao cabo, resultaram na mudança efectiva das
autoridades de Tavarede para a Figueira da Foz do Mondego.
Senhor
Representa a
Vossa Majestade o Cabido da Santa Sé de Coimbra, só para o fim de livremente
usar dos seus direitos no Couto de Tavarede em que é donatário da Coroa e para
desagravar as Justiças, que naquele Couto o dito exponente confirma, e manter
as pessoas e famílias dele livres de injúrias e opressões de Régulos, poderosos
e mal inclinados, e com o preciso protesto de que da averiguação da exposição
infra não resulte imposição de penas de sangue e mutilação de membro.
Que no dito Couto
de Tavarede vive dissoluta e despoticamente Fernando Gomes de Quadros, com o
foro de fidalgo da Casa de Vossa Majestade e comendador nas Alhadas, com tão
absoluto e independente poder com vexação das Justiças e povo.
Que tráz as
Justiças daquele Couto debaixo do pé e nada se faz pelo Juiz e vereadores que
se lhe não dê a saber. Não se faz Juiz, Vereadores e Procurador do Couto que
não sejam as pessoas que ele quer ou não quer que sejam, porque quando se faz a
Justiça chama a casa os que hão-de votar, e quando eles não vão os procura e os
faz votar nas pessoas que ele muito quer, e fazendo o contrário os ameaça com
um vergalho, como fez ao capitão Isidoro dos Reis, homem do hábito de Cristo,
que sendo Juiz ele o foi esperar para lhe dar com o dito instrumento, o qual,
tendo aviso, se retirou, quando não certamente o descompunha.
Que quando a
Justiça faz eleição de recebedor das cisas de Vossa Majestade, ou quatro e meio
por cento e outras fintas, se lho não dão a saber, quer que livrem a todos
quantos fazem e por este respeito sucede as mais das vezes, vir Caminheiro
pelos quartéis, por não haver Recebedor por causa dele. E o povo paga muitas
custas, que se houvera Recebedor que tivesse cobrado o pedido a tempo, escusava
o mesmo povo de pagar ao Caminheiro e de experimentar tão grande vexação pela
dita causa.
Que toda a pessoa
que intenta por alguma demanda justa ou quer cobrar alguma dívida, se a tal
pessoa não vai primeiro pedir licença e dar conta do que intenta fazer, faz que
as Justiças dêem a sentença contra a tal pessoa, ainda que tenha razão e justiça,
pondo-se pela contrária, com todo o seu absoluto poder chamando as testemunhas
para que jurem o que ele quer e descompondo as que juram a favor da tal pessoa.
E não só as trata desta sorte mas aos Juízes, mandando-lhes com império e
ameaços, que façam o que ele lhes insinua, aliás, pau e vergalho. Porém ainda
aqui não param as vexações que o dito povo padece com a vizinhança deste homem.
Que naquela terra
há muitos criminosos, por roubos que fazem em casas e fazendas, por dívidas que
devem, pancadas e facadas que dão, os quais logo se vão recolher a casa dele
como couto mais privilegiado que algum que haja no Reino, e ele os recebe e é
padrinho de todos. Porque só o é dos maus e deste valhacouto entram a continuar
nos seus roubos, e dando descomposturas e ferindo à sombra e capa do seu
patrono. Como também o é dos ciganos quando vêm àquelas terras, sendo capa e
dando hospedagem a todo o ladrão e pessoa de má consciência.
Que sendo o Couto
de Tavarede muito pequeno, tráz nele um grande rebanho de cabras, destruindo
todas as vinhas e mais novidades dos pobres, e se acaso lhas deitam fora os
donos das fazendas, os criados se levantam contra eles e os ameaçam com seu
amo, cujo respeito os intimida a não defenderem o que é seu. E o mesmo sucede
com os gados das pessoas que são da sua casa, por serem muitos os compadres e
afilhados que logrão da isenção e privilégios da mesma, e estes, ainda que os
seus gados sejam daninhos, não são coimados e se algum, por esquecimento da
Justiça o foi, logo o faz riscar do livro e fica isento da coima.
