Hino
da Madrugada
Madrugada!
Apagam-se
as estrela no azul do céu
e
a alvorada
acende
os primeiros clarões, rasgando o véu,
suavemente,
que
cobre a terra adormecida.
Folhagens
sonolentas do arvoredo
mansamente
despertam
ao brando voejar do passaredo.
Como
um clarim vibrante, o melro deu sinal
pelas
campinas
a
assobiar matinas,
e
a alegre e descuidosa cotovia
responde-lhe
a sorrir: - “Bom dia!”
Subindo,
luzindo
no
doirado nascente, o sol aquece
a
terra friorenta, que estremece
de
incontido desejo
ao
receber na luz que vem dos céus
a
carícia do beijo
fecundante
- que é dádiva de Deus.
Já
toda a aldeia acordou!
Raparigas
alegres como cantigas,
frescas
qual água das fontes;
velhos,
que a dura vida já curvou
e
rapazes ainda erguendo as frontes,
indif’rentes
ao
peso da sua enxada,
-
sorridentes
caminham,
alma pura e lavada,
ao
seu destino, à terra dura da encosta
onde
vive a cepa do perfumado vinho
que
conforta,
à
leira fresca onde viceja a horta,
ao
frondoso lugar de verde pinho,
à
seara aloirada onde o trigo amadura
e
promete fartura.
Um
novo dia alvorece
na
paz e na saúde do trabalho da terra.
Há
luz, há alegria, sente-se a vida pura
em
todas as belezas que a Natureza encerra.
Da
árvore frondosa e da urze do monte,
do
mísero insecto que p’lo chão rasteja
ou
com asas de luz no espaço voeja,
do
espelho dos lagos, do murmúrio da fonte,
do
cardo ressequido e da flor mais louçã,
do
doce gorgear das aves nas alturas
e
das vozes da alma das frágeis criaturas,
ergue-se,
luminoso, o hino da manhã!
Bendito
seja o Sol,
fonte
da Vida, que de luz inunda
a
Terra, e a fecunda!
Bendita
a Terra-Mãe
que
ao homem dá o pão
e
dá à abelha o mel
e
à ave o pequenino grão!
Benditas
sejam as águas
dos
ribeiros e das suaves fontes
que,
chorando suas mágoas,
descedentam
as bocas e dão a seiva à planta!
Bendita
a ave que canta
e
o paciente boi que a terra lavra!
Bendita
seja a palavra
-
Sementeira!
Bendita
a tua enxada, ó cavador,
que
sem canseira
amanha
a seara e cultiva a flor!
(Um grupo de
cavadores da aldeia, enxada ao ombro, vai a caminho dos seus trabalhos)
Coro de Cavadores
Sem
ter
canseira,
a
gente da enxada
lá
vai
fazer
a
sementeira.
Ao
sol
ardente,
constante
em seu labor,
é
ver
contente
o
cavador!
Cavar!
cavar
que
a terra nos dá pão!
Do
vale
à
serra,
p’la
encosta subindo,
luzindo,
a
enxada
revolve
a terra...
Cavar!...
Cavar
que
a terra nos dá pão!
De
inverno
ou
v’rão
trabalha
o dia inteiro,
p’ra
ter
seu
pão
o
cavador...
Vamos continuar com as nossas recordações. Mestre José
Ribeiro, também nos mostrava, em todos os seus trabalhos, alguns dos tipos e
figuras mais interessantes e características. O tempo não é muito, mas
recordemos, aqui, a conversa entre duas das figuras típicas da nossa aldeia, “o
carreiro e o capador”.
Joaquim - D’honra! Digo-lhe isto cá de dentro! Eu quero tanto ao animal
como... tenho tanta aquela aos meus bois, como se fossem meus irmãos. Ou mais
ainda! Que lho digo eu.
Zé - E tem razão, pois. Com a minha égua é a mesma coisa. Eu sou muito
amigo da minha mulher, lá isso sou. Mas ainda gosto mais da égua. Mansa e
segura de pernas, é minha companheira há um ror de anos e nunca me pregou uma
partida. A minha mulher também não, graças a Deus... Lá isso não senhor... Mas...
quando tenho capações por fora e chego a casa tarde, com um copito a mais - oh!
mulher de trinta línguas! - desata-me lá num sermão que nem um padre na igreja:
que não tenho juízo, que em vez de pôr arganel aos porcos devia pôr arganel a
mim próprio para beber menos... - eu sei lá! E enquanto a mulher fala, fala,
que nunca mais acaba, - a égua ali está muito calada, muito calada... Então eu,
quando a mulher pára de falar para tomar fôlego, aproveito a pausa para lhe
dizer: - Ó mulher, aprende com a égua a estar calada! - Mas isso sim!...
