sexta-feira, 28 de março de 2014

As operetas em Tavarede - 10

              
Grupo cénico da SIT em 1928

  (O serão começa ouvindo-se, em fundo musical, a “Valsa do Sonho”) O tema musical que estamos a ouvir chama-se “O Sonho”. Manuel da Fonte acabara de comer e dorme a sua sesta à sombra de uma árvore frondosa. Como desde há uns tempos atrás, está só. Aborreciam-no as cantigas e as risadas das cachopas, sempre na galhofa com os rapazes... Por isso, preferia estar sòzinho. Queria dormir descansado e, como sempre, queria sonhar...

         Era assim que se iniciava a fantasia “O Sonho do Cavador”, representada no nosso palco, pela primeira vez, em 28 de Abril de 1928. José da Silva Ribeiro havia escrito o texto e João Gaspar de Lemos Amorim os versos. A música era original ou coordenada pelo maestro amador figueirense António Maria de Oliveira Simões.

         Antes de prosseguirmos com a nossa história, não queremos deixar de aqui fazer alguns comentários a esta fantasia. E começaremos por dizer que, até aos dias de hoje, “O Sonho do Cavador” foi a peça mais representada pelos nossos amadores. Tomar, Buarcos, Figueira, Coimbra, Pombal, além de Tavarede, foram os palcos onde se representou esta fantasia. Encontram-se quatro versões diferentes. A primeira, que foi a que sofreu mais alterações, estreou-se, como dissemos, em Abril de 1928. No dia 29 de Junho de 1930, é apresentada uma segunda versão. Em Dezembro que 1936 é levada à cena a terceira versão, que se repete em 1942, e em Janeiro de 1987, em espectáculo evocativo, esta fantasia é reposta em cena, numa quarta versão, com diversas alterações. A história é sempre a mesma. Muitos dos quadros é que, ou cortados pela censura ou porque haviam perdido actualidade, iam sendo substituidos, bem como a música.

         As críticas que se encontram inseridas na imprensa da altura, são bastante elogiosas. Todas elas referem belos cenários, magnífico guarda-roupa, espectacular montagem cénica com interpretações correctíssimas e, sempre em maior destaque, uma música encantadora, muito bem cantada, que o público se não cansava de ouvir e aplaudir. Hoje, e porque será a que maior interesse pode despertar, vamos contar a primeira versão.

         Como já dissemos, Manuel da Fonte sonhava, enquanto dormia a sesta. Era um sonho que o fascinava. Pobre desde pequeno, agarrado à enxada na labuta do pão de cada dia, sentiu, então, a ambição da riqueza. “Passa um homem a vida inteira a trabalhar e ao fim, morre de fome; outros, então, sem nunca terem feito nada, apodrecem de ricos. Parece que eles já vêm ricos ricos da barriga da mãe e nós, assim que nascemos, somos logos condenados à pena perpétua do trabalho...”.

         Era assim que ele, conversando com Rosa, a sua prometida, lhe dizia que queria ir em busca da riqueza. Para ela, não passava de um desvairo da sua sua cabeça. Pois não chegou ele a passar uma noite inteira, a cavar, atrás da igreja, à procura do tesouro que ele havia sonhado ali encontrar? Mas, não. Ele estava decidido. Para o pobre cavador a Fada do Sonho não o enganava. E era sempre a mesma coisa, mal fechava os olhos...

         Fada – “Sou eu quem ocupa o seu pensamento. Sonha com a riqueza, com o oiro, e é o oiro falso do meu vestido que o deslumbra. Neste momento, avista a estrada da fortuna, toda ensombrada de árvores carregadas de oiro. A aldeia onde nasceu afigura-se-lhe uma cadeia onde vivem os condenados à pobreza. Esquece-a, abandona-a, sem uma saudade. E tendo quebrado a enxada, caminha alegre e feliz na estrada da fortuna, recolhendo oiro aos punhados. É este o sonho do cavador”.      (enquanto a Fada conta o sonho, ouve-se, suave, a mesma valsa)

         Acorda decidido. Irá à procura da riqueza. Abandona a enxada e prepara-se para ir embora. É então que lhe surge a Agricultura.

   Sou desde a mais remota antiguidade
   Sustento e firme apoio dos Estados.
   Sem mim os grandes homens da cidade
   Morriam dentro em breve esfomeados.

    O camponês curvado à leiva
    Revolve a terra c’o a sua enxada.
     À força de suar, tira-lhe a seiva
      Que se torna abastança abençoada.

      Alegre e contente,
      Mal rompe a manhã,
      Esta boa gente
      Lá vai sorridente
      Para o seu duro afã. 

Ah! sim, a Agricultura. Bem lhe importava a ele. Não, não mudará as suas ideias. Diz-lhe ela que as terras ficarão a monte e que virá a fome bater à porta?


         Manuel da Fonte – “E que me importa a fome dos outros se a minha pobreza também lhes não importa? Dizes que o meu braço é forte e poderoso; mas tu cansáva-lo e em breve acabarias por arruiná-lo. Tenho-te entregado tudo: o meu corpo, que tu exploravas como o senhor explora o escravo, e a minha alma, que só de pensar em ti, nada mais via do que estas leiras de terra que tenho amanhado, como se para além delas não houvesse mundo. Consumias-me de canseiras: obrigavas-me a cavar a terra, sem te importares que o frio me trespassasse os ossos, ou que a brasa do sol me queimasse o corpo, como se em vez de lume do céu fosse medonha fogueira do inferno. E a terra, má, ingrata, traiçoeira, deixava-se rasgar aos golpes da minha enxada, sôfrega, a rir, a rir da minha cegueira de amante, que todo se lhe entregava, do suor do meu rosto que me corria em bica. E que me deu ela em paga? E como recompensáste tu o meu esforço?”

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