Em Maio de 1953, tiveram início as
festas comemorativas do 50º aniversário da Sociedade de Instrução Tavaredense.
Foi realizado um baile, durante o qual foram anunciados os vencedores de mais
um concurso de quadras populares, desta vez alusivo ao perfume 1002, da Nally.
A comissão nomeada para programar as festas das Bodas de Ouro, teve actividade
enorme, nunca se poupando aos trabalhos que lhe eram exigidos. Para conseguir
obter alguns fundos, que tão necessários eram, realizou, no seu campo de jogos,
mais umas ‘Grandes Festas de Arraial’, nas quais tiveram a colaboração de
alguns dos mais afamados conjuntos
musicais da região.
A
festiva data, que tinha um significado muito especial para todos os
tavaredenses, mereceu uma nova entrevista com o director cénico. É longa, mas é
muito expressiva da acção da colectividade. Na
histórica e aprazível povoação de Tavarede, há meio século que se vem erigindo,
pedra sobre pedra, com inteligência e tenacidade, vultuosa obra colectiva e
teatral pouco vulgar, cremos que única, no meio provinciano.
Se algum dia ao historiador do teatro
português interessar fazer o balanço do contributo prestado à arte dramática,
pelo ignorado amadorismo, onde esse mesmo teatro foi recrutar, tantas vezes, as
suas grandes figuras, que para serem grandes não careceram das luzes do
Conservatório, porque as tinham já consigo desde nascença, ver-se-á no dever de
consagrar capítulo especial à vida e obra da Sociedade de Instrução
Tavaredense, de preclaras tradições e que tem levado a numerosos e apartados
pontos do país a galhardia da sua arte de representar, e, com ela, um rosário
apreciável de benemerências a favor de instituições de caridade e utilidade
pública.
Sabendo que a prestante colectividade
vai comemorar no mês decorrente as Bodas de Oiro da sua fundação, julgámos de
interesse para os nossos leitores ouvir alguém que nos elucidasse acerca das
actividades da mesma e outros pormenores relacionados com a tradição teatral da
pitoresca Aldeia do Limonete. E não havia que hesitar: só uma pessoa reunia
plenamente as condições necessárias para satisfazer a nossa curiosidade e
interesse - o seu dinâmico e prestigioso director cénico José da Silva Ribeiro.
Jornalista distinto, culto noutros
aspectos do saber humano - é vastíssima a sua cultura neste ramo por que se
apaixonou desde novo.
Como crítico teatral, quando exercia a
crítica, a sua opinião era considerada e temida pelos “ases” da cena
portuguesa, ao apresentarem-se, com as suas companhias, perante a exigentíssima
plateia figueirense.
Conversador sugestivo e atraente,
torna-se, pela lhaneza do seu trato, acessível e pronto a quem quer que
necessite dos seus prestimosos serviços.
E fomos ouvi-lo. Encontrámo-lo
absorvido pelos cuidados do seu novo trabalho - 50 Anos ao Serviço do Povo - no
qual evoca e passa em revista os factos da Sociedade de que tem sido o
infatigável, o grande, o maior de todos os obreiros. Mas nem isso o impediu de
gentilmente nos acolher. Depois de lhe transmitirmos os nossos propósitos e
removermos o obstáculo sério das suas ocupações de momento, disparámos-lhe,
para principiar, duas perguntas:
- É muito remota a tradição teatral em
Tavarede? Lemos algures que já em 1877 existia em Tavarede um teatro de
amadores que por causa das desordens que sempre havia nas noites de espectáculo
foi mandado encerrar pelo Governador Civil do Distrito. Tem fundamento
histórico esta notícia?
- Efectivamente, - começa o nosso
interlocutor - a tradição teatral é aqui bem vincada. Já Ernesto Fernandes
Tomaz, na descrição que fez de Tavarede numa série de artigos publicados na
Gazeta da Figueira em 1896, dizia que as sociedades dramáticas vegetavam em
Tavarede como tortulhos. O episódio do encerramento dum teatrito que aqui
havia, vem referido, como verdadeiro, por Pinho Leal no seu dicionário
geográfico Portugal Antigo e Moderno. O teatro foi mandado fechar pelo
Governador Civil em 1877, por motivo das desordens que se verificavam na noites
de espectáculo. No livro comemorativo das “bodas-de-ouro” da Sociedade de
Instrução Tavaredense - 50 Anos ao Serviço do Povo - a aparecer dentro de
poucos dias, indicam-se os diversos locais onde se apurou que funcionaram
teatros no século passado.
- É verdade que as gentes de Tavarede
manifestaram sempre natural pendor para o teatro?