Joaquim - Tem razão. Os animais é como se fossem pessoas de família. Digo-lhe
cá de dentro: se aquele animal me morresse, eu tinha um desgosto tão grande que
até era capaz de pôr luto. O meu rico castanho! E olhe que não era por causa do
dinheiro - d’honra que não era: está no Compromisso, eles pagavam. Mas os meus
bois, senhor Zé da Gaita... (emendando) Desculpe, senhor José, mas é como todos o conhecem, e eu agora
descuidei-me.
Zé - Ora essa, senhor Joaquim, não tem mal. É alcunha que me ficou de
pequeno... Desde que um dia apanhei uma sova do meu pai por lhe ter roubado a
gaita de capador. O meu pai era capador e alveitar, como eu. Herdei-lhe a gaita
e o ofício.
Joaquim - Pois sim, senhor. Isto de alcunhas... P’ra toda a gente eu sou o
Joaquim do Curral, porque de pequeno me fizeram a cama no curral dos bois. Ah!
Mas os meus bois! Deus me perdoe se é pecado, mas eu chego a pensar que eles
são almas cristãs como a gente. Falo com eles, e eles entendem-me. Chego-lhes o
pasto, e eles agradecem-me. Se estou zangado e ralho - olham p’ra mim, e
aqueles olhos muito grandes e muito tristes parece que dizem: Tem paciência,
Joaquim do Curral, que nós também a temos. Ainda ontem, ia o cabano a
encostar-se ao toice, a ficar-se p’ra trás para arreliar o companheiro, e eu,
zás! prego-lhe uma varada: “Ah! Cabano!” Ele amuou, sacudiu a canga em cima do
cachaço e pareceu-me que lhe ouvi dizer: “Não sejas bruto, Joaquim do Curral”.
Fiquei-me a pensar, e compreendi que o boi é que tinha razão: o bruto era eu.
Por isso me dói a alma de ver o meu castanho doente. Se vocemecê não mo
salva...
Zé - Já lhe disse que lhe curo o animal. E eu sei o que digo e o que
faço. Os médicos não tratam melhor as pessoas do que eu trato as bestas. E olhe
que dos médicos muita gente se queixa; e de mim, nunca nenhum dos meus doentes
se queixou.
Joaquim - Está bem, sim senhor. Mas olhe cá, senhor José: aquela tristeza que
deu ao animal e que o não deixa comer, não será desgosto?
Zé - Desgosto?! Porquê?
Joaquim - Por causa do carro. O animal desde que se viu com rodas de borracha
caíu naquela melancolia...
Zé - Rodas de borracha...
Joaquim - Sim, senhor. Puz borracha nas rodas do carro.
Zé - P’ra quê?
Joaquim - P’ra quê?! Então não sabe que os carros de bois são obrigados a
andar com rodas de borracha?
Zé - Viva o progresso!
Joaquim - Qual progresso, nem qual carapuça! Uma pouca vergonha! Como se um
carro de bois fosse um automóvel! Há tempo mandaram pôr luz branca e encarnada;
agora foram rodas de borracha; e se calhar amanhã mandam pôr faróis na canga
para fazer código, e pisca-piscas nos chavelhos dos bois para mudar de
direcção...
Zé - Para o que um boi estava guardado, ó senhor Joaquin!
Joaquim - Aros de borracha, para não se ouvirem as rodas! Qualquer dia, em vez
de ferraduras, sapatos de borracha, para não se ouvirem os bois!... Não
quererão mais nada de borracha?
Cega-Rega -
Em
situação encravada
O
pobre carreiro se acha...
O
carro não pode andar
-
D’honra, que não é laracha... -
Pelas
ruas a rodar
Sem
ter rodas de borracha!
Diante
duma mulher
Quanta
vez o homem se agacha...
Para
alcançar o que quer
Vai
com rodas de borracha.
Pois
o meu carro de bois
-
Esta, palavra! é de escacha! -
Não
tem ainda faróis
Mas
tem rodas de borracha!
Em
situação encravada
etc.
etc. etc.
Os
rapazes da cidade
Usam
casacos de racha;
Elas
têm mocidade
Com
postiços de borracha.
E
assim por este andar,
Tanto
apertam a tarraxa
Que
os meus bois irão calçar
Ferraduras
de borracha.
Em
situação encravada
etc.
etc. etc.
Dizem
que a civ’lização
Assim
ordena e despacha:
-
P’ra não haver confusão
Tudo
seja de borracha...
P’ra
não haver excepção
-
E ai daquele que se relaxa! -
Carros
de bois usarão
Suas
rodas com borracha.
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