Era uma quadra do ano que o povo de Tavarede sempre
vivia com imenso agrado. Embora se não saiba desde quando, o Presépio era um
espectáculo teatral que esgotava sempre as lotações das salas, mesmo ainda no
tempo dos antigos ‘cardanhos’, pois há um apontamento que nos diz que, em
tempos bastante distantes, e estamos a relatar um facto de 1865, se chegaram a
representar seis Presépios ao mesmo tempo, o que vem confirmar aquele curioso
escrito onde se refere que em Tavarede ‘as sociedades dramáticas vegetavam como
tortulhos’.
No entanto, diga-se que não era só o teatro que atraía
os tavaredenses. A Igreja igualmente comemorava o nascimento de Jesus com muito
brilho. O principal acto religioso era a chamada ‘missa do galo’, que,
abrilhantada a grande instrumental, por uma filarmónica contratada, era
igualmente muito concorrida, como no ano de 1880 em que, apesar de estar ‘uma
noite terrível e chuvosa’, encheu totalmente a nossa Igreja com fiéis e alguns
curiosos desejosos de ouvir a actuação da Filarmónica Figueirense.
Sabemos, por exemplo, que o ‘velho’ Joaquim Águas era um
fervoroso e entusiasta apreciador do Presépio, que fazia representar, com a
participação de seus filhos e filhas, no teatro que havia instalado em sua
casa, na Rua Direita, perto do Largo do Forno. A peça, naqueles tempos, tinha
menos cenas, pelo que não preenchia totalmente o serão, o qual terminava então
com uma comédia. Também encontrámos uma local, publicada na imprensa
figueirense, referindo que, na noite de Natal de 1884, houve representação do
Presépio mas, ‘no meio do espectáculo, abateu uma parte do soalho da casa, indo
parar à loja alguns espectadores’.
No ano de 1894 um apontamento informa que “não é só n’esta cidade
que a reproducção dos autos pastoris vem lembrar-nos antigas e saudosas
recordações, que não esquecem nunca, e que o Nascimento do pequenino Deus é
saudado pelo povo ingenuo... Em Tavarede, aldeia suburbana d’esta cidade e que
é quasi um seu arrabalde, tambem o Menino Deus é festejado em dois presépios,
não querendo nenhum d’elles ficar atraz na commemoração festiva que se
prepara”.
Foi então
que se encontrou a primeira referência à representação do ‘Auto dos Reis Magos’.
Foi no teatro Bijou Tavaredense, que estava instalado no antigo teatro de
Joaquim Águas. Embora no segundo volume do caderno ‘Tavarede - a terra de meus
avós’ o caso já esteja contado, pela sua curiosidade vamos transcrever
novamente a polémica que este espectáculo ocasionou.
“Temos
gosado os differentes espectáculos que ultimamente se têm representado no
theatro “Bijou Feminino”, cujo desempenho tem sido na verdade surprehendente…
O desempenho d’alguns papeis na representação dos Reis, por pessoas mal educadas… queremos dizer, por pessoas que não têm educação
própria para o theatro, não nos pareceu… nem bom nem mau – antes pelo contrario, ainda que houve varias incorrecções
exaggeradas, devidas com certeza à
maneira como a peça s’acha escripta.
Em todo o caso estas incorrecções foram resalvadas, devido à intelligencia
dos desempenhantes, sobresahindo especialmente o papel de Rachel que foi
distribuído a um desempenhante que
conseguiu arrincar da plateia os mais
avaporados applausos que reduplicaram
com muito mais enthusiasmo quando arrincou
um dos innocentes dos braços mortiféros
de Luciféro que… ficou atrapalhado ao
fazer d’aquella…
Foi o melhor espectáculo de Reis que este anno se representou
na Figueira, Carritos e Cova da Serpe”. (O Povo da Figueira)
“Acabamos de ler uma correspondencia d’esta povoação para o
“Povo da Figueira”, datada de 24 do corrente, que nos surpreendeu... por
sabermos que n’esta pequena terra ha um rival do tão festejado Caracoles
da Folha do Povo, tal é o chiste da graça avaporada com
que o tal correspondente critica o espectaculo dos Reis no
theatro Bijou Feminino
Com .certeza certa que os desempenhantes eram mal
educados... para o theatro; mas isso não é razão para critica, porque
tambem o sr. correspondente está mal educado... para escrevinhador de
correspondencias, em que a nossa lingua é torpemente assassinada, sem haver uma
alma caridosa que a livre de tal verdugo, mandando-o para a Cova da Serpe,
onde, com o seu fino espirito, póde representar algum papel de grande
effeito, na peça de sensação - Judas... no deserto; ou então s’achar
batatas para os Carritos.
Em todo o caso, não me lembra que nenhum
desempenhante arrincase coisa alguma, pois que a peça era desempenhada
por pessoas do sexo feminino, que, se disseram mortiféros, conseguiram
tambem justos applausos, mas não avaporados (que não sabemos o que seja,
a não ser alguma subida de vapores que fazem ver as coisas d’este mundo em duplicado
ou reduplicado, conforme a quantidade).
Assim o sr. Pum (que pseudonymo tão avaporado!)
com a sua intelligencia, não contente em criticar, o que certamente não
viu (temos a certeza d’isso) e o que não percebe, não satisfeito em escavacar
a pobre grammatica, que não tem culpa alguma da pouca intelligencia de
qualquer quidem, que se arvora em critico... de si mesmo, ainda
(naturalmente por estar avaporado) confunda Lucifér ou Luciféro,
com o executor das ordens de Herodes, que, em vez de mandar degollar os
innocentes, devia mandar cortar o pescoço a certos criticos... que nós
conhecemos. Diz elle (correspondente) que viu (pelo telephone?) um
desempenhante (que por sinal não estava avaporado) arrincar os mais
avaporados (?) applausos que reduplicaram (por causa da avaporação)
quando elle, aliás ella, arrincou um dos innocentes dos braços do
capitão da guarda de Herodes a quem o sr. Pum, certamente por
ignorancia, chama Lucifer! Oh! homem de Deus, olhasse-lhe para a cabeça e para
os pés... a ver se assim o não confundia!
Ora... abobora, sr. Pum.; trate d’outro officio por que esse
não lhe serve; metta-se com a sua vida e deixe divertir os outros, muito embora
digam calinadas; olhe para si antes de criticar os outros; ponha a mão na
consciência (caso não esteja avaporada) e... durma, que isso é somno, e
olhe que de pobres de espirito está cheio o reino dos ceus... e tambem
Tavarede.
Fique-se em paz”. (Gazeta da Figueira)
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