- Vem de longe o gosto dos tavaredenses
pelo teatro. Esta gente tem-se mostrado muito inclinada às artes do teatro e da
música. Alcançaram fama os teatros e as tunas de Tavarede. Não obstante a
vizinhança de paredes-meias com a cidade, a um tempo benéfica e prejudicial, o
sentimento associativo perdura na população desta velha e pobre aldeia.
- Quais os nomes que no passado
revelaram, de facto, decidida intuição para a arte dramática?
-
Amador de grandes méritos, característico solicitado por todas as companhias do
seu tempo, foi nos meados do século passado José Luís Inácio, casado com Luísa
Genoveva, que foi também amadora. Na segunda metade do século, brilharam à luz
da ribalta tavaredense - de cebo e petróleo - muitos actores e actrizes, dentre
os quais se destacavam António de Oliveira, Ricardo Nunes de Oliveira (o tio
Ricardo da Margarida), José Vigário e António da Silva Coelho (que todos
conheceram por António da Barra), estes dois, respectivamente, pais dos
amadores do mesmo nome ainda hoje no activo; Manuel de Oliveira Bertão e
António Cruz (pai dos ilustres e saudosos tavaredenses drs. Manuel e José Gomes
Cruz), insubstituível nos papeis de Jerónimo e Moço da Passarola do Presépio.
No elenco feminino faziam figura Maria da Luísa Marcelina e Eduarda Matoso.
Mais recentemente, já no começo do século actual, José Medina, excelente amador
tanto no género dramático como no cómico, e ainda mais perto de nós, os dois
irmãos António e Jaime Broeiro, para só falarmos dos que já não existem. Os
vivos, todos os conhecemos, e alguns deles, tendo começado com a Sociedade de
Instrução Tavaredense, ainda hoje dão as suas provas sobre as tábuas do palco.
-
Arriscamos mais duas perguntas: - Porque não se abalançou até hoje a S.I.T. a
construir sede própria se dispõe de condições primordiais, para isso, pela
actividade e valor do seu grupo cénico? Não haveria vantagem em construir uma
sede maior para reunir numa só récita o público que, por exiguidade do seu
teatrinho – como V. lhe chama – tem que ser distribuido por vários espectáculos?
-
A Sociedade de Instrução Tavaredense está instalada no edifício do Largo do
Terreiro que foi, como sabe, a velha casa chamada de Ourão, transformada por
João José da Costa - esquecido mas inesquecível benemérito - num, para o tempo
e para a terra, óptimo teatro. A grande aspiração da sociedade era adquirir o
prédio, para viver em casa sua: realizou-a, comprando o prédio. Depois, dado o
desenvolvimento da actividade associativa e as responsabilidades e anseios do
grupo cénico, outra aspiração surgiu: ampliar e transformar a sede, melhorando
as instalações de uso permanente dos sócios e dotando-a com um teatro maior, um
palco bem apetrechado que permitisse alargar e aperfeiçoar a obra de cultura
que a Sociedade de Instrução Tavaredense vem desenvolvendo através do teatro.
Este projecto é, de momento, irrealizável. Seriam precisas 3 a 4 centenas de contos. Onde
ir buscá-las? Não esqueçamos que Tavarede é uma terra muito pequena e de
população pobríssima. Não há aqui beneméritos ricos. E beneméritos... sem
dinheiro não podem fazer obras que só com dinheiro se fazem...
-
Pomos uma objecção:
- Mas o grupo cénico tem uma actividade
invulgar, e conquistou merecidamente um público entusiasta que acorre a
aplaudi-lo...
- É certo. Note-se, porém, que as
récitas na sede são para sócios e famílias, e raramente pagam a montagem de
cada peça. E dos espectáculos em teatros públicos são poucos aqueles cujas
receitas revertem para o cofre da associação. Pode objectar-se que é
excepcionalmente elevado o número de espectáculos de beneficência. Na verdade,
uma lista, aliás incompleta, das récitas de beneficência realizadas na Figueira
e noutras localidades pelo grupo tavaredense, mostra que o seu número se eleva
a 98. Pelos elementos de que dispomos, e pelo valor actual da moeda, podemos
sem exagero avaliar em mais de 400 contos o produto líquido entregue pela
Sociedade de Instrução Tavaredense a obras de beneficência e a instituições de
utilidade pública. Mas não sejamos ingénuos ao ponto de supormos que esta importante
soma poderia também o grupo cénico alcançá-la para as obras da sua sede...
- Mas, aproveitando o verão, não seria
possível obter receitas importantes com representações nos teatros da Figueira?
