sexta-feira, 7 de março de 2014

Operetas em Tavarede - 7

         Velhos costumes da nossa aldeia. Da nossa... e das outras. E a má-língua não era só enquanto lavavam  roupa no rio e a punham a corar ou bebiam o café de Tavarede! E a visita continua. O Comissário, cheio de orgulho, não regateia os elogios.

         Comissário – “Como vê, a Exposição Internacional do Grão-Ducado de Tavarede é uma coisa notável em qualquer parte do mundo. Estão aqui representadas as mais poderosas nações, a França, a Inglaterra, a Alemanha, a China, o Japão, os diversos países da África, da América e da Oceania. A secção pecuária é vastíssima. Há animais de todas as espécies, tamanhos e feitios; mamíferos, insectos e batráquios, peixes e anfíbios, terrestres, aquáticos e aéreos, a aranha, a rã, a formiga, o elefante, o mosquito, o hipopótamo, a galinha, o bacalhau, o leão, o burro... em burros, então, é um sortido variadíssimo: Temo-los manhosos e medraços, espertos e teimosos, filósofos e tapados como um burro; variam na cor, no tamanho e na educação. Temos o burro preto, o burro branco, o burro malhado e o burro cor de burro quando foge; o burro pequenito como um burrito de mama, o burro de tamanho natural e o burro como umas casas; o burro que nem zurra, nem morde, nem dá coice; o burro que não morde, nem dá coice mas zurra; e o burro que zurra, que dá coice e que morde. Burricalmente falando, pode dizer-se que esta secção constitue para o nosso Grão-Ducado um verdadeiro sucesso burrical!”.

         Pelo que se vê, a nossa terra estava bem servida de burros. Só assim, aliás, se compreende o sucesso que eram as cavalhadas pelo S. João. Chegavam a ir “desde o rio até ao paço!”. Tiveram fama e deixaram muitas saudades!

         Depois da visita, passaram pela nossa fonte, beberam da fresca água e seguiram para o Paço, onde o conselho estava reunido.

         Quando chegaram, a Grã-Duquesa estava a receber a delegação dos três estados vizinhos: Brenha, Quiaios e Buarcos:

            Brenha     
           Comigo ninguém caçôa.
            Quiaios                                                 
            Pois comigo ninguém zomba.
           Buarcos 
           Sou um mar de levadia.
            Os três          
            São três estados d’arromba.

            Brenha  
            Sai dos meus quarenta fornos
            A broa mais afamada.
            Quiaios               
            Tenho chouriço de palmo.
            Buarcos               
            Eu tenho a raia escalada.

            Os três 
            Broa, lavadeiras,
            Pencas e pescada.
            Ranchos, ferraduras,
           Ai que trapalhada.

            Brenha                 
            E a pinga
            Que eu guardo nas minhas adegas
            Quiaios          
            Melhor o sumo cá do meco.
            Buarcos           
            Que o digam as minhas broégas.

         Satisfeito com o que viu, o brasileiro faz a entrega do donativo de dois mil contos e descreve como está maravilhado com a capital do Grão-Ducado, a cidade do Limonete, terra asseada e civilizada. As grandes avenidas, como a do Outeiro e a do Santo Aleixo; os excelentes carros eléctricos da Companhia Fadigas & Toquim, Limitada; os grandes e ricos estabelecimentos do Cascato e António Amaro; o elevador para o Alto de S. Martinho; os belos monumentos históricos como o Paço do Conde, o Arco do Caminho dos Canos e tantas outras maravilhas. E sugere que o donativo seja utilizado para a conclusão do caminho de ferro para o Cabo Mondego.

         Muito reconhecida, a Grã-Duquesa nomeia o cidadão Nespera Cajú “cidadão tavaredense honorário e benemérito”. E logo se resolve que nas fábricas do Senhor da Arieira seja fundida uma estátua, em barro, do tavaredense Manuel Pereira da Nespera, em que este figurará “montado num cavalo, a toda a brida, segurando numa das mãos as rédeas e na outra um ramo de limonete”. Significará o progresso de Tavarede a galope...

         
Estavam a tomar estas decisões quando chega o  embaixador da China. Vinha pedir uma explicação e fazer uma exigência. Acabara de receber da China a seguinte comunicação: “averiguou-se que uma peça representada em Tavarede, chamada Lúcia-Lima, produziu na Rússia extraordinária impressão. A China é nessa peça metida a ridículo e isto fez com que os bolchevistas russos fomentassem a guerra que lavra no Celeste Império para lá implantarem o bolchevismo. Os autores da escandalosa obra são um poeta que esteve na terra dos pretos – tem o nome do rei preto e um maestro muito conhecido pela sua batuta fina e leve”. Exigia, então, a entrega dos dois facínoras ou uma indemnização de 10 milhões de libras.

