Foi
mais um dia magnífico. Tavarede, mais
uma vez e de forma encantadora deu lustre e trouxe a nota lírica e poética às
comemorações populares de O Primeiro de Maio, outrora tão luzida e
espontaneamente celebradas entre nós.
Tavarede, mais uma vez, a das frescas
várzeas e ubérrimas veigas esteve presente...
Aguerrido grupo de raparigas – bem
bonitotas algumas delas! – ostentando os potes floridos à cabeça, irrompeu às
primeiras horas da manhã, pelas ruas da cidade espreguiçante, derramando nela,
com a melodia dos seus descantes, a sua beleza vitoriosa e sádia, a
efervescência do seu nervosismo e a sua alegria explosiva e boa.
Nos seus lábios vermelhos, a lembrar os
cravos rubros, incendiados de aromas, a inspirada lírica popular, era como o
cântico azevieiro das cigarras cantadeiras no estio...
No mercado, na Praça Nova, perante a
Câmara, a Associação Naval e o Comando da PSP o bando desenvolto exibiu com
muita agilidade e acerto, as espectaculares danças de roda, que a Figueira
aprendeu no passado, a dançar com o restolho do vento, nos ímpetos da
Inverneira...
O Jornalista António Medina, veio das
edénicas paragens de Sintra, enfileirar entre os que deram o seu concurso e a
comunhão da sua juventude à festa da mocidade.
E
ei-lo, à frente da Tuna, como um romeiro da Saudade, a desprender os harpejos
do seu violino – ai dele! – talvez de acordes menos enfónicos...
E
fazia-o identificado com os companheiros, contagiando-os da sua vivacidade.
Fazia-o com alma, com entusiasmo, com ardor, consumido na labareda dos seus
transportes, num comovido, num desesperado apelo à sua rumorosa mocidade
bailariqueira, que evocou comovidamente, quando ele, mai-la a rabeca, era o
grande e estrídulo festeiro destas ingénuas rapioqueiras, destas páginas
flagrantes e coloridas e tão formosas da formosa Figueira desse tempo!
Se não havia orvalho cá fora, havia-o –
tenho a certeza! – no fundo dos seus olhos, conturbados pela Saudade.
As perfumadas manhãs do Primeiro de
Maio, precederam as do festivo S. João de algum dia e foram os arautos de uma
quadra ingénua em que a verdura das mocidades de tantos, estreitadas no mesmo
amplexo primaveril, sorria confiadamente à alegria de viver, ao amor, ao
desejo, à poesia, à mocidade e ao sonho...
Em
Agosto de 1962, a Sociedade de Instrução prestou nova homenagem à sua
amadora Violinda Medina e Silva. Sem exageros supérfluos podemos afirmar que a noite de sábado último
ficará assinalada nos anais da história da filantrópica
Sociedade de Instrução Tavaredense, como verdadeira noite de glória.
Violinda Medina e Silva sentiu à sua roda, no momento em
que aquela colectividade pela sua Direcção e grupo cénico lhe
prestavam a justa e merecida homenagem consagradora dos seus altos méritos
artísticos, não só os aplausos vibrantes dos seus companheiros de palco, como também as
palmas calorosas, entusiásticas e prolongadas do público, que enchia completamente a sala de
espectáculos e que em manifestação expontânea quis vir associar-se a tão
simpática e justa cerimónia, dando-lhe brilho e realce deslumbrantes.
Desde o brilhantismo da representação da célebre peça do
ilustre dramaturgo Vasco Mendonça Alves,
"A Conspiradora", em que Violinda Medina
tem actuação magnífica, ao acto de Homenagem durante o qual desfilaram as personagens que a
distinta amadora — que, na autorizada palavra de mestre José Ribeiro, já nasceu
artista — interpretou no decorrer da sua notável carreira de mais de 40 anos, e
que culminou com a oferta de diversas e
valiosas prendas vindas de Lisboa, Tomar, Coimbra, Figueira e da sua terra
natal, e de flores, muitas flores, que juncaram o palco, aos discursos
proferidos pelo presidente da Direcção e do ilustre orientador do grupo
dramático, sr. José da Silva Ribeiro, tudo esteve à altura da consagração da talentosa
artista, que o público admira e acarinha.
Ao
surgir no palco a nobre figura da "Marquesa de Souto dos Arcos", a numerosa
assistência, entre a qual viamos distintas senhoras da melhor sociedade
figueirense, dispensou-lhe saudação vibrante, entusiástica, inesquecível.
Nos finais dos 4 actos e no decurso das principais cenas,
algumas de autêntico "suspense" em que a distinta fidalga, contracenando com o "Conde
de Riba d'Alva", que João de Oliveira Júnior encarnou com absoluta
propriedade, dá magistrais lições de patriotismo, amor da Pátria, tolerância e
generosidade, o público tributou-lhe e aos restantes amadores justos e
inequívocos aplausos.
