Os populares arraiais
Não temos quaisquer dúvidas de que
Tavarede sempre foi uma terra festiva. Já recordámos, por exemplo, as famosas
festas ao São João de Tavarede. Mas, sendo gente que trabalhava arduamente
durante toda a semana, era uma necessidade que sentiam de aos domingos se
envolverem em diversões, durante as quais se afastavam por momentos da
duríssima vida que tinham no amanho das terras ou nos seus ofícios quotidianos.
Também os antigos ranchos, onde
dançavam animadamente as raparigas e os rapazes da nossa terra, deixaram muita
fama e imensa saudade naqueles que ainda tiveram o prazer de os viver.
Antes de recordarmos as costumadas
festas de verão, vamos dar mais uma pequena olhadela às antigas notícias que
nos contaram alguma coisa sobre este costume. Recuando até ao verão de 1901,
encontrámos uma notícia confirmando o que dizemos.
“Este titulo vae decerto attrahir a
curiosidade e attenção dos nossos jovens leitores. É isso mesmo o que queremos,
e tal foi a intenção com que o empregámos.
O calor,
insupportavel que hontem e hoje nos tem causticado com os seus raios
coruscantes e vae acabando de mirrar as pobres hastes de milho que ainda
vegetam por essas terras e que há um mez, tão vicejantes, nos deleitavam o olhar e nos
incutiam a risonha esperança d’um anno agrícola abundante, obriga um pobre
mortal a abeirar-se das janellas e a tomar
o fresco que a noite lhe offerece.
É exactamente o
que succede comnosco, e eis que, jovens leitores, para vossa consolação e
prazer, o vosso repórter aldeão poude ouvir da sua janella a
conversa d’uns quatro rapazes folgazões que hontem, perto das 11, combinavam: - ornamentar o largo do Paço e promover ali uma dansa na
noite de sabbado para domingo, e na tarde d’este dia, além de dansa, falavam em
se fazerem umas corridas de prémios por indivíduos montados em gericos, outros dentro de
saccos, corridas de mulheres com potes, etc.
Foi isto, meus
amigos, o que ouvimos. E, passando a coisa de palavras a obras, o que lhes
podemos também affiançar é que no Largo do Paço já está
içado um enorme mastro, que amanhã é ornamentado aquelle local, que a orchestra
já fez ensaio, e que os rapazes estão animados da melhor
vontade para vos proporcionar algumas horas de dansa, que amanhã começará pelas 10 horas da noite e acabará á 1, e no domingo
principiará pelas 5 da tarde, terminando sabe Deus quando.
Sobre corridas,
porém, de nada podemos informal-os com verdade, porque ellas dependem de massa
para os prémios, e isso é coisa que os rapazes estão vendo por mesas
altas. No entanto a dansa faz-se, e cremos ser o que mais interessará á
alegre mocidade.
E vós, caros
figueirenses, preparae as merendas e vinde no domingo por ahi fora. Sombras
benéficas é o que por ahi há mais, limonete, já há pouco, mas, procurando bem, ainda
encontrarão umas pontinhas d'elle para consolar os órgãos do olfacto,
sempre suspirando por cheiros perfumosos. Eis do que basta
informal-os hoje. E tu, mocidade, alegra-te”.
Sabemos que, naqueles recuados tempos, eram
dois os locais onde habitualmente se instalavam os pavilhões, no Largo do Paço
e no Largo do Forno. E era nestes locais que dançavam, respectivamente, o
Rancho Flor da Mocidade e o Rancho da Alegria
Rancho
da
Alegria
Havia, até, grande rivalidade entre
estes dois ranchos, o que nos é contado por esta pequena notícia recolhida. “...
Todas querem a primazia e daí lançam mão de certos meios que nada depõem a
favor de umas e de outras. Os epítetos grosseiros e obscenos de que se servem,
são impróprios de raparigas honestas e sobretudo das que possual uns rudimentos
de boa educação... “. Pelos vistos, a maior rivalidade era entre as raparigas!
Vejamos,
agora, uma outra nota que nos conta o despique que havia cá na terra. “Prosseguiu
hontém a luta entre os dois ranchos dançarinos da localidade. À meia noite
começou a campanha e ao raiar a manhã ainda os pares se seracoteavam com toda a
galhardia ao som dos trombones, que, sem cessar, nos aturdiam os ouvidos.
Vencido era o primeiro rancho que suspendesse a dança, mas
às nove horas da manhã nem um nem outro davam signal de baquear, embora
interviessem por vezes algumas potencias estranhas, aconselhando o armistício. -”É
tempo de usar dos direitos que me são concedidos pela lei fundamental da nação
portugueza e códigos apensos”, exclamou o nosso conspícuo regedor, que é homem
a bulhas contrário, como dizia Tolentino. Dirigindo-se com toda a diplomacia
aos chefes das duas facções, com eles parlamentou largamente, e às dez horas, no
relógio do António Mota, o mesmo sr. regedor lançava aos ares um foguete, os
trombones roncaram o hino da carta adorada, terminando assim a memorável
batalha d’hontem.
Vencedores - os donos dos estabelecimentos locaes.
Vencidos - os chefes de família e a ala de tuberculosas
d’amanhã.
O pavilhão da vitória deve ser arvorado no alto de S.
Martinho e o registo de recompensas faz-se no livro negro dos taberneiros.
Dizem-nos que os ranchos se denominam: um - das solteiras, outro - das casadas. Vae crear-se outro - de viúvas... bem conservadas. Tem sido
muito censurado o procedimento do sr. regedor, dizendo algumas pessoas que ele
devia ser enforcado ou metido perpetuamente na penitenciaria. Veremos se o não
matam este anno”.
Estes casos prolongaram-se por vários anos, conforme este
apontamento que encontrámos em 1911. “Nos ranchos é que se vê como as nossas
patricias se apresentam galhardamente.
Mas que luxo... Tudo cheio de laços!... No preterito sabbado até pareceu mal
taes laços a um velhinho que observava os lindos conjunctos das danças,
recordando-se assim dos seus tempos de rapaz, quando gosava.
De madrugada, o bom do velhinho retirou, censurando as cachopas de Tavarede, porque, dizia
elle, nunca nos meus tempos se tirou
á barriga para tanto luxo. E ámanhã, essas raparigas, com o olhar inundado de
mau aspecto, recolherão á cama tossindo... como tossem os tisicos”.
Nesse ano o rancho da Alegria ‘dançou no Largo do Forno em
pavilhão fechado, onde pagavam à entrada cada rapaz 100 réis e cada rapariga 60
réis’. O caso até foi aproveitado para um quadro da revista ‘Na Terra do
Limonete’, no qual uma peixeira, que queria divertir-se um bocado, vê um
festeiro dizer-lhe “se tem três vinténs para dar, entra, se não tem... vá
andando”. Ao que a aludida peixeira retorquia “Olha agora! Louvado seja Deus!
Já quem não aveza três vinténs se não adverte...”.
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