- interrompemos.
- Oiça-nos com paciência. Nem tudo o que
luz é oiro. Realmente, alguns anos atrás o verão era pródigo. Dávamos dois
espectáculos em Agosto e dois em Setembro com casas cheias e resultados tão
animadores, que se chegou a alimentar a esperança de ganhar em 10 anos o
preciso para as obras. Mas... era a época das vacas gordas, que passou
depressa. De há um tempo a esta parte verifica-se que sobem as despesas e
descem as receitas. Posso citar-lhe um espectáculo de que, pagas as várias
despesas e 5 contos do aluguer do teatro, ficaram para o cofre 350$00. E como
não haveria de ser assim com as nossas representações, se é assim também com o
teatro profissional? Uma boa parte do antigo público esqueceu o teatro; o novo
- nem sequer o conhece. Solicitam-no a doença nacional do futebol (repare que
nos referimos a doença) e a exploração industrial do cinema; e os organismos
oficiais facilitam e auxiliam a fuga dos
velhos e a ignorância dos novos. Se o objectivo do Estado e das autarquias
locais fosse a extinção do teatro em Portugal, não poderiam fazer melhor do que
estão fazendo. É certo que a Sociedade de Instrução Tavaredense não sacrifica
aos deuses da bilheteira, e podia, com outra orientação, melhorar bastante os
resultados materiais da sua actividade teatral; mas, fazendo-o, traía a sua
função. Ao programa educativo e cultural que a Sociedade de Instrução
Tavaredense procura realizar através do teatro, não se ajustam transigências de
género parquemaieresco nem exibições estilo retiro da Severa ou variedades da
rádio.
Perguntamos a José Ribeiro:
- O campo em que recruta os intérpretes
para as suas peças tem qualquer particularidade que o distinga dos outros meios
associativos do concelho?
- De
maneira nenhuma. Os elementos do grupo cénico são recrutados na população
tavaredense, indistintamente. Desde os cavadores de enxada, passando pelos
vários ofícios e pela vida comercial na cidade vizinha; desde as raparigas da
lavoura que passam o dia no amanho das terras e no trato dos animais, até às
costureiras dos alfaiates e das modistas e às que labutam na vida doméstica, de
tudo se encontra na companhia de Tavarede.
- Pode citar-nos os êxitos teatrais mais
salientes alcançados pelo seu grupo cénico?
- Como
êxito de público, O Sonho do Cavador ocupa o primeiro lugar, com mais de 50
representações. Mas se bem interpretamos a sua pergunta, devemos citar Entre
Giestas, Recompensa, A Nossa Casa, Horizonte, Canção do Berço, Génio Alegre,
Auto da Barca do Inferno, Chá de Limonete e, o mais recente, Frei Luís de
Sousa.
Continuamos
a inquirir:
-
Quais as peças que até hoje representou cuja acção decorre em Tavarede?
- Com
acção passada em Tavarede - Na Terra do Limonete, de João dos Santos e Dona
Várzea, de João dos Santos e José Ribeiro, musicadas por Gentil Ribeiro; Pátria
Livre e Em Busca da Lúcia-Lima, de João Gaspar de Lemos Amorim; A Cigarra e a
Formiga, de Alberto de Lacerda e José Ribeiro; Grão-Ducado de Tavarede, O Sonho
do Cavador, Evocação, Retalhos e Fitas e Chá de Limonete, de José Ribeiro -
todas musicadas por António Simões. Além destas, outras peças se escreveram
propositadamente para a Sociedade de Instrução Tavaredense: Histórias da
Roberta, O Nascimento do Messias e as adaptações Morgadinha dos Canaviais e
Justiça de Sua Magestade.
Não
resistimos a perguntar:
- Com
a sua acção educativa a S.I..T. tem conseguido sensível melhoria na educação do
povo e morigeração dos costumes locais?
- Não
pode negar-se a influência da actividade da Sociedade de Instrução Tavaredense
na população de Tavarede. Muitos foram os que aprenderam a ler ou se aperfeiçoaram
na escola nocturna que funcionou até 1942. É também elevado o número dos que,
passando pela secção dramática, beneficiaram da acção cultural e educativa que
ali se desenvolve com uma continuidade verdadeiramente excepcional. E é
igualmente de considerar a influência exercida sobre o público que lhe
frequenta os espectáculos e as palestras.
-
Porque deixou de manter a sua escola nocturna?
-
Porque não foi possível dar cumprimento a certas exigências de carácter legal.
