sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete /90

         No salão superior do edifício, donde se divisa um rasgado panorama, a Direcção ofereceu aos convidados um primoroso beberete, em que mais uma vez estiveram presentes a gentileza e dedicação das senhoras de Tavarede,
         Na altura dos brindes, o pároco da freguesia, Revº. Paulo Ribeiro, usou da palavra para saudar a obra benemérita da S.I.T..
         José Ribeiro aproveitou o ensejo para referir um episódio ocorrido em tempos, com o conhecido Quim Martins, que alguém estranhara ver a colaborar com o Bispo D. Manuel de Bastos Pina, nas obras de Sé de Coimbra.
         Também ele, orador - que não era católico - e o pároco de Tavarede, eram sacerdotes de ritos diferentes, mas entendiam-se muito bem.
         E a concluir: “toda a obra cristã que o sr. Padre Paulo Ribeiro realizasse na sua igreja, era digna do seu inteiro louvor”.
         Esta intervenção foi muito ovacionada.
         Proferiram ainda palavras de admiração pela obra de José Ribeiro na Sociedade de Instrução Tavaredense, os srs. dr. Pinhal Palhavã, João Assunção Pinto e Anselmo Cardoso Júnior.

         Digno de ficar aqui registado foi o facto de, no domingo da inauguração das obras de remodelação da SIT, ter sido entregue, em casa dos pobres mais necessitados da localidade, bodo constituído por géneros alimentícios. Levada à cena pela primeira vez, aquando da inauguração da nova sala de espectáculos, em Dezembro de 1961, foi
agora publicada a peça Terra do Limonete. José da Silva Ribeiro é já, no âmbito do teatro amador, um nome de projecção nacional. É bem conhecido de todos quantos em Portugal se interessam pela cultura popular, o que tem sido o seu apostulado cívico à frente do grupo dramático da Sociedade de Instrução Tavaredense. Pois José Ribeiro acaba de publicar, mais de três anos volvidos sobre a sua representação, a peça “Terra do Limonete”, 2 actos e 24 quadros  de História e Fantasia, que é como que a continuação do Chá de Limonete, que escreveu e fez representar em 1950.
         Numa “Breve conversa fiada… em jeito de Prólogo”, com que abre o volume, formula o autor pertinentes  considerações sobre problemas do teatro amador português, sobretudo no que diz respeito à escolha de reportório. A peça ora publicada, não o insinua o autor mas afirmamo-lo nós, não representa uma das soluções possíveis para o impasse verificado.
         Com efeito, “Terra do Limonete” ensina ao povo de Tavarede a história da sua terra, desde as origens até aos nossos dias: verbi gratia “Mouras encantadas em Santa Olaia” (meados do séc. XI); “Um piloto do Infante na foz do Mondego” (2º quartel do séc. XV); “Sal de Tavarede” (séc. XV) e “O Foral de Tavarede” (séc. XVI); “A Nau dos Corsários na Baía de Buarcos” (ano de 1602); “Ciganos” e “Um Serão no Paço de Tavarede” (3º quartel do séc. XVIII). E, se o primeiro acto culmina com uma evocação literária, que vai do “Auto da Visitação” de Gil Vicente à “Menina dos Rouxinóis” de Garrett, intensificam-se no segundo os aspectos de crítica social, em jeito de revista; assim, às “Glórias Nacionais” do 5º quadro respondem “O Carreiro e o Capador” (18º), “No nosso tempo…” (19º) e “A Viúva do Fogueteiro” (22º).
         Escrito ora em prosa, ora em verso, se o autor trata a redondilha quer maior, na tradição do romanceiro, quer menor emulando Mestre Gil (pág. 107, por ex.), com incontestável felicidade, já os seus decassílabos (“O Velho Palácio”) parecem menos logrados. Mas os dois principais reparos que a obra nos merece situam-se um logo no prólogo, em que se fala do insucesso de uma peça de Synege no Teatro Experimental do Porto. E José Ribeiro comenta: “Imagine-se a peça de Synge transplantada para Tavarede…”. Permitimo-nos discordar, pois estamos firmemente convencidos de que o povo de Tavarede ou de Buarcos seria muito mais capaz de entender o teatro de raiz popular do grande dramaturgo irlandês do que a tal “plateia seleccionada”, de que o autor destas linhas também faz parte.
         O outro reparo diz respeito ao começo do 10º quadro, em que, após a versão portuguesa do “Monólogo do Vaqueiro”, se afirma: “Assim nasceu o Teatro em Portugal. Mas pouco viveu, que o levou consigo a usurpação de Castela”. Ora, José Ribeiro sabe que isso é falso! E a inexactidão parece-nos tanto mais grave quanto é certo que a sua peça tem propósitos didácticos de divulgação cultural. Não foram os Filipes que liquidaram o teatro em Portugal. Foi a Santa Inquisição, instituída justamente por aquele Príncipe, para a celebração de cujo nascimento o trovador manuelino se disfarçara de vaqueiro. Ainda muito recentemente (“Távola Redonda” nº 23), João Gaspar Simões frisava  essa ironia do destino: na mesma câmara régia, nasciam, praticamente ao mesmo tempo, o Teatro Português e aquele que o havia de estrangular quase à nascença. Mas é claro que tal reparo não invalida o viço, a frescura e o lirismo de muitos quadros, a saborosa evocação de outros, o vigor satírico de alguns, o sábio doseamento de tantos elementos dispares, que convertem o prazer da leitura em mágoa de não ter visto a peça representada, com o que supomos fazer o maior elogio ao incontestável talento de José da Silva Ribeiro.