Que para maior
esplendor da sua nobreza e respeito da sua casa, quer que tudo o que pede se
lhe faça, ou seja torto ou direito, para o que intimida as Justiças deste Couto
com a sua crueldade, que como são homens de menos esfera, qualquer coisa os
intimida, e por este causa lhe disfarçam as suas insolências, e a toda a pessoa
que não faz o que ele pede lhe costuma levantar labéus e formar crimes falsos,
e como tem muitas pessoas de seu séquito e igual condição, faz as provas que
quer. E a outras as induz a que jurem o que ele quer, e se o não fazem os
castiga com pau e vergalho, e assim se vinga de quem lhe ultrajou o respeito
faltando-lhe ao seu empenho, sendo máxima deste sujeito, como praticou a certa
pessoa, que para a sua casa ser respeitada, hão-de andar os vizinhos sempre
debaixo de um pau, sendo palavra muito sua: eles não querem, pois há-de sair o
castanho, que é um bordão daquela madeira, com que tem dado muitas pancadas em
muitos e da mesma sorte.
Que traz os pobres
trabalhadores destas terras arrastados, porque todas as vezes que quer algum
serviço feito, os manda rogar e se não vão logo, por terem prometido para outro
serviço, os descompõe a pau e vergalho, e muitas vezes os costuma ir tirar do
serviço de outras pessoas aonde andam, ou do seu próprio serviço, dizendo que
está primeiro que ninguém, e como não lhes paga, ninguém o quer servir e se o
servem é com o temor da outra paga que ele costuma dar.
Que só as pessoas
que vivem mal e são mal procedidas favorece e os ajuda para o mal e faz com que
as Justiças os não persigam, só para os ter na sua mão, para com a ajuda destes
fazer tudo quanto quer e ser respeitado e temido, pois o ajudam nas pendências
como pessoas próprias, e nas ocasiões de alguma prova de alguma causa com os
juramentos falsos, que por seu respeito dão.
Que também tomou
umas casas de sobrado e quintal a Teotónio dos Santos Pinheiro, da Figueira, as
quais tinha no Couto de Tavarede, sem que até ao presente as queira restituir a
seus herdeiros.
Que querendo o
Cabido exponente arrendar a renda de Tavarede, este contrato para o que mandou
pôr editais para se saber o dia em que o dita renda se havia de arrematar, o
dito, para sua vingança, mandou pôr outros editais e vários papéis com letra
desconhecida, que diziam: que qualquer pessoa que tomasse aquela renda visse
como a tomava, porque lhe haviam de roubar os frutos e perseguir a quem a
tomasse, e por esta razão persegue ao presente rendeiro, causando-lher mil
vexações e ao mesmo Cabido, induzindo o povo a que lhe não pague os foros que
lhe são devidos, assim pelo foral do mesmo Couto, como por sentenças que contra
eles tem alcançado. Porém, esta inimizade que o suplicado tem ao Cabido, não só
é por ser malévolo, soberbo e de desordenados costumes, mas porque lhe vem por
herança dos seus antepassados, contra os quais alcançou o Cabido exponente
muitas sentenças, não só em favor do mesmo Cabido, mas também daqueles povos
que, oprimidos das injustiças que aqueles perversos homens lhe faziam, recorriam
ao Cabido, como donatário daquele Couto, por mercê do senhor rei D. Sancho, de
gloriosa memória, e não só o dito senhor rei os defendeu daqueles cruéis
vizinhos, mas os senhores reis seus sucessores, de que se acham sentenças e cartas aos corregedores de Coimbra, para que
acudam às vexações que os ditos sucessivamente lhe iam fazendo, que este ódio
vem sucedendo de pais em filhos, de filhos em netos, até chegar a este. E assim
como este ódio se estabeleceu por geração, assim tambem é malinidade e perversidade
de génios e soberba se foi seguindo de uns para outros.
