É muito dificil, para nós, seleccionar
um apontamento publicado e relativo a esta peça. Por isso, e porque se refere a
outros assuntos que reputamos de interesse, transcrevemos uma nota recolhida no
diário ‘República’, em Novembro de 1952. Entre
os muitos deslumbramentos que em mim causou a viagem aos países nórdicos, ocupa
um lugar destacado a protecção do Estado e das comunas ao teatro do povo, dando
à expressão o seu verdadeiro significado – artistas do povo representando para
o povo. Particularmente na Finlândia, onde me apercebi com mais detalhe do
problema, essa protecção ultrapassa o dever do estado para atingir as
culminancias duma verdadeira consagração nacional. São às dezenas os grupos de
amadores que, desde as regiões polares até Helsínquia, se dedicam, no intervalo
das suas vidas de trabalho afadigado e operoso, a fornecer ao público o
precioso alimento espiritual de que, só o teatro, na sua simplicidade e na sua
estreita comunhão, é capaz. Não posso, é claro, pronunciar-me sobre o valimento
desse teatro, pelo desconhecimento completo da língua arrevezada e difícil, mas
o que posso garantir é que ouvi a artistas finlandeses as melhores referências
e a afirmação de que são esses núcleos os permanentes mantenedores do prestígio
dum espírito sem o qual o teatro acaba por estiolar-se! E é precisamente desses
núcleos que saem os grandes artistas profissionais, para os quais, segundo
parece, se não exige um exame declamatório e enfatuado…
Por aquilo que ouvi, não é possível
fracassar na Finlândia uma iniciativa deste género, a não ser por incapacidade
congénita dos amadores, pois as facilidades económicas são tão grandes e o
acesso aos teatros tão acentuado que, agrupados os artistas e expostas as suas
pretensões, o ambiente oficial ou comunal e a compreensão pública se manifestam,
não no campo das promessas, mas sim no das certezas e realidades.
Parece-me ser este o caminho e esta a
única solução. Se assim sucedesse, entre nós, é natural que o Teatro não
apresentasse o aspecto confrangedor que o arrasta pelo Parque Mayer ou que as
iniciativas altas e honradas de alguns homens sérios morressem desfalecidas e
sem protecção. Isto no que respeita à compreensão oficial do papel dos pequenos
núcleos porque, como é óbvio, o que se passa com os grupos profissionais excede
todas as críticas.
Mas vem isto a propósito de dois
acontecimentos ocorridos no nosso meio artístico, para os quais chamo a atenção
dos interessados e dos próprios poderes políticos.
O primeiro é do conhecimento geral:
A grandeza do Teatro dos Estudantes de
Coimbra, dirigidos pelo saber e pelo sacrifício do professor Paulo Quintela,
cuja fama ultrapassa as fronteiras e constitui grande jubilo para todos os
portugueses, através da atmosfera de entusiasmo que o envolveu na sua digressão
pela Alemanha, Itália e Espanha, sobretudo nos dois primeiros países, em que a
cultura teatral faz parte integrante da cultura geral.
O segundo é a arte excepcional do grupo de
Tavarede, cujo “Frei Luiz de Sousa”, recentemente representado em Leiria,
demonstra a que altura pode chegar a massa anónima do povo quando iluminada
pelo trabalho persistente e pela humana cultura dum José Ribeiro.
No primeiro caso há que contar, sem
dúvida, com a preparação dos jovens artistas, estudantes universitários,
conhecedores do ambiente e da literatura, ou, pelo menos, acessíveis à
compreensão dos temas e dos personagens. É um facto a contar que não desmerece
do valor e da beleza desse agrupamento de “elite”.
Mas o segundo?
Haverá melhor expressão de riqueza popular
do que esses artistas proletários, debruçados dia a dia, nos trabalhos duros da
profissão e entregues nos longos serões à “compreensão” dos seus papéis, sem
cultura, alguns analfabetos e outros sabendo ler mas ilaqueados pelas
dificuldades intelectuais duma rápida assimilação?