Findo
o Acto de Homenagem, Manuel Gaspar Lontro,
secretário da Direcção, entregou a Violinda Medina uma artística e bem expressiva mensagem, em pergaminho,
de saudação e reconhecimento pelos inapreciáveis serviços prestados pela
distinta amadora à SIT, a qual era subscrita pelos elementos do palco e da
Direcção, tendo o seu presidente, sr.
António de Oliveira Lopes, feito entrega duma valiosa salva de prata.
José Ribeiro, depois de fazer o panegírico de Violinda
Medina, recordou com merecido louvor o concurso de alguns distintos amadores da
SIT, entre os quais salientou, pela sua já respeitável idade e precário estado
de saúde, a srª D. Helena de Figueiredo
Medina pelo nobilíssimo exemplo que ainda hoje oferece às jovens do seu grande amor pelo Teatro.
Das
lembranças oferecidas, tomámos nota: uma salva de prata, oferta da Direcção da
SIT, primorosamente gravada com artístico desenho de Moreira Júnior alegórico à
terra do limonete, figurando nela um antigo brazão de Tavarede e um raminho de limonete; um artístico serviço de chá,
dos elementos do grupo cénico e directores; uma salva de prata de sua filha,
srª D. Maria Luísa Medina e Silva Pinto, seu genro Carlos da Silva Pinto e sua
querida netinha; uma boneca vestida com o trajo de Morgadinha de Val Flor, de seus primos, Gracinda, João e José
Medina; uma lindíssima boneca, oferecida por
Alberto Anahory que é uma reprodução do riquíssimo trajo executado pelo
distinto artista para a peça "Terra do Limonete"; um bolo monumental, oferecido pelos amigos tomarenses,
sr. Jacinto de Carvalho e de sua esposa, figurando um livro encadernado com o
título "Os Velhos" e as datas de 1959 e 1962.
Entre os muitos e
bonitos ramos de flores, destacava-se uma monumental corbelha, de Alberto Anahory.
Na residência da homenageada e na sede da SIT foram recebidos inúmeros telegramas de
saudações, procedentes de várias
localidades, sendo um da Figueira da Foz, do sr. Presidente da Câmara
Municipal, que tem pela talentosa amadora a maior simpatia e admiração.
Tavarede e o seu
amor ao teatro não podiam passar despercebidos. Mereceu, por isso, uma extensa
reportagem no ‘Jornal de Notícias’. São
dois passos desde a cidade até Tavarede… Mas dois passos que nos levam a recuar
séculos de existência, no incomensurável mundo das recordações: que a história
da Figueira começa depois da história dessa nomeada freguesia do seu concelho!
De tão verdadeira noticia, aliás, nos
alerta, logo que aí se chega, a central “Rua da Câmara de Tavarede”. Sim! – é
certo: por doação do segundo rei de Portugal foi a Sé de Coimbra donatária do
Couto de Tavarede, a que pertenciam os terrenos (e o mar!) onde mais tarde se
criou e floresceu a cidade-praia da Figueira da Foz. Era então Tavarede cabeça
de concelho – tinha a sua câmara, os seus fidalgos e a sua casa nobre, que
António Fernandes de Quadros ali fundara…
Mas nunca foram amistosas as relações
dos fidalgos da Casa de Tavarede “com os manhosos cónegos do Cabido de
Coimbra”. Oito gerações de lutas entre as duas partes se sucederam – até que se
deu a inevitável derrota de uma delas! Perderam os fidalgos, que se diziam
defensores dos direitos do povo; ganhou o Cabido, que mandou o Deão visitar
esse mesmo povo, com pão e vinho em fartura… E assim em 1771, a Câmara de Tavarede
era transferida para a Figueira – restando dela, hoje, a recordação que inspira
a leitura numa lápida, à esquina de certa rua!
Resta acrescentar que esse acto
político-administrativo não teve no meio social tavaredense as repercussões
sérias que seriam de esperar como consequência natural. E não teve, porque os
tavaredenses não se haviam deixado enlouquecer pelas honrarias e direitos que
lhes tinham pertencido ao longo dos muitos séculos em que a sua terra fora
cabeça de concelho! Nem se haviam deixado enlouquecer, nem mesmo terão chegado
alguma vez a usufruir dos correspondentes benefícios…
Tendo nascido pobres e sob o imperativo
do trabalho, quando ainda vinha longe a aurora da Nacionalidade, assim quiseram
viver sempre, mesmo depois dela… Modestos e laboriosos, tanto nas horas boas
como nas más; fiéis às suas melhores tradições e conscientes das suas
possibilidades; esclarecidos e experimentados por tantas lições que mostram não
ser o povo quem mais lucra com as conquistas político-administrativas das suas
terras e dos seus maiores – os tavaredenses, em resumo, puderam pois, continuar
a sua vida de sempre; modesta, pobre, e de enxada na mão a cavar de sol a sol a
abençoada terra natal. Que essa nunca os traiu!