Que fazendo
algumas pessoas fornos para cozerem o seu pão em suas casas, lhes tem o
suplicado entrado pelas portas dentro, acompanhado de seus criados e valentes,
e lhos derrubam e desfazem, como fizeram a Luís de Faria, da Figueira, Teotónio
dos Santos Pinheiro e António Osório, todos homens de bem naquela terra, o que
obra com o pretexto de ter provisão e sentenças possesórias para ter forno de
poia. Na Figueira tudo obtido em tempo em que aquela terra e povoações não
chegaria a ter cem vizinhos, sendo que hoje tem mais de seiscentos, sendo
impossível que este aumento de povo seja bem servido só com o dito forno e
fornalha, que o predito pretende conservar, apesar de toda a povoação em
notória perda da mesma e de seu pão, dano que sofrem para não serem espancados
e descompostos pelo predito e seu filho Pedro José (Joaquim).
Que o predito
suplicado acutilou nas lojas do Padre Cura Manuel Tomás, ao feitor de Fernando
Maria, morador na cidade de Coimbra, que habitava no lugar da Figueira por nome
Manuel Ribeiro Bravo, que no dito lugar tinha loja de comércio, correndo atrás
deste com a espada nua, desde o armazém em que estava quantidade de peixe, até
às ditas lojas, por o predito feitor lhe não dar fiadas umas arrobas de
pescadas secas que lhe pedia.
Que o dito
suplicado foi a casa de Caetano dos Santos, do dito lugar da Figueira, para lhe
dar, o qual com medo e para se livrar, saltou duma janela abaixo, do que ficou
manco de ambos os pés e assim vive.
Que não querendo
um preto do Padre José dos Reis consentir que o gado do suplicado andasse em
uma fazenda do referido senhor do preto, o dito suplicado, com um seu filho,
entraram na dita fazenda para maltratarem o dito preto, que por fugir escapou de
ser espancado com armas que levavam.
Que as Justiças
daquele Couto de Tavarede todas temem e tremem do suplicado e de seus criados,
por estes não só castigarem por obra e palavra, não só ao que lhe fazem coimas
a seus companheiros ou caseiros ou outros seus protegidos, mas a quaisquer que
lhe não obedeçam em quaisquer matreiras de seu empenho, porque contra o
supradito e sua família se não administra Justiça naquele Couto em tanto.
Que dando o
suplicado uns capítulos contra o rendeiro do Cabido exponente, e do juiz
executor do mesmo Cabido, no suposto nome do povo e Câmara, sendo Vossa
Majestade servido mandar que o Corregedor de Coimbra o informasse, mandou o
referido Corregedor chamar os oficiais da dita Câmara de Tavarede, para que
assinassem os ditos capítulos, os quais sendo vistos pelos ditos oficiais da
referida Câmara disseram que tais capítulos se não fizeram nem mandaram fazer,
e que o denominarem serem feitos em seu nome era com falsidade, como o era a
narrativa dos mesmos e que por este motivo os não assinavam, do que sendo
sabedor o suplicado mandou chamar os ditos oficiais a sua casa, e os descompôs
e ameaçou, que se não assinassem os ditos capítulos, os havia de moer com um
pau, e os preditos oficiais, para se verem livres das vexações que o dito
suplicado costuma executar, com medo os assinaram, sem embargo do que Vossa
Majestade informado da verdade pelo dito Corregedor foi servido escusar o
requerimento.
Que é o suplicado
de tão depravado ânimo que até aos religiosos franciscanos de Santo António do
lugar da Figueira chega a ferir a tirania daquele, porque querendo,
fundamentado na sua fidalguia, se lhe faça tudo o que pede e sucedendo lançar
fora do serviço daquela comunidade, o padre Guardião dela ao barbeiro da mesma,
por faltas que tinha feito, recorreu o dito barbeiro ao patrocínio do suplicado
e pedindo a este a dita graça, logo o suplicado o ameaçou que lhe havia de
tirar quantas esmolas pudesse, como com efeito pratica pelos meios que pode
excugitar os sermões daquelas freguesias vizinhas e outras mais esmolas que se
costumam dar.