Também no livro 50 Anos ao Serviço do Povo se indicam as razões que impediram a
Direcção da Sociedade de Instrução Tavaredense de manter a escola, inteiramente
gratuita, que funcionava desde a sua fundação em 1904, com uma frequência de
cerca de 50 alunos, menores e adultos.
-
Verifica-se que a S.I.T. restringiu notavelmente o número de bailes realizados
anualmente na sua sede. Obedece isso a medida de carácter económico ou ao
reconhecimento da vantagem moral de sacrificar o baile ao teatro?
- Eis
uma pergunta agradável de ouvir, porque revela um interesse honroso, que
contrasta com a indiferença de muitos. Mas... é bom esclarecer. Os bailes nas
associações proporcionam algumas horas de recreio à massa associativa. O
recreio também é necessário. É certo que algumas associações fazem do baile
semanal, ou pouco menos, a razão de ser da sua existência. Se não fazem mais
nada, havemos de concluir que fazem pouco e que sendo sociedades de recreio,
não o são de educação. Por isso nos não interessam na mesma medida. Mas... será
mais prejudicial à saúde física e moral, o baile ao sábado ou ao domingo na
sociedade de recreio da aldeia, do que o baile diário, durante 3 meses
consecutivos no casino da cidade? Quanto à Sociedade de Instrução Tavaredense,
não há senão que louvar o critério dos seus directores considerando suficiente
a meia dúzia de bailes que durante o ano oferece aos associados na sua sede.
-
Estamos de pleno acordo - acrescentámos. E permita-me outra pergunta: Tem
sentido dificuldade na escolha de peças para o seu grupo?
- É sempre um grande problema.
Independentemente do valor da peça como obra de arte teatral, há que ter em
conta certas limitações e contra-indicações que resultam do meio em que nos
encontramos, dos elementos de que dispomos e dos fins que nos determinam. São
cada vez maiores as dificuldades. Algumas peças que nos serviriam estão-nos
interditas, porque o empresário que as representou em Portugal não nos permite
a sua representação. Veja-se a estreiteza deste critério, que, generalizado,
extinguiria no nosso país o teatro de amadores, uma vez que não pode esperar-se
dos autores dramáticos – coitados deles, apertados já em tantos
condicionamentos!... – que escrevam peças só para amadores...
- Só mais uma pergunta para terminar: -
Acha que são demasiado pesados os encargos que recaiem sobre os espectáculos de
amadores?
-
Partimos do princípio de que o teatro de amadores, praticado com devoção quase
heróica pelas sociedades de educação e recreio espalhadas pelas vilas e aldeias
de Portugal, constitui valioso elemento de cultura e recreio do povo, que
interessa à nação manter em actividade. É assim que o Estado o encara? É seu
dever, nesse caso, facultar-lhe e facilitar-lhe meios de vida. Presentemente as
coisas passam-se como se os espectáculos de amadores fossem apenas... matéria
colectável; cobram-se licenças, censura das peças, vistos dos programas,
imposto sobre espectáculos públicos (!) e contribuições para a Caixa Sindical
de Previdência dos Profissionais do Teatro (!!). Uma carga asfixiante! Não está
certo. Se o estado não presta outro auxílio, que ao menos não queira fazer
dinheiro da actividade desinteressada do teatro de amadores. O regime da
cobrança dos direitos de autor continua a ser o mesmo - não obstante terem
decorrido dois anos desde que foi nomeada uma comissão para estudar o assunto
-, permitindo a fixação arbitrária de taxas em muitos casos proibitivas. E, a
carregar ainda mais as tintas do quadro, aí temos agora a lei que regula a
assistência de menores a espectáculos, tão louvável nos princípios com que se
apresenta como lamentável e perniciosa na forma da sua aplicação. Podíamos
apresentar-lhe casos concretos e bem expressivos, mas... iríamos muito longe.
Não lhe parece que já lhe dissémos o bastante para se concluir que, na verdade,
é precisa uma devoção quase heróica para continuar a manter entre as povoações
rurais o fogo sagrado do teatro?
Não
podíamos deixar de concordar com o nosso entrevistado, de quem nos despedimos,
profundamente reconhecidos e sensibilizados pelo prazer que nos deu e que sabemos
ir igualmente proporcionar aos nossos estimados leitores com o conteúdo desta
entrevista.
Para fecho, só nos resta fazer votos
que a velha Sociedade de Instrução Tavaredense possa continuar - e continue
sempre - na sua activa e contínua acção de bem-fazer, pois na vida dos homens e
das instituições só tem verdadeiro mérito o que se faz bem feito e o que se faz
por bem.
Sem comentários:
Enviar um comentário