sexta-feira, 18 de julho de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 85

         Foi mais um dia magnífico. Tavarede, mais uma vez e de forma encantadora deu lustre e trouxe a nota lírica e poética às comemorações populares de O Primeiro de Maio, outrora tão luzida e espontaneamente celebradas entre nós.
         Tavarede, mais uma vez, a das frescas várzeas e ubérrimas veigas esteve presente...
         Aguerrido grupo de raparigas – bem bonitotas algumas delas! – ostentando os potes floridos à cabeça, irrompeu às primeiras horas da manhã, pelas ruas da cidade espreguiçante, derramando nela, com a melodia dos seus descantes, a sua beleza vitoriosa e sádia, a efervescência do seu nervosismo e a sua alegria explosiva e boa.
         Nos seus lábios vermelhos, a lembrar os cravos rubros, incendiados de aromas, a inspirada lírica popular, era como o cântico azevieiro das cigarras cantadeiras no estio...
         No mercado, na Praça Nova, perante a Câmara, a Associação Naval e o Comando da PSP o bando desenvolto exibiu com muita agilidade e acerto, as espectaculares danças de roda, que a Figueira aprendeu no passado, a dançar com o restolho do vento, nos ímpetos da Inverneira...
         O Jornalista António Medina, veio das edénicas paragens de Sintra, enfileirar entre os que deram o seu concurso e a comunhão da sua juventude à festa da mocidade.
         E ei-lo, à frente da Tuna, como um romeiro da Saudade, a desprender os harpejos do seu violino – ai dele! – talvez de acordes menos enfónicos... 
E fazia-o identificado com os companheiros, contagiando-os da sua vivacidade. Fazia-o com alma, com entusiasmo, com ardor, consumido na labareda dos seus transportes, num comovido, num desesperado apelo à sua rumorosa mocidade bailariqueira, que evocou comovidamente, quando ele, mai-la a rabeca, era o grande e estrídulo festeiro destas ingénuas rapioqueiras, destas páginas flagrantes e coloridas e tão formosas da formosa Figueira desse tempo!
         Se não havia orvalho cá fora, havia-o – tenho a certeza! – no fundo dos seus olhos, conturbados pela Saudade.
         As perfumadas manhãs do Primeiro de Maio, precederam as do festivo S. João de algum dia e foram os arautos de uma quadra ingénua em que a verdura das mocidades de tantos, estreitadas no mesmo amplexo primaveril, sorria confiadamente à alegria de viver, ao amor, ao desejo, à poesia, à mocidade e ao sonho...

Em Agosto de 1962, a Sociedade de Instrução prestou nova homenagem à sua amadora  Violinda Medina e Silva. Sem exageros supérfluos podemos afirmar que a noite de sábado último ficará assinalada nos anais da história da filantrópica Sociedade de Instrução Tavaredense, como verdadeira noite de glória.
Violinda Medina e Silva sentiu à sua roda, no momento em que aquela colectividade pela sua Direcção e grupo cénico lhe prestavam a justa e merecida homenagem consagradora dos seus altos méritos artísticos, não só os aplausos vibrantes dos seus companheiros de palco, como também as palmas calorosas, entusiásticas e prolongadas do público, que enchia completamente a sala de espectáculos e que em manifestação expontânea quis vir associar-se a tão simpática e justa cerimónia, dando-lhe brilho e realce deslumbrantes. 
Desde o brilhantismo da representação da célebre peça do ilustre dramaturgo Vasco Mendonça Alves, "A Conspiradora", em que Violinda Medina tem actuação magnífica, ao acto de Homenagem durante o qual desfilaram as personagens que a distinta amadora — que, na autorizada palavra de mestre José Ribeiro, já nasceu artista — interpretou no decorrer da sua notável carreira de mais de 40 anos, e que culminou com a oferta de diversas e valiosas prendas vindas de Lisboa, Tomar, Coimbra, Figueira e da sua terra natal, e de flores, muitas flores, que juncaram o palco, aos discursos proferidos pelo presidente da Direcção e do ilustre orientador do grupo dramático, sr. José da Silva Ribeiro, tudo esteve à altura da consagração da talentosa artista, que o público admira e acarinha.
Ao surgir no palco a nobre figura da "Marquesa de Souto dos Arcos", a numerosa assistência, entre a qual viamos distintas senhoras da melhor sociedade figueirense, dispensou-lhe saudação vibrante, entusiástica, inesquecível.
