1971.09.22 - A FORJA (MAR ALTO)
Alves
Redol faz girar o conflito que separa e isola e destrói os personagens, uma
família, à volta de três temas centrais: a perseguição cega de um objectivo
materialista com fim único da vida (no caso de “A Forja”, a compra de uma
casa); a decepção da mulher perante o homem outrora amado, decepção que ela
pretende ultrapassar centrando o amor de mãe no filho mais novo, a esperança na
vida renovada; e o inelutável fracasso da vida se o homem abandona o seu
destino em mãos alheias (mesmo que sejam as do próprio pai).
O
dramatismo da peça adensa-se porque Redol lança mão não de um mas de dois
sentimentos profundos: o materialismo cego do pai e o excessivo amor da mãe.
Redol
segue a lição de Balzac, que introduziu na literatura o tema da importância
vital do dinheiro na vida.
Balzac
concentra, digamos, o amor ao dinheiro e aos três filhos numa personalidade, no
pai, em Goriot. Redol serve-se de dois personagens para dar figuração àqueles
sentimentos. O “père Goriot” é mais humano: o amor às filhas vence as
preocupações do dinheiro. Talvez propositadamente Redol só dá rapazes ao casal
desgraçado, assim isolando ainda mais o “pai”.
Mas
a densidade do dramatismo da peça de Redol ressalta ainda num traço próprio da
alma portuguesa, a visão exagerada do trágico da existência, que nos atraía
Unamuno, o genial espanhol, um dos estrangeiros que mais nos admirou e amou.
Este
elemento, a visão exagerada do trágico da existência, é sabiamente explorado
por Redol.
A
intensidade dos sentimentos, o apego do pai à forja, fonte do dinheiro que
permitirá a compra da casa; a decepção da mãe, que a leva a centrar toda a
capacidade de amar no filho mais novo, e quase cega para o plano inclinado em
que a família, como um bloco, rola para a destruição, desenham estas figuras a
traços fortemente marcados, diremos mesmo, excessivamente acentuados.
Redol
fez uma peça para portugueses, é certo, para gente que, como o “pai” da
“Forja”, aceita o trágico da existência, a força do destino, como ele repete.
Mas não terá Redol perdido, dalguma maneira, o sentido da medida? Não terá ele
ido um pouco além? Não quererá Redol, com este apontar da resignação ao trágico
da existência, criticar, mostrar o absurdo deste sentimento? Redol parece
dizer, através do “pai”, que o homem deve ser indiferente ao destino, deve
lutar sempre, como um homem autêntico. A morte do “pai” às mãos da “mãe” parece
deixar crer que o homem será castigado se viver alheio a tudo, ao seguir
cegamente uma paixão. O “pai” sente que fracassou por se ter fixado, abandonado
a vida de vagabundo. Também aqui Redol aflora um tema trágico: o das paixões
amorosas intensas, fonte de infelicidade.
No
fundo, este entrechocar de temas e sugestões, Redol talvez queira dizer que na
miséria, entre gente esmagada por dívidas, sacrificada pelo trabalho, mal
alimentada, a luta acaba na auto-destruição. O trabalho só por si, bem no
fundo, nada resolve, é inútil o esforço.
Todavia,
esses excessos de Redol, homem de sentimentos profundos, homem que talvez se
revoltasse contra uma visão dominadora do trágico da existência, não prejudica
a peça. Sentimo-nos opressos pelo dramatismo de Redol, mas não nos cansamos.
A
arte de Redol surge a toda a luz no perdão que concede aos pais, na simpatia
pelo povo, o povo humilde, por vezes endurecido por séculos de miséria e
opressão.
Certo
que Redol humaniza por vezes a ferocidade dos dois desgraçados. Fá-lo, porém,
episodicamente, em lances propositadamente rápidos. O ambiente bravio e
tormentoso em que o conflito se desenvolve, em tom ora colérico ora lamentoso,
ameniza-se por vezes instantâneamente, como acontece nas grandes tempestades.
Mas desde logo a cólera, o ódio, o desencanto retomam os seus direitos. Tudo
isto é dado com uma arte, um poder, uma força latente que a encenação de José
Ribeiro nos parece ter servido fielmente.
As
aproximações e os distanciamentos das figuras estão bem marcados, conjuga-se
bem o texto com a movimentação dos personagens.
Se
aqui e ali se notam certas hesitações, uma ou outra rigidez de atitude, tudo
incipiências próprias duma primeira representação, a movimentação das figuras,
o ritmo global da representação foi francamentre bom. As aparições da “Morte”
são momentos de grande beleza rítmica e de intensa densidade emocional.