Que o suplicado é
costumado a proteger facínoras e a injuriar os honrados, porque andando um
Francisco de Oliveira, do dito lugar da Figueira, homiziado por crime de
traição e aleivosia, se refugiou na casa do dito suplicado (com exemplo deste
proteger a outros mais delinquentes) e o dito suplicado o acompanhou com uma
espada debaixo do braço até ao dito lugar da Figueira, e chegando ambos à porta
do padre Libório (que era o ofendido com a dita traição e aleivosia) estiveram
quietos muito tempo olhando para as janelas e casas do dito padre, observando
se saía para o descomporem, segundo se entendeu.
Que o suplicado
nunca pagou a pessoa alguma que o servisse, assim com coisa fiada como
emprestada, e se acaso alguns credores lhe pedem o que lhe emprestaram ou
fiaram, os descompõe espancando-os com pau ou vergalho, e ao pouco de palavra e
se manda pedir alguma coisa fiada e se não lhe fia faz o mesmo, com o que vivem
aqueles povos tão oprimidos que ninguém é senhor de coisa alguma ao pé do
suplicado, porque tudo o que lhe faz conta faz seu, tomando por força de
pancadas o alheio se lho não dão, não pagando também aos trabalhadores que o
servem.
Que mandando a
predito suplicado pedir a um inglês, chamado Daniel, umas pipas emprestadas,
porque este lhas não emprestou, em razão de lhe serem necessárias para a
condução dos seus vinhos, para o que já as tinha postas na praia para se
embarcarem para a dita condução, o dito suplicado mandou conduzir para sua casa
as de que necessitava, contra a vontade do dito Daniel, seu dono, sem sua
licença. Como também mandou conduzir para sua casa uma pouca de madeira de um
homem de Lisboa , de que estava entregue por comissão Luis da Costa, do dito
lugar da Figueira. E haverá dois anos, com pouca diferença, mandou o dito
suplicado pedir uma carrada de canas a um homem de Buarcos, e não
condescendendo este com a petição porque as queria para as suas vinhas, o dito
suplicado, com absoluto poder, mandou os seus criados à fazenda do dito homem e
que dela trouxessem as canas, como com efeito violentamente trouxerão para as
vinhas do referido suplicado.
Que tendo António
José de Saldanha, de Aveiro, uma quinta chamada da Fonte, com uma morada de
casas de sobrado, no Couto de Tavarede, que são de uma capela, lhas demoliu
violentamente o suplicado, e se aproveitou de toda a pedra, telha e madeiras, e
fez das casas e da sua área picadeiro de cavalos, danificando os bens da capela
que lhe não pertencem, e andando os bens desta arrendados por três moios de
milho anualmente, o dito suplicado, pelo ódio que tinha ao referido António
José, fez com que ninguem arrendasse a dita quinta por mais de setenta
alqueires de milho, e alguns anos a fez ficar com menos renda por falta das
ditas casas, que eram nobres e tinham acomodação para os frutos, que agora não
tem.
Que ao marchante
João Lopes, de Maiorca, deve o suplicado quantidade de dinheiro de vaca que lhe
fiou e quando aquele lhe pede a dívida o ameaça e descompõe com um vergalho,
chamando-lhe nomes injuriosos. E todo o marchante que vai com vaca ao lugar da
Figueira, ou há-de dar vaca para casa do suplicado e de suas amigas, sem osso,
que nunca lhe paga, ou se algum o não faz é descomposto com pau e vergalho pelo
suplicado ou sua família.