         Pois sim! Os tais facínoras, o poeta e o maestro, haviam fugido e sabem para onde? Para o Inferno! Foram para o Diabo! E o embaixador, com a companhia de Nespera Cajú, decidiram ir à sua procura.

            Coro – Diabitos e Bruxas   
            A nossa alegre,
            Risonha vida,
            É agradável,
            É divertida:
             Sobre os telhados
             Voar, voar;
             E numa eira
             Dançar, dançar.

             Neste baile do Sabá
             De bruxas e diabitos,
             Haja risadas macabras,
             Haja uivos, haja gritos,
             Haja guinchos de vampiros,
             De morcego e da serpente,
             Em homenagem infernal
             A Satam omnipotente.

             A nossa alegre,
             Risonha vida,
             É agradável,
             É divertida:
             Sobre os telhados
             Voar, voar;
             E numa eira
             Dançar, dançar.

            Satanaz 
            É bailar,
             Divertir
             Sem descansar.
             Que outra alma
             Há-de vir
              Há-de vir
             Aqui
             Aqui parar.

            Bruxas e Diabitos   
            Bailam as bruxas
             E Satanaz,
             Bom tocador,
             Ouvir-nos faz
             Do violão
             Estranho som:
             Dom, dom, dom, dom
             Dão, dão, dão, dão.

Entretanto, os fugitivos, julgando-se já esquecidos, agradecem a estadia no Inferno e regressam à terra do limonete. Vinham saudosos e, para matar saudades, foram dar uma volta pela velha aldeia, agora Grão-Ducado.

         No caminho encontram dois figurões: o João Borracho e o José Borrachão. Caminhavam cambaleando, como era normal neles, frequentadores ferrenhos das tabernas tavaredenses. Ouçamos um pouco da sua conversa.

 – “Cá p’ra mim, isto não tem conserto nem nas Caldas”.

 João – “Qual quê, isto há-de entrar nos eixos”.

  – “Não entra, que lhe digo eu. Isto está torto de todo e já não há nada capaz de o endireitar. Falsificam tudo, tudo”.

 João – “Nem o pão escapa. E o pão é uma coisa sagrada. O pão é o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

  – “E o vinho, amigo João? O vinho é ainda mais sagrado do que o pão, porque se o pão é o corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo, o vinho é o sangue. E eu cá se fosse juiz mandava enforcar os falsificadores do vinho num candeeiro. (dá um tombo)”

 João – “Olhe lá esse candeeiro”.

– “Vê? Você pensa que eu estou bebado? Bebado, eu! O que estou é incomodado do estomago por causa da zurrapa da taberna. Aquilo não é vinho, é uma potreia. Mais de metade é água do poço. E depois fica a gente assim incomodada e aos tombos. Se fosse vinho, só do que dá a cepa, isso até faz endireitar os velhos”.

João – “Ó compadre, olhe que as falsificações de dinheiro também estão muito apuradas”.

– “Pois estão. Falsificam tudo, as notas graúdas e as moedas pequenas; olhe que há dez reis falsos, vinténs falsos, patacos falsos, meios tostões falsos e não falsificam três vinténs porque é moeda que não existe”.

João – “Estão ali à escuta. Vamo-nos andando”.

– “Vamos lá. Mas você não pense que eu estou bebado, ahn! Isto é da porcaria da água que misturam com o vinho”.

         Claro que era das misturas. E logo a seguir, os nossos amigos encontram uma outra figura importante na vida da aldeia. A taberna.

Domingo à noite
Na nossa aldeia
Esta igrejinha
É sempre cheia.
Aqui se adora
 O S. Martinho,
A quem dedicam
Preces de vinho.
Muitos devotos,
Finda a oração,
Jogam marimbo
E o chincalhão.

Neste escuro santuário,
À luz da velha candeia,
Gente há de tipo vário
Dos mais famosos d’aldeia.
Vê-se palrar o sapateiro
Junto dum cavador
Matreiro,
E um zanaga carpinteiro
Ao ferrador
Descreve uma caçada
D’alta monta.
E o bom do taberneiro ao balcão
Calcula e conta
 O que lhe rende o carrascão.



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