A
presença de Violinda Medina garantia, a
priori, um êxito para a peça; mas a actuação de sábado excedeu a expectativa.
Uma notável representação da excelente amadora, que se elevou há muito tempo a
um nível invulgar. Todo o dramatismo da figura difícil e atormentada de uma mãe
vergastada por sentimentos contraditórios é transmitido com sobriedade,
delicadeza e verdade.
João
Medina, no pai, enquadra-se num esquema simples, que aceitamos, porque o
sentimos emanado do texto e da encenação, mas a que pomos algumas reticências.
Não poderia haver menos rigidez nas atitudes, com mais frequência? O clima
geral da peça, o vigor do texto, a força da movimentação dos personagens não
permitiriam atenuar a dureza das atitudes individuais?
Mas,
digamo-lo sem reservas, Violinda e João Medina quase se igualam no vigor, na
firmeza com que nos deram uma noite de teatro de aplaudir.
José
Medina e João de Oliveira Júnior, dois dos quatro filhos, souberam também
acompanhar o nível da representação. E nisto está o seu melhor elogio. João de
Oliveira Júnior é o elemento consciencioso de sempre, a um tempo sóbrio e
brilhante, e José Medina sustentou bem – e valorizou-as – cenas que poderiam
afrouxar nas mãos de um amador menos bem dotado.
Os
restantes surgem como peças secundárias mas nem por isso menos essenciais ao
equilíbrio do conjunto. Que nunca tivessem claudicado com manifesta evidência,
é mérito deles e duma encenação cuja mão firme e sabedora está sempre presente.
As
virtudes desta peça de Redol e deste grupo de magníficos amadores poderiam
levar-nos mais longe, mas cremos que estas linhas serão suficientes para dar
ideia da valia do espectáculo de sábado em Tavarede, e que o público soube
compreender.
1971.09.22 - A PALESTRA DE JOSÉ RIBEIRO (MAR ALTO)
Antes
da representação, o director do grupo fez aos associados da SIT a sua palestra,
como habitualmente na estreia das peças.
Depois
de Molière com o seu imortal Tartufo,
onde a rir se dizem coisas muito sérias, desejou-se dar aos tavaredenses um
original português – e aqui temos Alves Redol com a sua Forja, obra notável de êxito invulgar no nosso teatro.
Dando
fugídio resumo da peça, de forte realismo marcado de valores simbólicos,
referiu as várias representações da peça por profissionais e amadores, no
continente e em Moçambique, aludiu à diversidade de encenações que teve, de que
só pode fazer ideia pelas críticas, pois as não viu, mas por estas críticas
podendo concluir-se que essas encenações foram de diferentes estilos e
diferentes processos, umas de mais vincado simbolismo, outras dando arrojado
teatro de vanguarda, com escadas exteriores e interiores com estrados e
degraus, com diferentes jogos de luz e de som, - em todos, afinal, usando-se da
liberdade que aos encenadores o próprio autor outorgou: “Ficará a liberdade de
concepção para os que queiram fazer representar esta tentativa de teatro”.
Referiu-se ao coro que Redol, em sugestão da tragédia grega, meteu na sua Forja, aqui ainda mais actuante, coro
que nas várias encenações foi utilizado de diverso modo – coro misto, coro
feminino, vestido de cores várias e actuando em bailado, e até suprimido e
substituído por um cantador de baladas. Muito de leve aludindo às figuras da
peça, que Alves Redol recreou numa evocação dos seus familiares que ele sentiu
ou adivinhou a queimarem-se na forja dos Venâncios, referiu-se a uma personagem
de primacial valor na acção – a Morte,
a “noiva branca”, que aos condenados da forja aparece como “uma figura de
beleza apetecida, uma mulher que seduz sem violência”.
A
propósito de as críticas terem notado na Forja
de Redol influências de Lorca e de Brechet, e lembrando outras palestras
anteriores em que se falara aos tavaredenses dos estilos e das técnicas do
teatro medieval, clássico e burguês, muito resumidamente referiu a técnica
brechtiana da distanciação, o teatro épico, oposta à forma dramática do teatro:
nesta, o teatro é activo, o actor toma o lugar do próprio personagem, o
espectador sente a acção, é arrastado para ela; o teatro épico é narrativo,
nele o actor não representa, não sente a acção, narra-a e o espectador não é
imiscuido na acção, analisa-a e toma posição.