Que o dito é tão
costumado a obrar mal e de ânimo tão malévolo e falto de justiça, que vindo de
Lisboa a Buarcos Bento da Cunha Terrão, a certo negócio de gosto, que tinha na
dita vila, e convidando alguns parentes e amigos para o tal festejo o obséquio,
o dito foi com os da sua facção, carregados de armas defesas, só a fim de
deslustrarem o dito e seus convidados, chamando-lhe muitos nomes injuriosos,
glosando-lhe várias poesias em que o descompunham e outros desaforos
semelhantes, sem mais conveniência que a de fazer mal e de dar a conhecer a
braveza de seu ânimo e a leveza do seu juizo. E o mesmo fez em Maiorca, aonde
de noite foi ver uma comédia que se fazia em uma casa de Bernardo da Cunha,
saindo com o seu capelão e mais pessoas da sua comitiva, segundo o uso e
costume, com armas defesas, quis meter o festejo à bulha e descompôr o dito
Bernardo da Cunha, que se não usara da sua prudência certamente o matariam,
pois já iam com ânimo disso. Estas façanhas, parece, são estribadas na soberba
e temerário juizo de que só a ele são devidos semelhantes obséquios, e por esta
razão quer ser singular, desprezando desta forma ainda aos melhores daquelas
terras, como é o dito Bernardo da Cunha.
Que anda o suplicado actualmente amancebado com uma
filha sua, bastarda, chamada Antónia, filha de Isabel Gomes, mulher de Manuel
Gomes Raposo, há mais de dez anos, e tem parido dele várias vezes, e chegou a
ir a casa de sua mãe furtá-la, e deu muita pancada no dito Manuel Gomes Raposo,
porque entendia ser sua filha e como tal a defendia para dele não ser roubada
nem ofendida na sua honra, das quais pancadas esteve à morte e se queixou a
Vossa Majestade, e veio decreto para ser preso. Porém, como é muito poderoso,
fez com o Corregedor que era naquele tempo, que não desse a devida execução a
tal decreto.
Que sendo
denunciado pela dita amncebia, diante da Justiça Eclesiástica da cidade e
bispado de Coimbra, e sendo preso pela denúncia (por ser tão poderoso não foi
ao Aljube, ficando sob fiança em casa de seu cunhado, o Correio Mor de
Coimbra), e estando assim preso, numa noite saíu à rua e deu também muitas
cutiladas numas pessoas, que, ao que parece, alteravam a rua. E também por ser
tão poderoso ficou com menos castigo do que merecia, e depois que se viu livre
da Justiça e foi para sua casa, tratou de se vingar nas testemunhas, que, com
medo dele, não tinham dito a metade da verdade. E o primeiro foi o soldado José
Mendes Ribeiro, de Tavarede, que esteve tão mal das ditas pancadas, que recebeu
os Sacramentos. As mais se ausentaram da terra, tendo por melhor o degredo
voluntário que se porem no perigo de cair nas suas mãos, menos certo soldado
que se pôs na resolução de o matar no caso que o dito se resolvesse a quer
ofendê-lo. E como assim o publicassem o dito se absteve do projecto com que
andava. Também deu muita pancada na mulher de Rafael Lopes, da Figueira, Maria
da Costa, e não só por suas mãos fez estes e outros distúrbios semelhantes, mas
também pelos seus criados, como foi à mulher de Tomé de Carvalho, mandando-lhe
dar muita pancada, de que esteve à morte, chamada Teresa Simões, de Tavarede,
por um seu criado valente, chamado José Gomes. E não é necessário que os
criados sejam muito valentes, porque a atrocidade do amo os faz ser cruéis e
destemidos, fiados no respeito do mesmo.
Que naqueles
países de Tavarede, Figueira e lugares circunvizinhos, tem desflorado muitas
donzelas e orfãs, como foram Teresa, do Couto de Quiaios, Maria Neta e Maria da
Silva, da Figueira, e com esta andou muito tempo amancebado. Caetana Gonçalves
e Maria de S. José, filhas de Manuel Francisco Matulo, de Tavarede, e mais duas
filhas da dita Caetana Gonçalves, uma chamada Teodósia, outra Josefa Teixeira,
coabitando com mães e filhas tudo a um tempo. Não falando em mulheres que lhe
vão a casa, que dessas nenhuma escapa, e ainda as próprias criadas e escravas.
