sexta-feira, 18 de julho de 2014

Operetas em Tavarede 26


                     Vai com Deus, velhinha santa,
                               Que justiça
                      Será feita e o réu há-de
                     Baixar a fronte submissa
                     Ante a minha majestade
                     Que “mais alto se alevanta!”
                     Vai com deus, velhinha santa!

                     Vai com Deus, santa velhinha,
                                Que o teu pleito
                     Depuseste em boa mão.
                     Eu o tomarei a peito
                     E vai dar-lhe solução
                     A justiça da rainha!
                     Vai com Deus, santa velhinha!

         Maria Clementina conversa com D. Joana, que fica encantada ao conhecê-la e lhe diz:

         D. Joana – “Ouça-me. Uma das minhas amigas tem um filho oficial do exército. No ano passado este rapaz, que é meu afilhado, passou algum tempo em Braga, em serviço; quando regressou a Lisboa, ia preocupado e triste. A mãe, sobressaltada, escreveu para alguém do seu conhecimento que reside aqui próximo e a carta que obteve em resposta tenho-a eu, aqui. (lendo) “Quanto ao que me perguntas a respeito do teu filho, colocas-me em sérios embaraços. Com a franqueza que sempre me conheceste, dir-te-ei que o teu filho Filipe é digno de censura. Há tempos que a sua assiduidade junto de uma menina destes lugares havia sido notada; no dia da sua partida, uma imprudência dele sacrificou a reputação daquela que inocentemente confiara nele...”:

         Sabendo que ela vinha fazer esta viagem, pedira-lhe para procurar a tal menina, que por Roberta soubera ser Maria Clementina, e assegurar-lhe que a mãe de Filipe acredita na sua pureza de mulher, que uma imprudência de seu filho assim sacrificara; que ela lhe pediu que, se pudesse encontrá-la, lhe assegurasse isso mesmo e que lhe transmitisse um beijo “que espero me não recusará”. E foi entre lágrimas que D. Joana, ao despedir-se, lhe garantiu que a todos seria feita justiça.

         Maria Clementina ainda não estava em si. Pois Roberta havia tido o atrevimento de ir falar com a Rainha?... E conhecera-a?

         Roberta – “Conheci logo. Não trazia estadão porque, como me disse o tal rapaz, ela viaja... viaja... Ora como disse ele? Era assim uma coisa como “em cólicas”, mas que vinha a dizer que viajava sem estrondo. Cheguei-me à carruagem e disse para as três senhoras que iam lá dentro: - Qual de V.Exas. é a Rainha? Eu vi logo que devia ser a mais idosa. As duas mais novas desataram a rir... como a menina ri também... não sei porquê. Lembrou-me que seria por eu não dar o tratamento que devia e emendei logo: - Qual de Vossas Majestades é a Rainha? As outras riam ainda... Eram uns galos doirados, coitadinhas, nem por estarem na presença de quem estavam. Raparigas... Mas a senhora tocou-lhes com o cotovelo e disse: - Sou eu, porquê? Eu então, chamei-a de parte e contei-lhe tudo. Era o que faltava se eu me punha com biocos. Depois de lhe ter contado como as coisas se passaram, eu disse à Rainha: - Agora veja Vossa Majestade se isto deve ficar assim, se os militares que Vossa Majestade para cá nos manda vêm para manter a paz ou para meter a desordem nas famílias e fazer a infelicidade de meninas bem educadas”.

         Pois havia sido assim mesmo e o resultado estava à vista. Sua Majestade iria fazer justiça. Eram, entretanto, horas de ceia. Patrão e trabalhadores fazem as despedidas.

            Homens e Mulheres                        
      Boas tardes, meu patrão!

            José Urbano     
       Deus vos salve, meus rapazes,
       Ceiem com satisfação.

            Maria Clementina     
       Santas tardes!

            José Urbano 
       Francisco, vê o que fazes:
       Os enxertos não esquecer,
       Senão deixas-me à divina...

            Francisco     
      Patrão, não tem que temer,
      Não há-de
      Haver novidade.

            José Urbano  
      Novidade?! Ou haja ou não,
      Bem sei, não és tu que ardes,
      E eu é que fico a perder...

            Francisco 
     Boas tardes,
     Meu patrão.

            Trabalhadores    

     Boas tardes,
     Meu patrão.

            Maria Clementina      
     Santas tardes.

            José Urbano      
    Ceiem com satisfação.

            Trabalhadores      
     As companheiras
    Mai-los pequenos
    ‘speram os seus...

            Maria Clementina   
      Após canseiras
      Têm pelo menos
      A paz de Deus!
      Arde a candeia...

            Trabalhadores  
     Mas ninguém cega
     Com a luz dela!...

            José Urbano       
      Vá! vão à ceia.

            Trabalhadores 
     Vamos à ceia
     Que já fumega
     Lá na panela!

            Todos           
     Vá vão à ceia
    Que já fumega
    Lá na panela.