Que
se fez aqui em Tavarede ao trazer ao nosso povo esta obra pujante de Redol,
esta humaníssima tragédia, tão opulenta de beleza literária e ao mesmo tempo
tão rica de linguagem teatral? Fiéis ao princípio de que sempre se deve ter em vista o público ao qual a representação se
destina, procurou dar-se à representação da peça a forma de melhor a fazer
chegar, na sua totalidade, ao público da nossa aldeia, sem lhe diminuir o vigor
de tragédia humana e sem lhe reduzir os seus valores simbólicos. Certamente, a
linha de encenação realista que se adoptou será diferente das que até agora
foram seguidas. Mesmo assim, a consciência diz-nos que não atraiçoámos Alves
Redol, antes o quisemos dar ao povo desta aldeia, com humildade, sim, mas com
perfeito sentido de dignidade. Queremos que os actores tavaredenses sintam as
suas personagens, que sejam elas próprias na ficção cénica; desejamos que o
público que aqui veio sinta a peça em toda a sua profundidade e extensão – e
desejamo-lo com a certeza de que esse deixar-se
arrastar na acção de modo algum o impedirá de tomar partido. Bem entendido
que também em Tavarede se usou um pouco da liberdade que Alves Redol concedeu
aos encenadores da sua Forja. Mas
tudo se fez precisamente para servir Alves Redol. Grande romancista, eis Alves
Redol um autêntico dramaturgo; e sendo moderno, permitindo à sua Forja – e pelo visto com êxito
excepcional – as mais arrojadas encenações, a verdade é que esta sua peça está
cheia de indicações de movimento e psicológicas, de pormenores de interpretação,
de rubricas que inteiramente esclarecem o pensamento do autor. O que fizemos
foi seguir essas rubricas, que tão completamente iluminam o admirável texto.
A
terminar, pediu-se aos tavaredenses que lessem o prefácio da Forja – duas dúzias de páginas fulgentes
da melhor literatura contemporânea.
1971.09.23 -
“A FORJA” (A VOZ DA FIGUEIRA)
Marcada
para 26 de Junho último, só agora foi possível levar à cena esta peça,
afastados que foram os motivos impeditivos da sua estreia na data
primitivamente marcada.
No
pretérito sábado, as luzes da ribalta do airoso teatrinho da Sociedade de
Instrução Tavaredense mais uma vez se acenderam, desta feita para nos
proporcionar um tema português, de um grande escritor português – “A Forja”, de
Alves Redol.
Mestre
José Ribeiro, que há largas décadas conduz com mão firme e sabedora a nau da
secção dramática da Sociedade de Instrução Tavaredense, antes do pano subir,
explicou que depois do grupo ter dado aos seus associados o célebre “Tartufo”
do clássico universal Molière, apresentava agora aos tavaredenses uma obra
notável de um escritor português, quase que do estilo burguês pelo assunto e
pela forma de apresentação, contendo em si algumas marcas de teatro moderno ou
o coro da tragédia grega.
Alheando-se
das várias encenações que desconhecia – disse – os tavaredenses pegaram na peça
de Alves Redol com muito carinho e muito humildemente, para apresentar ao povo
de Tavarede tal como Alves Redol a escreveu e sentiu, guiando-se apenas pela
intenção do autor cuja peça considera como uma obra prima da moderna
dramaturgia portuguesa.
“A
Forja” é uma tragédia rústica com princípio, meio e fim, um fim triste como é
próprio de todas as tragédias, um fim que se adivinha, antes do pano descer
para o primeiro acto.
O
Malafaia, ferreiro de profissão, mau, tiranete e rezingão, vivia obcecadamente
para a sua forja, alheando-se da saúde dos filhos que, agarrados ao malho e à
bigorna, dia a dia iam tuberculizando.
Da
voragem da forja salvar-se-iam o António que fugiu de casa, a conselho do João,
já com encontro marcado com a morte para a Primavera, e o Luís – o mais novo –
a quem o pai sarcasticamente apelidava de “doutor-ferreiro” e lhe queimava os
livros.
João
Medina, no papel de pai, teve uma interpretação à altura de qualquer
profissional consagrado, sem incorrer em exageros de dicção ou de gestos.
Violinda
Medina e Silva, a mãe extremosa e esposa sofredora que tudo suporta por amor
dos filhos, foi igual a si própria: mãe e esposa como tantas que a vida nos
oferece a cada passo.
João
de Oliveira Junior, José Medina, Saul Pereira e José Manuel Pinto, são os
quatro filhos do casal que odeiam o pai e que estremecem a mãe, a sua “capa de
misericórdia”.
Lucília
Pinto e Ana Cristina Oliveira, compõem discreta e graciosamente uma “vizinha” e
a “Morte”.
O
cenário, cujo autor desconhecemos, é de perfeita concepção artística.
Parabéns
à Sociedade de Instrução Tavaredense, a mestre José Ribeiro e aos amadores
tavaredenses por mais esta magnífica peça que proporcionaram aos amantes de bom
teatro.
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