Nos finais dos 4 actos e no decurso das principais cenas, algumas de autêntico "suspense" em que a distinta fidalga, contracenando com o "Conde de Riba d'Alva", que João de Oliveira Júnior encarnou com absoluta propriedade, dá magistrais lições de patriotismo, amor da Pátria, tolerância e generosidade, o público tributou-lhe e aos restantes amadores justos e inequívocos aplausos.
Findo o Acto de Homenagem, Manuel Gaspar Lontro, secretário da Direcção, entregou a Violinda Medina uma artística e bem expressiva mensagem, em pergaminho, de saudação e reconhecimento pelos inapreciáveis serviços prestados pela distinta amadora à SIT, a qual era subscrita pelos elementos do palco e da Direcção, tendo o seu presidente, sr. António de Oliveira Lopes, feito entrega duma valiosa salva de prata.
José Ribeiro, depois de fazer o panegírico de Violinda Medina, recordou com merecido louvor o concurso de alguns distintos amadores da SIT, entre os quais salientou, pela sua já respeitável idade e precário estado de saúde,  a srª D. Helena de Figueiredo Medina pelo nobilíssimo exemplo que ainda hoje oferece às jovens do seu grande amor pelo Teatro.
Das lembranças oferecidas, tomámos nota: uma salva de prata, oferta da Direcção da SIT, primorosamente gravada com artístico desenho de Moreira Júnior alegórico à terra do limonete, figurando nela um antigo brazão de Tavarede e um raminho de limonete; um artístico serviço de chá, dos elementos do grupo cénico e directores; uma salva de prata de sua filha, srª D. Maria Luísa Medina e Silva Pinto, seu genro Carlos da Silva Pinto e sua querida netinha; uma boneca vestida com o trajo de Morgadinha de Val Flor, de seus primos, Gracinda, João e José Medina; uma lindíssima boneca, oferecida por Alberto Anahory que é uma reprodução do riquíssimo trajo executado pelo distinto artista para a peça "Terra do Limonete"; um bolo monumental, oferecido pelos amigos tomarenses, sr. Jacinto de Carvalho e de sua esposa, figurando um livro encadernado com o título "Os Velhos" e as datas de 1959 e 1962.
Entre os muitos e bonitos ramos de flores, destacava-se uma monumental corbelha, de Alberto Anahory.
Na residência da homenageada e na sede da  SIT foram recebidos inúmeros telegramas de saudações, procedentes de várias localidades, sendo um da Figueira da Foz, do sr. Presidente da Câmara Municipal, que tem pela talentosa amadora a maior simpatia e admiração.

         Tavarede e o seu amor ao teatro não podiam passar despercebidos. Mereceu, por isso, uma extensa reportagem no ‘Jornal de Notícias’.             São dois passos desde a cidade até Tavarede… Mas dois passos que nos levam a recuar séculos de existência, no incomensurável mundo das recordações: que a história da Figueira começa depois da história dessa nomeada freguesia do seu concelho!
         De tão verdadeira noticia, aliás, nos alerta, logo que aí se chega, a central “Rua da Câmara de Tavarede”. Sim! – é certo: por doação do segundo rei de Portugal foi a Sé de Coimbra donatária do Couto de Tavarede, a que pertenciam os terrenos (e o mar!) onde mais tarde se criou e floresceu a cidade-praia da Figueira da Foz. Era então Tavarede cabeça de concelho – tinha a sua câmara, os seus fidalgos e a sua casa nobre, que António Fernandes de Quadros ali fundara…
         Mas nunca foram amistosas as relações dos fidalgos da Casa de Tavarede “com os manhosos cónegos do Cabido de Coimbra”. Oito gerações de lutas entre as duas partes se sucederam – até que se deu a inevitável derrota de uma delas! Perderam os fidalgos, que se diziam defensores dos direitos do povo; ganhou o Cabido, que mandou o Deão visitar esse mesmo povo, com pão e vinho em fartura… E assim em 1771, a Câmara de Tavarede era transferida para a Figueira – restando dela, hoje, a recordação que inspira a leitura numa lápida, à esquina de certa rua!
         Resta acrescentar que esse acto político-administrativo não teve no meio social tavaredense as repercussões sérias que seriam de esperar como consequência natural. E não teve, porque os tavaredenses não se haviam deixado enlouquecer pelas honrarias e direitos que lhes tinham pertencido ao longo dos muitos séculos em que a sua terra fora cabeça de concelho! Nem se haviam deixado enlouquecer, nem mesmo terão chegado alguma vez a usufruir dos correspondentes benefícios…
         Tendo nascido pobres e sob o imperativo do trabalho, quando ainda vinha longe a aurora da Nacionalidade, assim quiseram viver sempre, mesmo depois dela… Modestos e laboriosos, tanto nas horas boas como nas más; fiéis às suas melhores tradições e conscientes das suas possibilidades; esclarecidos e experimentados por tantas lições que mostram não ser o povo quem mais lucra com as conquistas político-administrativas das suas terras e dos seus maiores – os tavaredenses, em resumo, puderam pois, continuar a sua vida de sempre; modesta, pobre, e de enxada na mão a cavar de sol a sol a abençoada terra natal. Que essa nunca os traiu!