E se alguma das ditas donzelas ou orfãs resistem e não consentem, no seu
depravado ânimo lhes impõe testemunhos, dizendo que são mal procedidas e que o
têm sido com ele muitas vezes, não se livrando as pobres da desonra da fama por
se livrarem da da obra. Mas muitas vezes as pobres sem assistindo ao seu
apetite escapam de que ele não diga logo o mal que lhes tinha causado, e assim têm
sido muitas desonradas de obra e palavra, porque logo o publica pelo seu
depravado ânimo e pouco temor de Deus.
Que até a própria
concubina, estribada no seu valimento, faz desacatos sem conta, porque a muitas
mulheres honradas tem descomposto com nomes injuriosos, e a uma Josefa Vieira,
mulher de Paulo da Cunha, quis-lhe dar com uma faca de ponta, andando ela em
seu quintal. E a pobre mulher, com medo da faca, caíu com um acidente.
Que o dito
suplicado anda sempre armado com pistolas, facas, bacamartes, e foi a Buarcos
arrombar a porta a uma mulher honrada, chamada Teresa Rocha, e a quis forçar
pondo-lhe uma faca de ponta nos peitos, ao que a mulher resistiu e se livrou
como pôde desta insolência. E não só destas usa, mas também seu filho mais
velho, com o bom ensino do pai, que também foi uma noite com as mesmas armas à
vila de Redondos, que fica pegada com a de Buarcos, e abriu a porta de uma
estrebaria do padre Cura da dita vila e lhe furtou uma égua, e foi nela para as
partes de Peniche, aonde a vendeu, e até ao presente a não restituiu. E
entregando-lhe o alferes Manuel Bernardes, do Moinho da Mata, ao pé de
Montemor-o-Velho, quarenta e tantos mil reis e um cavalo, para ele os entregar
em Montemor ao licenciado Manuel Pereira da Silva, procurador do Cabido
exponente, a quem o dito alferesera devedor, e por quem era executado, e lhos
entregou na confiança de que pelo respeito do portador lhe fizessem algum
rebate, ele o fez tanto pelo contrário, que fugiu com o dinheiro e cavalo, e
enquanto tudo durou não tornou mais a casa, ficando o alferes sem o seu dinheiro
e cavalo, que até agora se lhe não repôs. E o dito alferes foi preso pela dita
dívida e morreu na cadeia. E o outro filho mais novo, chamado António Leite,
vai seguindo as pisadas de seu pai e irmão, e já tem dado várias facadas,
cometendo mulheres casadas e donzelas, e não só os ditos executam estes
insultos mas também seus criados e familiares.
Que tinha um
capelão em casa, chamado padre Manuel Gonçalves, que, abusando das Ordens e do
seu hábito sacerdotal, é contratador de cal e de bestas, e é rendeiro da
Morraceira e companheiro na dita renda do Parada, de Coimbra. E também usa de
armas defesas, como são pistolas, facas de ponta, e também tem descomposto muitas
pessoas de bem a pau, como foi a Manuel Jorge Tega, de Tavarede, por este lhe
não querer ir com o seu carro buscar uns poucos de paus e mato para o forno da
cal, e o pôs à Santa Unção defronte das casas de seu amo, e tem feito o mesmo a
muitas outras pessoas. E também anda amancebado, com mulheres de todo o estado,
enfronhado no respeito de seu amo e fazendo como ele faz. E da mesma sorte são
os mais criados, acompanhando a seu amo em vários distúrbios e com a capa
dele,fazendo outros, usando das mesmas armas que ele usa, não só nas ocasiões
em que ele os manda mas nas que eles tomam por sua conta pelo seu mau exemplo.
