sábado, 11 de agosto de 2012

Teatro da S.I.T. - Notas e Críticas - 40


1971.09.22     -     A FORJA (MAR ALTO)

                Alves Redol faz girar o conflito que separa e isola e destrói os personagens, uma família, à volta de três temas centrais: a perseguição cega de um objectivo materialista com fim único da vida (no caso de “A Forja”, a compra de uma casa); a decepção da mulher perante o homem outrora amado, decepção que ela pretende ultrapassar centrando o amor de mãe no filho mais novo, a esperança na vida renovada; e o inelutável fracasso da vida se o homem abandona o seu destino em mãos alheias (mesmo que sejam as do próprio pai).
                O dramatismo da peça adensa-se porque Redol lança mão não de um mas de dois sentimentos profundos: o materialismo cego do pai e o excessivo amor da mãe.
                Redol segue a lição de Balzac, que introduziu na literatura o tema da importância vital do dinheiro na vida.
                Balzac concentra, digamos, o amor ao dinheiro e aos três filhos numa personalidade, no pai, em Goriot. Redol serve-se de dois personagens para dar figuração àqueles sentimentos. O “père Goriot” é mais humano: o amor às filhas vence as preocupações do dinheiro. Talvez propositadamente Redol só dá rapazes ao casal desgraçado, assim isolando ainda mais o “pai”.
                Mas a densidade do dramatismo da peça de Redol ressalta ainda num traço próprio da alma portuguesa, a visão exagerada do trágico da existência, que nos atraía Unamuno, o genial espanhol, um dos estrangeiros que mais nos admirou e amou.
                Este elemento, a visão exagerada do trágico da existência, é sabiamente explorado por Redol.
                A intensidade dos sentimentos, o apego do pai à forja, fonte do dinheiro que permitirá a compra da casa; a decepção da mãe, que a leva a centrar toda a capacidade de amar no filho mais novo, e quase cega para o plano inclinado em que a família, como um bloco, rola para a destruição, desenham estas figuras a traços fortemente marcados, diremos mesmo, excessivamente acentuados.
                Redol fez uma peça para portugueses, é certo, para gente que, como o “pai” da “Forja”, aceita o trágico da existência, a força do destino, como ele repete. Mas não terá Redol perdido, dalguma maneira, o sentido da medida? Não terá ele ido um pouco além? Não quererá Redol, com este apontar da resignação ao trágico da existência, criticar, mostrar o absurdo deste sentimento? Redol parece dizer, através do “pai”, que o homem deve ser indiferente ao destino, deve lutar sempre, como um homem autêntico. A morte do “pai” às mãos da “mãe” parece deixar crer que o homem será castigado se viver alheio a tudo, ao seguir cegamente uma paixão. O “pai” sente que fracassou por se ter fixado, abandonado a vida de vagabundo. Também aqui Redol aflora um tema trágico: o das paixões amorosas intensas, fonte de infelicidade.
                No fundo, este entrechocar de temas e sugestões, Redol talvez queira dizer que na miséria, entre gente esmagada por dívidas, sacrificada pelo trabalho, mal alimentada, a luta acaba na auto-destruição. O trabalho só por si, bem no fundo, nada resolve, é inútil o esforço.
                Todavia, esses excessos de Redol, homem de sentimentos profundos, homem que talvez se revoltasse contra uma visão dominadora do trágico da existência, não prejudica a peça. Sentimo-nos opressos pelo dramatismo de Redol, mas não nos cansamos.
                A arte de Redol surge a toda a luz no perdão que concede aos pais, na simpatia pelo povo, o povo humilde, por vezes endurecido por séculos de miséria e opressão.
                Certo que Redol humaniza por vezes a ferocidade dos dois desgraçados. Fá-lo, porém, episodicamente, em lances propositadamente rápidos. O ambiente bravio e tormentoso em que o conflito se desenvolve, em tom ora colérico ora lamentoso, ameniza-se por vezes instantâneamente, como acontece nas grandes tempestades. Mas desde logo a cólera, o ódio, o desencanto retomam os seus direitos. Tudo isto é dado com uma arte, um poder, uma força latente que a encenação de José Ribeiro nos parece ter servido fielmente.
                As aproximações e os distanciamentos das figuras estão bem marcados, conjuga-se bem o texto com a movimentação dos personagens.
                Se aqui e ali se notam certas hesitações, uma ou outra rigidez de atitude, tudo incipiências próprias duma primeira representação, a movimentação das figuras, o ritmo global da representação foi francamentre bom. As aparições da “Morte” são momentos de grande beleza rítmica e de intensa densidade emocional.
                A presença de Violinda Medina garantia, a priori, um êxito para a peça; mas a actuação de sábado excedeu a expectativa. Uma notável representação da excelente amadora, que se elevou há muito tempo a um nível invulgar. Todo o dramatismo da figura difícil e atormentada de uma mãe vergastada por sentimentos contraditórios é transmitido com sobriedade, delicadeza e verdade.
                João Medina, no pai, enquadra-se num esquema simples, que aceitamos, porque o sentimos emanado do texto e da encenação, mas a que pomos algumas reticências. Não poderia haver menos rigidez nas atitudes, com mais frequência? O clima geral da peça, o vigor do texto, a força da movimentação dos personagens não permitiriam atenuar a dureza das atitudes individuais?
                Mas, digamo-lo sem reservas, Violinda e João Medina quase se igualam no vigor, na firmeza com que nos deram uma noite de teatro de aplaudir.
                José Medina e João de Oliveira Júnior, dois dos quatro filhos, souberam também acompanhar o nível da representação. E nisto está o seu melhor elogio. João de Oliveira Júnior é o elemento consciencioso de sempre, a um tempo sóbrio e brilhante, e José Medina sustentou bem – e valorizou-as – cenas que poderiam afrouxar nas mãos de um amador menos bem dotado.
                Os restantes surgem como peças secundárias mas nem por isso menos essenciais ao equilíbrio do conjunto. Que nunca tivessem claudicado com manifesta evidência, é mérito deles e duma encenação cuja mão firme e sabedora está sempre presente.
                As virtudes desta peça de Redol e deste grupo de magníficos amadores poderiam levar-nos mais longe, mas cremos que estas linhas serão suficientes para dar ideia da valia do espectáculo de sábado em Tavarede, e que o público soube compreender.