Quase se pode adivinhar o resto. A Rainha, melhor dizendo, D. Joana, acompanhada pelo Alferes Rialva, vai novamente à quinta, onde, além de Maria Clementina e Roberta, está o tio José Urbano e o Major Samora, com quem fizera amizade recentemente. Maria Clementina é, então, pedida em casamento.

            Rialva                  
  Após a noite há o dia,
  Sobre o tempo, tempo avança.
  Maria, quem me diria,
  Da tempestade à bonança
  Que tão pouco passaria.

            Maria 
   Mas agora, meu amor,
   Seja o que fôr
   Que o nosso destino teça...

            Rialva    
   Aconteça o que aconteça,
   P’ra nunca mais te deixar.

            Os dois    
       Aconteça o que aconteça,
        P’ra nunca mais te deixar.

            Maria   
       Este delírio
       Que é de prazer
       E de tortura,
       Não sei dizer
       Se é um martírio,
       Se uma ventura!

            Rialva  
     O teu amor
     Como revive
     No teu perdão!

            Maria   
      Podes supor
     No que inda vive                    (bis)
      Ressurreição?!...
      Se sempre foi
      Como é agora:
     Riso que doi,                          (bis)
     Prazer que chora...

            Rialva  
     Mas agora, meu amor,
     Seja o que fôr
     Que o nosso destino teça...

            Maria  
     Aconteça o que aconteça,
     P’ra nunca mais te deixar!

            Ambos 
   Aconteça o que aconteça,
   P’ra nunca mais te deixar!...

         Com surpresa de todos, José Urbano recusa a mão de sua sobrinha. Estupefacta, D. Joana pergunta-lhe o porquê. “Para conhecer a razão da minha negativa, diz ele, era necessário contar-lhe a minha história e a de minha irmã, que já não vive há muito, e eu não quero cansar a vossa paciência, pois a história é longa”. Nada. Querem mesmo ouvir a história e saber os motivos da recusa ao pedido. E José Urbano acede.

         José Urbano – “Seja como querem, embora vá avivar feridas que desejo cicatrizadas. Minha mãe, ao morrer, tinha eu vinte anos, deixou-me uma irmãzinha de oito anos de idade. Eu, que até ali tinha levado uma vida de rapaz, abandonei os meus companheiros de prazer e dediquei-me de coração ao trabalho. Com o hábito do trabalho criei ambições. O Brasil seduzia-me com as suas promessas de riqueza; e regulada com um comerciante meu amigo uma mesada a minha irmã, deixei-a em companhia de Roberta, que foi ama de nós dois.
         Trabalhei muito no Brasil, mas no fim de oito anos podia considerar-me rico. Por meados de 1833, quando andava tratando da liquidação dos meus negócios, recebia de Portugal uma carta tarjada de preto. Abri-a a tremer. Participava-me que minha irmã morrera no dia 23 de Julho daquele ano. Fiquei gravemente doente. Fui viajar. Dez anos depois regressei a Portugal. Que profunda comoção interior senti ao visitar a casa onde nascera e vivera com minha irmã, e agora ia encontrar vazia!
         Pensava eu nisto quando, de repente – que ilusão aquela, meu Deus! – eu vi aparecer minha irmã à mesma janela onde 18 anos antes eu a vira a dizer-me adeus. Corri como um louco e bati à porta gritando: -“Abre, Roberta. Abre... Minha irmã não morreu! Eu logo vi que não podia ser!”. Eu estava alucinado. Não posso dizer o que se passou. Lembro-me que pouco depois eu abraçava e beijava uma bonita criança de dez anos, julgando beijar minha irmã. Mas a ilusão passou. Gritei: “Quem é esta menina, Roberta?”. – “É sua sobrinha, filha de sua irmã”. Aquelas palavras atravessaram-me o coração. Ia a passar das carícias talvez a alguma crueldade, quando aquele anjo exclamou: “Ai! Pois é este o meu tio!”. E saltou-me ao pescoço, beijando-me com meiguice. Desatei a chorar e não pude deixar de a apertar ao coração.

         Minha irmã fôra enganada por um infame, causa do meu infortúnio e da sua morte. Já que eu a não soube defender, cumpria-me chorá-la e proteger-lhe a filha, que logo amei e cada vez mais. A sorte de minha irmã era muito notória para que eu pudesse viver feliz na minha terra. Vim por isso para Braga, deixando Barcelos com vivas saudades. Aqui tem V.Exa. a razão da minha recusa. Maria Clementina é filha ilegítima e eu não conheço seu pai. Não pude obter sinais dele. Roberta sempre manteve uma reserva que me pareceu ser recomendação de minha irmã. Sei apenas que era militar, um dos muitos que por aquela época cobriam o reino. Algum aventureiro que nunca mais se lembrou da vileza que cometera, nem talvez ao cair no campo varado por uma bala inimiga!”

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