Assim chegaram eles aos dias de hoje,
ainda iguais aos seus avoengos. Iguais em tudo – até na ânsia do saber!... Uma
ânsia que não teme obstáculos – antes os vence, mesmo que para tanto se
imponham os mais duros sacrifícios.
E são gratos a quem lhes leva a luz de
novos conhecimentos. Deste sentimento, aliás, é também testemunho inequívoco,
em plena praça pública, a “placa” em que se lêem expressivas palavras de
homenagem da freguesia à professora que ali ensinou a ler, durante 20 anos
consecutivos, quase todos os homens de Tavarede das horas de hoje! Palavras de
homenagem, e de gratidão também à professora que jamais se deixou tentar pelos
benefícios com que lhe acenavam de outras localidades mais ricas; que se
afeiçoou à população pobre e modesta daquela freguesia. Mas também Tavarede não
esquecerá nunca essa sua professora, a srª D. Maria Amália de Carvalho, cujo
nome estava gravado tanto na lápida da praça pública, como na memória saudosa
dos homens de hoje que, quando meninos, dela receberam as luzes que os guiam
agora!
Maria Amália de Carvalho – que era tia
da escritora Maria Judite de Carvalho, recentemente laureada com o prémio
“Camilo Castelo Branco” pelo seu livro “As palavras poupadas” – continua, pois,
a viver na recordação dos tavaredenses como se fora ainda figura presente! E o
facto constituirá, portanto, um outro testemunho das virtudes que desde sempre
impuseram o povo da modesta freguesia à melhor consideração de quem, um dia,
tenha a feliz oportunidade de a visitar – como nós tivemos agora…
A deslocação é rápida e fácil. Dois
quilómetros de estrada ligam a sede do concelho da Figueira da Foz com esta
modesta freguesia dos seus domínios… Mas longe que fosse – valeria a pena a
deslocação, pelas curiosas e exemplares noticias do seu passado e do carácter
do seu povo – que têm por demonstrações mais expressivas essas duas lápidas a
que aludimos: a que assinala a “Rua da Câmara de Tavarede”; e a que recorda o
nome da professora Maria Amália de Carvalho. Por esses lisonjeiros motivos – e
por outros mais!...
É que Tavarede situa-se numa área de
requintados privilégios da Natureza – que vão desde as suaves encostas cujos
cumes lhe limitam o horizonte até ao vasto e fértil vale onde se cultivam a
horta que alimenta a cidade e as flores que a enfeitam!... Observadas de
qualquer ponto mais elevado, oferecem-nos quadros de deslumbrante paisagem as
férteis e bem tratadas várzeas – dos mais variados tons esverdeados: dos
arvoredos, das searas…
Porque – como muito bem diz o “Manuel
da Fonte” da inspirada revista teatral “Chá de Limonete” (Histórias de
Tavarede), do ilustre autor dramático José da Silva Ribeiro: . “Tavarede é uma
aldeia pobre enfeitada com flores… E cada casa, um pequeno quintal é um jardim.
Em toda a volta da aldeia aconchegada e humilde, há sempre em cada leira um
canteiro de flores; e são as rosas, os malmequeres, as violetas, os cravos; e o
limonete a dar cheiro e nome à terra! Mesmo onde não há flores, são jardins as
hortas verdejantes, as encostas de vinhedos, os pomares olorosos…”.
E o “Manuel da Fonte” não mente, nem
exagera. É assim mesmo a freguesia de Tavarede!
Mas outras particularidades mais
recomendam ainda a visita a essa tão surpreendente freguesia do concelho
figueirense.
Citaremos a do seu “clima” social, por
exemplo, em que vivem e trabalham na mais surpreendente harmonia, homens de bem
diferenciadas ideias políticas. Acontece até, que uma das importantes
realizações artísticas e culturais do meio, se deve ao esforço conjugado e
frutuoso de dois homens grandes da terra, cujos ideais políticos serão
totalmente opostos – quanto aos meios e processos, pelo que se verifica,
afinal…
E a propósito, eis chegada a
oportunidade de referir, finalmente, a circunstância assaz lisonjeira, de se
situar igualmente em Tavarede a mais notável – ou das mais notáveis, pelo
menos, das afirmações de apaixonado interesse pela arte dramática que Portugal
regista. Que, de resto, a fama dessa particularidade terá chegado já tão longe,
que mais por ela, do que por outra qualquer, o nome de Tavarede se popularizou
– e é hoje citado com respeito e muita admiração!