1971.09.22     -     A PALESTRA DE JOSÉ RIBEIRO (MAR ALTO)

                Antes da representação, o director do grupo fez aos associados da SIT a sua palestra, como habitualmente na estreia das peças.
                Depois de Molière com o seu imortal Tartufo, onde a rir se dizem coisas muito sérias, desejou-se dar aos tavaredenses um original português – e aqui temos Alves Redol com a sua Forja, obra notável de êxito invulgar no nosso teatro.
                Dando fugídio resumo da peça, de forte realismo marcado de valores simbólicos, referiu as várias representações da peça por profissionais e amadores, no continente e em Moçambique, aludiu à diversidade de encenações que teve, de que só pode fazer ideia pelas críticas, pois as não viu, mas por estas críticas podendo concluir-se que essas encenações foram de diferentes estilos e diferentes processos, umas de mais vincado simbolismo, outras dando arrojado teatro de vanguarda, com escadas exteriores e interiores com estrados e degraus, com diferentes jogos de luz e de som, - em todos, afinal, usando-se da liberdade que aos encenadores o próprio autor outorgou: “Ficará a liberdade de concepção para os que queiram fazer representar esta tentativa de teatro”. Referiu-se ao coro que Redol, em sugestão da tragédia grega, meteu na sua Forja, aqui ainda mais actuante, coro que nas várias encenações foi utilizado de diverso modo – coro misto, coro feminino, vestido de cores várias e actuando em bailado, e até suprimido e substituído por um cantador de baladas. Muito de leve aludindo às figuras da peça, que Alves Redol recreou numa evocação dos seus familiares que ele sentiu ou adivinhou a queimarem-se na forja dos Venâncios, referiu-se a uma personagem de primacial valor na acção – a Morte, a “noiva branca”, que aos condenados da forja aparece como “uma figura de beleza apetecida, uma mulher que seduz sem violência”.
                A propósito de as críticas terem notado na Forja de Redol influências de Lorca e de Brechet, e lembrando outras palestras anteriores em que se falara aos tavaredenses dos estilos e das técnicas do teatro medieval, clássico e burguês, muito resumidamente referiu a técnica brechtiana da distanciação, o teatro épico, oposta à forma dramática do teatro: nesta, o teatro é activo, o actor toma o lugar do próprio personagem, o espectador sente a acção, é arrastado para ela; o teatro épico é narrativo, nele o actor não representa, não sente a acção, narra-a e o espectador não é imiscuido na acção, analisa-a e toma posição.
                Que se fez aqui em Tavarede ao trazer ao nosso povo esta obra pujante de Redol, esta humaníssima tragédia, tão opulenta de beleza literária e ao mesmo tempo tão rica de linguagem teatral? Fiéis ao princípio de que sempre se deve ter em vista o público ao qual a representação se destina, procurou dar-se à representação da peça a forma de melhor a fazer chegar, na sua totalidade, ao público da nossa aldeia, sem lhe diminuir o vigor de tragédia humana e sem lhe reduzir os seus valores simbólicos. Certamente, a linha de encenação realista que se adoptou será diferente das que até agora foram seguidas. Mesmo assim, a consciência diz-nos que não atraiçoámos Alves Redol, antes o quisemos dar ao povo desta aldeia, com humildade, sim, mas com perfeito sentido de dignidade. Queremos que os actores tavaredenses sintam as suas personagens, que sejam elas próprias na ficção cénica; desejamos que o público que aqui veio sinta a peça em toda a sua profundidade e extensão – e desejamo-lo com a certeza de que esse deixar-se arrastar na acção de modo algum o impedirá de tomar partido. Bem entendido que também em Tavarede se usou um pouco da liberdade que Alves Redol concedeu aos encenadores da sua Forja. Mas tudo se fez precisamente para servir Alves Redol. Grande romancista, eis Alves Redol um autêntico dramaturgo; e sendo moderno, permitindo à sua Forja – e pelo visto com êxito excepcional – as mais arrojadas encenações, a verdade é que esta sua peça está cheia de indicações de movimento e psicológicas, de pormenores de interpretação, de rubricas que inteiramente esclarecem o pensamento do autor. O que fizemos foi seguir essas rubricas, que tão completamente iluminam o admirável texto.
                A terminar, pediu-se aos tavaredenses que lessem o prefácio da Forja – duas dúzias de páginas fulgentes da melhor literatura contemporânea.