         Assim chegaram eles aos dias de hoje, ainda iguais aos seus avoengos. Iguais em tudo – até na ânsia do saber!... Uma ânsia que não teme obstáculos – antes os vence, mesmo que para tanto se imponham os mais duros sacrifícios.
         E são gratos a quem lhes leva a luz de novos conhecimentos. Deste sentimento, aliás, é também testemunho inequívoco, em plena praça pública, a “placa” em que se lêem expressivas palavras de homenagem da freguesia à professora que ali ensinou a ler, durante 20 anos consecutivos, quase todos os homens de Tavarede das horas de hoje! Palavras de homenagem, e de gratidão também à professora que jamais se deixou tentar pelos benefícios com que lhe acenavam de outras localidades mais ricas; que se afeiçoou à população pobre e modesta daquela freguesia. Mas também Tavarede não esquecerá nunca essa sua professora, a srª D. Maria Amália de Carvalho, cujo nome estava gravado tanto na lápida da praça pública, como na memória saudosa dos homens de hoje que, quando meninos, dela receberam as luzes que os guiam agora!
         Maria Amália de Carvalho – que era tia da escritora Maria Judite de Carvalho, recentemente laureada com o prémio “Camilo Castelo Branco” pelo seu livro “As palavras poupadas” – continua, pois, a viver na recordação dos tavaredenses como se fora ainda figura presente! E o facto constituirá, portanto, um outro testemunho das virtudes que desde sempre impuseram o povo da modesta freguesia à melhor consideração de quem, um dia, tenha a feliz oportunidade de a visitar – como nós tivemos agora…
         A deslocação é rápida e fácil. Dois quilómetros de estrada ligam a sede do concelho da Figueira da Foz com esta modesta freguesia dos seus domínios… Mas longe que fosse – valeria a pena a deslocação, pelas curiosas e exemplares noticias do seu passado e do carácter do seu povo – que têm por demonstrações mais expressivas essas duas lápidas a que aludimos: a que assinala a “Rua da Câmara de Tavarede”; e a que recorda o nome da professora Maria Amália de Carvalho. Por esses lisonjeiros motivos – e por outros mais!...
         É que Tavarede situa-se numa área de requintados privilégios da Natureza – que vão desde as suaves encostas cujos cumes lhe limitam o horizonte até ao vasto e fértil vale onde se cultivam a horta que alimenta a cidade e as flores que a enfeitam!... Observadas de qualquer ponto mais elevado, oferecem-nos quadros de deslumbrante paisagem as férteis e bem tratadas várzeas – dos mais variados tons esverdeados: dos arvoredos, das searas…
         Porque – como muito bem diz o “Manuel da Fonte” da inspirada revista teatral “Chá de Limonete” (Histórias de Tavarede), do ilustre autor dramático José da Silva Ribeiro: . “Tavarede é uma aldeia pobre enfeitada com flores… E cada casa, um pequeno quintal é um jardim. Em toda a volta da aldeia aconchegada e humilde, há sempre em cada leira um canteiro de flores; e são as rosas, os malmequeres, as violetas, os cravos; e o limonete a dar cheiro e nome à terra! Mesmo onde não há flores, são jardins as hortas verdejantes, as encostas de vinhedos, os pomares olorosos…”.
         E o “Manuel da Fonte” não mente, nem exagera. É assim mesmo a freguesia de Tavarede!
         Mas outras particularidades mais recomendam ainda a visita a essa tão surpreendente freguesia do concelho figueirense.
         Citaremos a do seu “clima” social, por exemplo, em que vivem e trabalham na mais surpreendente harmonia, homens de bem diferenciadas ideias políticas. Acontece até, que uma das importantes realizações artísticas e culturais do meio, se deve ao esforço conjugado e frutuoso de dois homens grandes da terra, cujos ideais políticos serão totalmente opostos – quanto aos meios e processos, pelo que se verifica, afinal…
         E a propósito, eis chegada a oportunidade de referir, finalmente, a circunstância assaz lisonjeira, de se situar igualmente em Tavarede a mais notável – ou das mais notáveis, pelo menos, das afirmações de apaixonado interesse pela arte dramática que Portugal regista. Que, de resto, a fama dessa particularidade terá chegado já tão longe, que mais por ela, do que por outra qualquer, o nome de Tavarede se popularizou – e é hoje citado com respeito e muita admiração!