Que o dito
suplicado tem feito muitas mortes, porque matou a António Pedro, cunhado do
Juiz da Alfândega da Figueira, de noite, com dois tiros de pistola, E deu tanta
pancada em Manuel Ribeiro Bravo que este das mesmas pancadas morreu; como
também matou um galego, no lugar do Pombalinho e da mesma sorte deu muita
pancada em António Gil, marido de Nazaré Gonçalves, em forme que logo no outro
dia morreu delas. E também deu tanta pancada em Manuel Ferreira Castanheira, da
Figueira, que o deixou por morto, por este lhe pedir certa quantia de dinheiro
que lhe devia de vaca, que lhe fiou do seu açougue em tempo, quando o dito
Manuel Ferreira era marchante, sem embaraço de que até ao presente lhe não
satisfez.
Que também o
mesmo suplicado deu muitas bofetadas na cara e pancadas no corpo de um seu tio,
por nome de João de Quadros e Sousa, irmão de seu pai Pedro Lopes de Quadros,
por o dito João de Quadros chamar sua mulher para sua casa, ao qual o dito
suplicado ainda hoje traz muito atropelado por lhe não pagar uma tença de
oitenta mil reis que seu pai lhe deixou, motivo porque se acha muito
necessitado. Como também deu muita pancada em André Pessoa, da Várzea, e deu
também tantas em Manuel da Silva, do lugar do Lírio da Alhada, que se lho não
tirassem das mãos certamente o matava. Como também deu o suplicado com uma
espada, de noite, em Bernardo Migueis, de Tavarede, e lhe lançou as tripas
fora, e sem dúvida o mataria se não sucedesse topar-lhe a espada em um osso que
a fez resvalar, excesso que obrou sem causa alguma justificada. E da mesma
sorte deu muita pancada na mulher de Paixão Rodrigues, de Tavarede, por
respeito de uma concubina que o suplicado tem há muitos anos, por causa da qual
tem espancado a várias pessoas, que as testemunhas dirão.
Que o suplicado
se porta com tão pouca emenda daqueles excessos, que pouco tempo há que
despedindo D. Isabel Senhorinha, mulher do médico de Leiria, Fernando Miguel, a
um moleiro de um seu moinho, por este se não querer dar por despedido sem
aquela lhe ajustar contas, pagando-lhe o que lhe restava, se valeu a dita D.
Isabel do suplicado, para que este espancasse, ou mandasse espancar, ao dito
moleiro, e com efeito o suplicado aceitando a deprecação o mandou espancar, por
dois criados, um chamado José Borges, seu caçador, e outro Domingos de
Carvalho, ambos de Tavarede, o qual Domingos Carvalho anda sempre soicado de
armas a consentimento do dito suplicado.
Que tanto é vício
natural no suplicado e seus predecessores o viver com excessos e absolutos, que
já aquela prática passou ao filho mais velho do suplicado, quando, próximo dos
meses de Novembro ou Dezembro do ano de mil setecentos e cinquenta e quatro,
tiranamente matou seu tio, o padre Frei Aires, religioso de S. Francisco,
dando-lhe um tiro com uma espingarda, por este o repreender de alguns
distúrbios que vinha de fazer no lugar da Figueira, além de outros que expostos
ficam.
Pede a Vossa
Majestade se digne mandar que sobre o exposto informe o Corregedor da Comarca
de Coimbra por direitos de testemunhas fidedignas e que para estas jurarem sem
medo ou suborno, o suplicado seja exterminado na distância de trinta léguas e
seus filhos, até se concluir a
diligência e pelo que constar administrar inteira justiça, para que o exponente
e moradores do dito Couto e seu termo, de que é donatário, vivam sem a opressão
do suplicado e sua família, tudo debaixo do protesto, no princípio desta
representação expresso que o Cabido exponente aqui há por repetido. Espera
receber mercê.
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