         Colaborando nas comemorações do V Centenário do Nascimento de Gil Vicente, a Sociedade de Instrução levou a efeito um programa especial que, em Outubro de 1965, apresentou, também, na Figueira. Em espectáculo promovido pela Biblioteca Municipal Pedro Fernandes Tomás, desta cidade, que sob a proficiente direcção desse alto valor local que é o prof. António Vitor Guerra, não só cada vez mais se prestigia, engrandece e valoriza, como não desperdiça pretexto para exercer relevante e profícua acção cultural no nosso meio, veio até ao Teatro do Peninsular dar-nos uma noite vicentina, esse adnirável grupo dramático da Sociedade de Instrução Tavaredense, em que pontifica a arte, o saber, o talento, a dedicação, o amor ao teatro e o próprio espírito de sacrifício de José Ribeiro.
         E sem exagero se pode afirmar que com este espectáculo a Figueira marcou brilhante lugar de destaque nas comemorações do “V Centenário do Nascimento de Gil Vicente”, encaradas estas à escala nacional. Opinião com que, sem dúvida, não haverá ninguém discordante entre a numerosa assistência, mesmo tendo em conta que entre ela se encontravam destacadas individualidades do corpo docente da Universidade de Coimbra e até um mestre e um apaixonado do teatro vicentino como o professor doutor Paulo Quintela.
         Usou em primeiro lugar da palavra o prof. António Vitor Guerra, que encantou positivamente todos os presentes com o seu verbo fácil, elegante, em que a beleza da forma se aliou a justeza do conceito. Palavras precisas e convincentes sobre a actuação da Sociedade de Instrução Tavaredense e dos seus amadores, tanto sob o aspecto artístico como beneficente. Objectiva apreciação dos méritos de José Ribeiro nas múltiplas facetas sob que tem dado ao teatro cinquenta anos de persistente actividade, com uma isenção absoluta e uma proficiência notável. Preito de homenagem ao Homem e aos seus dotes de inteligência, de talento e de carácter e também exaltação da sua integridade moral e do exemplo de civismo que representa toda a sua vida. Louvor da obra de Gil Vicente, esse grande português que deslumbrou a Europa do seu tempo e para ler o qual Erasmo aprendeu a nossa língua. Em resumo, uma oração que só por si, na opinião de alguns dos presentes, já justificava a deslocação até ao Peninsular.
         Foi depois a vez de José Ribeiro. Um homem do povo de talento falando com compreensão, carinho, paixão e saber, de outro homem do povo, esse tocado pela centelha do génio. Um desfiar de ensinamentos que se procurou tornar acessíveis a toda a gente, independentemente do seu grau de cultura e capacidade intelectual e que para toda a gente tiveram o mesmo interesse. Uma lição sobre Gil Vicente e o seu teatro e, simultaneamente, uma lição de que de todos os assuntos se pode falar com profundidade e elevação e ao mesmo tempo com simplicidade e clareza. Assim se possuam invulgares qualidades e dotes que permitam fazê-lo. O que está por isso ao alcance de poucos.
         E com esta excelente preparação se passou a ver representar Gil Vicente, através de primorosa interpretação dos amadores de Tavarede, em “Auto da Barca do Inferno”, “Fragmentos de 4 obras vicentinas” (I – Auto Pastoril Português; II – Romagem dos Agravados; III – Breve Sumário da História de Deus; e IV – Pranto de Maria Parda) e Auto da Feira. 


O pranto de Maria Parda
  
         O teatro de Gil Vicente dos amadores de Tavarede é um teatro popular, acessível aos nobres e vilões do tempo em que foi criado e às heterogéneas plateias dos nossos dias. Dele foram, portanto, banidos todos os preciosismos, todas as manifestações de interpretação com pruridos de exótica e qualquer espécie de snobismo falsamente intelectualizado. Respeita-se assim, com consciência e honestidade, a raíz de tal criação artística e presta-se também ao autor a merecida homenagem de considerar a sua obra com mérito bastante para se impor por si própria e em circunstâncias o mais semelhantes possíveis àquelas em que Gil Vicente a fez representar. O que nos parece só merecer elogio e aplauso.
         Mas dentro deste critério quanto escrúpulo, cuidado, zelo, carinho, persistência e saber foi mister pôr em jogo para conseguir aquele milagre de assim fazer representar Gil Vicente pelos amadores de Tavarede.

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