Trata-se, sem dúvida, de um caso raro
de meio século de trabalho, e luta intensa em favor da causa do Teatro –
sobretudo como elemento de educação e de cultura do povo. E é seu “agente”, a
Sociedade de Instrução Tavaredense, que homens bons da terra criaram com esse
objectivo, precisamente: o de contribuírem para mais elevados graus de educação
e cultura dos seus conterrâneos.
Não vamos, claro está, historiar aqui a
vida de epopeia da Sociedade de Instrução Tavaredense. Por muito que escrevêssemos,
não conseguiríamos, nunca, dar uma pálida “imagem” do que ela vale e
representa!
Limitar-nos-emos, pois, nesta pobre
croniqueta, a citar os seus principais “heróis” contemporâneos; a aludir a uma
ou outra das suas realizações do momento; a pedir daqui, a quem de direito, o
melhor apoio e a mais efectiva colaboração à prestimosa colectividade; e,
finalmente, a recomendar a todos quantos possam gozar da oportunidade de ver
representar o grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, que não a
desaproveitem!
José da Silva Ribeiro, espírito
esclarecido e culto, escritor de talento e apaixonado pela arte dramática – é a
“alma mater” das realizações artísticas da colectividade. António de Oliveira
Lopes – com 14 anos de frutuosa actividade à frente da Junta de Freguesia – é a
“alma mater” do progresso material. Do trabalho conjunto desses dois
excepcionais tavaredenses – é a obra! E o que ela representa, pode avaliar-se
pela leitura destas palavras de José da Silva Ribeiro: - “Em certos casos, é
sobre os próprios elementos que constituem os grupos de amadores que mais
profundamente actua a função educativa e cultural do Teatro. No caso da
Sociedade de Instrução Tavaredense, por exemplo”.
Tenha-se presente que se trata de um
grupo de amadores duma humilde e pequena aldeia, pobre entre as que mais o são.
O recrutamento é dificil, porque a população é pequena. São bem poucas as
famílias que não têm representação no elenco. Aqui se encontram os
trabalhadores do campo e das oficinas: rapazes e raparigas da enxada que passam
o dia cavando as terras e vêm à noite ao ensaio, operários carpinteiros,
pedreiros, serralheiros, raparigas dos alfaiates e das modistas da cidade
vizinha, um ou outro empregado de escritório também.
Se se pretende alguma coisa mais do que
mexer fantoches para divertir o público; se desejamos que os intérpretes tomem
consciência das respectivas personagens, dos sentimentos que lhes são alma, das
ideias que as determinam, da época em que vivem, do ambiente em que se movem,
teremos de adoptar processo bem diferente do que se usará com elementos de
outra cultura.
Por isso, aqui, o grupo cénico tem uma
actividade que participa da disciplina escolar e do prazer dum passatempo. Que
o sistema agrada aos que o praticam, parece não haver dúvida: esta actividade
dura há 30 anos!”.
E os resultados continuam a ser
surpreendentes – acrescentamos nós! E com conhecimento de causa: o que resultou
de havermos assistido, por feliz acaso, a representação no Teatro do Casino
Peninsular, da Figueira da Foz, da peça “A Conspiradora”, de Vasco de Mendonça
Alves – pelo grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, que entre
tantos dos seus valores, incluía a amadora Violinda Medina e Silva, (“Prémio
Maria Matos” dos concursos de arte dramática do SNI) – que tem a dignidade de
uma grande actriz!
Mas Tavarede tem Teatro… e teatro! Um
edifício do género – modelar e moderno; e que resultou de grandiosas obras de
adaptação e valorização da sua antiga sala de espectáculos.
O empreendimento valerá para cima de
1.500 contos. Mas custou apenas 950 – porque não faltou quem contribuísse com
dias de trabalho e materiais… E desses 950, restam por pagar uns 200 contos
apenas!...
Trata-se de um edifício com todos os
requisitos para o género. O pano de boca, por exemplo, tem 20 metros ! “Plateia” e
“balcões” para a assistência!
Teremos de ficar por aqui. E contudo,
não conseguimos escrever mais do que um simples esboço do muito que há a dizer
de Tavarede – da sua história, da sua gente e do seu Teatro!
Com as obras a prosseguirem no restante
edifício, a Sociedade não tinha possibilidade de festejar, como o fazia
habitualmente, o aniversário da sua fundação. A data não foi esquecida, mas só
teve lugar, na sala de espectáculos, uma animada confraternização do pessoal do
palco, à qual deu colaboração, graciosamente, a afamada Orquestra Casino.
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