         Trata-se, sem dúvida, de um caso raro de meio século de trabalho, e luta intensa em favor da causa do Teatro – sobretudo como elemento de educação e de cultura do povo. E é seu “agente”, a Sociedade de Instrução Tavaredense, que homens bons da terra criaram com esse objectivo, precisamente: o de contribuírem para mais elevados graus de educação e cultura dos seus conterrâneos.
         Não vamos, claro está, historiar aqui a vida de epopeia da Sociedade de Instrução Tavaredense. Por muito que escrevêssemos, não conseguiríamos, nunca, dar uma pálida “imagem” do que ela vale e representa!
         Limitar-nos-emos, pois, nesta pobre croniqueta, a citar os seus principais “heróis” contemporâneos; a aludir a uma ou outra das suas realizações do momento; a pedir daqui, a quem de direito, o melhor apoio e a mais efectiva colaboração à prestimosa colectividade; e, finalmente, a recomendar a todos quantos possam gozar da oportunidade de ver representar o grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, que não a desaproveitem!
         José da Silva Ribeiro, espírito esclarecido e culto, escritor de talento e apaixonado pela arte dramática – é a “alma mater” das realizações artísticas da colectividade. António de Oliveira Lopes – com 14 anos de frutuosa actividade à frente da Junta de Freguesia – é a “alma mater” do progresso material. Do trabalho conjunto desses dois excepcionais tavaredenses – é a obra! E o que ela representa, pode avaliar-se pela leitura destas palavras de José da Silva Ribeiro: - “Em certos casos, é sobre os próprios elementos que constituem os grupos de amadores que mais profundamente actua a função educativa e cultural do Teatro. No caso da Sociedade de Instrução Tavaredense, por exemplo”.
         Tenha-se presente que se trata de um grupo de amadores duma humilde e pequena aldeia, pobre entre as que mais o são. O recrutamento é dificil, porque a população é pequena. São bem poucas as famílias que não têm representação no elenco. Aqui se encontram os trabalhadores do campo e das oficinas: rapazes e raparigas da enxada que passam o dia cavando as terras e vêm à noite ao ensaio, operários carpinteiros, pedreiros, serralheiros, raparigas dos alfaiates e das modistas da cidade vizinha, um ou outro empregado de escritório também.
         Se se pretende alguma coisa mais do que mexer fantoches para divertir o público; se desejamos que os intérpretes tomem consciência das respectivas personagens, dos sentimentos que lhes são alma, das ideias que as determinam, da época em que vivem, do ambiente em que se movem, teremos de adoptar processo bem diferente do que se usará com elementos de outra cultura.
         Por isso, aqui, o grupo cénico tem uma actividade que participa da disciplina escolar e do prazer dum passatempo. Que o sistema agrada aos que o praticam, parece não haver dúvida: esta actividade dura há 30 anos!”.
         E os resultados continuam a ser surpreendentes – acrescentamos nós! E com conhecimento de causa: o que resultou de havermos assistido, por feliz acaso, a representação no Teatro do Casino Peninsular, da Figueira da Foz, da peça “A Conspiradora”, de Vasco de Mendonça Alves – pelo grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, que entre tantos dos seus valores, incluía a amadora Violinda Medina e Silva, (“Prémio Maria Matos” dos concursos de arte dramática do SNI) – que tem a dignidade de uma grande actriz!
         Mas Tavarede tem Teatro… e teatro! Um edifício do género – modelar e moderno; e que resultou de grandiosas obras de adaptação e valorização da sua antiga sala de espectáculos.
         O empreendimento valerá para cima de 1.500 contos. Mas custou apenas 950 – porque não faltou quem contribuísse com dias de trabalho e materiais… E desses 950, restam por pagar uns 200 contos apenas!...
         Trata-se de um edifício com todos os requisitos para o género. O pano de boca, por exemplo, tem 20 metros! “Plateia” e “balcões” para a assistência!
         Teremos de ficar por aqui. E contudo, não conseguimos escrever mais do que um simples esboço do muito que há a dizer de Tavarede – da sua história, da sua gente e do seu Teatro!


         Com as obras a prosseguirem no restante edifício, a Sociedade não tinha possibilidade de festejar, como o fazia habitualmente, o aniversário da sua fundação. A data não foi esquecida, mas só teve lugar, na sala de espectáculos, uma animada confraternização do pessoal do palco, à qual deu colaboração, graciosamente, a afamada Orquestra Casino.

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