Mesmo que tenham à sua frente um homem
invulgar como José Ribeiro, seu mestre e companheiro, como desconhecer o
esforço hercúleo dessa massa erguendo-se à contemplação da beleza e sabendo-a
transmitir de forma a causar inveja a alguns filiados no Sindicato profissional?
Só quem, como nós, assistiu à
representação do “Frei Luiz de Sousa” pode avaliar da emoção, da verdade e da
sinceridade, que esses proletários-artistas põem ao serviço duma arte, que eles
tanto sentem nos recessos das suas almas de eleição, embora tocados por uma
simplicidade comovedora e aliciante.
Por aqui se aquilata a necessidade de
proteger esses núcleos, tal como se pratica nos países do norte europeu.
Protecção que terá de ser eficiente no aspecto das facilidades oficiais, na
isenção de taxas e sobretaxas, no acesso aos teatros, na oferta de literatura
especializada e na abertura de pequenos anfiteatros, onde os responsáveis e os
esclarecidos exponham, em conversa fácil, os problemas da arte teatral.
O mesmo principio deverá ser aplicado a
todas as manifestações de arte do povo, sejam eles os orfeãos magníficos que
possuímos e que vivem uma hora difícil e agónica, as orquestras populares e as
manifestações plásticas dos nossos artistas populares e desconhecidos.
A “carolice” não pode fazer milagres e não
é justo exigir-se das bolsas particulares e do suor não compensado de meia
dúzia, todo um trabalho em beneficio da Nação e, portanto, de todos nós.
É esta uma das modalidades duma política
do espírito, a que daríamos a nossa adesão se alguém se lembrasse de a
efectivar.
Quando será?
E, já agora, mais um pequeno extracto do
relatório da Direcção do exercício de 1951. Vós
que assististes cómoda, ou incomodamente instalados na plateia à representação
do “Frei Luís de Sousa”, não podeis avaliar, e pena é que assim seja, porque se
o pudesseis fazer isso significaria interesse pela vossa Sociedade e
estimular-nos-ia a vossa presença amiga, não podeis avaliar, como se ia
dizendo, a soma de sacrifícios, de desânimos, de estudo, de energia e trabalho enfim,
despendidos na montagem desta peça inolvidável. Todos os amadores colaboraram
com o seu saber e com a sua melhor boa vontade. Mas é, sem dúvida, e
desnecessário seria dizê-lo porque todos vós o sabeis bem, ao dinamismo, à
cultura, aos profundos conhecimentos das coisas de teatro, à superior
inteligência do director cénico, que se fica devendo mais este triunfo da nossa
Sociedade, delirantemente aplaudido por quantos assistiram ao Frei Luís de
Sousa.
Quem, como nós, acompanhou a evolução
do que se apresentava como um sonho pelo muito que tinha de arrojado, até à
admirável realidade que todos presenciastes, tem por força de admirar e avaliar
o enorme trabalho levado a efeito pelo nosso director cénico. A quantidade
assombrosa de correspondência trocada para recolha de elementos necessários; a
probidade com que a peça foi montada e posta em cena, levando o seu escrúpulo
até à observância dos mais ínfimos pormenores, causando a admiração dos
próprios profissionais de teatro; o dispêndio de importâncias do seu próprio
bolso para correspondência, etc., e, sobretudo, o trabalho gigantesco e
exaustivo, duma persistência única, realizado como encenador, impõem-no à nossa
admiração e gratidão.
Não,
nem todas as associações podem representar Frei Luís de Sousa. E nenhuma, por
certo, o levaria à cena com o rigor e êxito com que nós o fizemos. Para isso
seria necessário que pudessem contar com um elemento tão precioso como esse
Homem que todos nos orgulhamos de ter por consócio e conterrâneo. Para o senhor
José da Silva Ribeiro vai todo o nosso agradecimento de directores pelos seus
ensinamentos, pelos seus preciosos conselhos e pela maneira generosa como
sempre colaborou connosco; e as nossas homenagens de homens que muito querem à
sua terra, pelo seu grande talento.
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