1971.09.23     -     “A FORJA” (A VOZ DA FIGUEIRA)

                Marcada para 26 de Junho último, só agora foi possível levar à cena esta peça, afastados que foram os motivos impeditivos da sua estreia na data primitivamente marcada.
                No pretérito sábado, as luzes da ribalta do airoso teatrinho da Sociedade de Instrução Tavaredense mais uma vez se acenderam, desta feita para nos proporcionar um tema português, de um grande escritor português – “A Forja”, de Alves Redol.
                Mestre José Ribeiro, que há largas décadas conduz com mão firme e sabedora a nau da secção dramática da Sociedade de Instrução Tavaredense, antes do pano subir, explicou que depois do grupo ter dado aos seus associados o célebre “Tartufo” do clássico universal Molière, apresentava agora aos tavaredenses uma obra notável de um escritor português, quase que do estilo burguês pelo assunto e pela forma de apresentação, contendo em si algumas marcas de teatro moderno ou o coro da tragédia grega.
                Alheando-se das várias encenações que desconhecia – disse – os tavaredenses pegaram na peça de Alves Redol com muito carinho e muito humildemente, para apresentar ao povo de Tavarede tal como Alves Redol a escreveu e sentiu, guiando-se apenas pela intenção do autor cuja peça considera como uma obra prima da moderna dramaturgia portuguesa.
                “A Forja” é uma tragédia rústica com princípio, meio e fim, um fim triste como é próprio de todas as tragédias, um fim que se adivinha, antes do pano descer para o primeiro acto.
                O Malafaia, ferreiro de profissão, mau, tiranete e rezingão, vivia obcecadamente para a sua forja, alheando-se da saúde dos filhos que, agarrados ao malho e à bigorna, dia a dia iam tuberculizando.
                Da voragem da forja salvar-se-iam o António que fugiu de casa, a conselho do João, já com encontro marcado com a morte para a Primavera, e o Luís – o mais novo – a quem o pai sarcasticamente apelidava de “doutor-ferreiro” e lhe queimava os livros.
                João Medina, no papel de pai, teve uma interpretação à altura de qualquer profissional consagrado, sem incorrer em exageros de dicção ou de gestos.
                Violinda Medina e Silva, a mãe extremosa e esposa sofredora que tudo suporta por amor dos filhos, foi igual a si própria: mãe e esposa como tantas que a vida nos oferece a cada passo.
                João de Oliveira Junior, José Medina, Saul Pereira e José Manuel Pinto, são os quatro filhos do casal que odeiam o pai e que estremecem a mãe, a sua “capa de misericórdia”.
                Lucília Pinto e Ana Cristina Oliveira, compõem discreta e graciosamente uma “vizinha” e a “Morte”.
                O cenário, cujo autor desconhecemos, é de perfeita concepção artística.
                Parabéns à Sociedade de Instrução Tavaredense, a mestre José Ribeiro e aos amadores tavaredenses por mais esta magnífica peça que proporcionaram aos amantes de bom teatro.

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