Podemos dizer, desde já, que
esta revista é um autêntico marco na história do teatro musicado tavaredense.
Adiante sabereis a razão desta nossa afirmação.
O
espectáculo começa nos Paços da República, onde se encontram reunidas as
figuras mais importantes da aldeia e muito povo. O entusiasmo é enorme. Para
presidente é escolhido “pelos seus merecimentos e mais partes”, o cidadão
Agostinho Pandorgas. Aceita a nomeação e as suas primeiras palavras são de
agradecimento ao comandante das tropas libertadoras.
Presidente – “Obrigado! Muito obrigado!
Bravo, comandante: agora que estamos libertos do jugo odioso, consinta que em
nome deste povo lhe agradeça o heroísmo com que levou do rabo a cabo esta
façanha imortal”.
Comovido com
as palavras do presidente e orgulhoso do seu heróico feito, o bravo comandante
das tropas tavaredenses responde:
Comandante – “Este povo não podia por
mais tempo gramar a tirania que pesava sobre ele. Acabaram os vexames, as
contribuições, as licenças do carro e da caça, o serviço braçal! Quebraram-se
os grilhões que nos prendiam à maldita Figueira. Já era tempo de dar liberdade
a este povo, que andava pelas azinhagas a gemer as suas dores...”.
Bem, tal
feito tinha que dar brado no país. De Lisboa, mal houve conhecimento do triunfo
da revolução, o jornal “A Bomba Social” enviou a Tavarede o seu jornalista
Delfim Pirolito. Pretendia ele fazer uma reportagem bem desenvolvida, para dar
a conhecer a todos os seus imensos leitores, as razões da revolução e quais os
projectos futuros e prossibilidades da sobrevivência e consolidação da
independência agora adquirida.
Presidente
– “Da Figueira não precisamos nada, nem sequer a ponta dum chavelho. Aqui temos
tudo o que é preciso, e para dar e vender. A boa couve tronchuda, o bom nabo, o
rico pepino, o belo tomate... Temos tudo: a estação do caminho de ferro, o
matadouro, o hospital militar, a central eléctrica, o cemitério...”
E é que era
verdade. Naqueles tempos, todas aquelas instalações estavam situadas em
terrenos pertencentes à freguesia de Tavarede. Os figueirenses nem sequer
tinham “onde cair mortos”! E a explicação continua, ao mesmo tempo que lhe iam
dando a conhecer tudo o que de bom tem a freguesia. Claro que já é de longa
data conhecida e famosa a água de Tavarede, “fina, pura, saborosa, aveludada,
um verdadeiro regalo”.
Fonte
Mato
a sede a toda a gente
E
às avesinhas do céu;
À minha água transparente
Ninguém
fez cara de réu.
Todo
o dia ao lusco-fusco
Oiço
as alegres cantigas
E
os segredos que os rapazes
Cochicham
às raparigas.
Bilhas
Airosas,
catitas,
De
barro encarnado,
À
fonte nos levam
Com
todo o cuidado;
E
às vezes trazemos
Raminho
entrouxado.
A
moça que chega
C’o
seu namorado
Comigo
à cabeça
Conversa
um bocado
E
apanha à sucapa
Seu
beijo furtado.
Sabem,
agora, uma das razões de considerarmos esta revista como um marco no nosso
teatro musicado. A cantiga da “Fonte e suas Bilhas”, pela primeira vez ouvida
nesta revista, é uma das que mais agradaram ao nosso povo e que, ainda hoje, é
frequentemente recordada e cantada. Mais adiante conhecerão uma outra.
Naqueles
tempos, os tavaredenses, na sua grande maioria trabalhadores do campo,
trabalhavam de sol a sol. Mas, na verdade, sentia-se a falta de um relógio que,
colocado na torre da Igreja, anunciasse as horas do dia. Abriram-se
subscrições, houve algumas dádivas, como do João do Ricardo, que deu um pataco
novo; do João Caceira, que declarou que dava os pesos; do Francisco Maltês, que
prometeu uma pêndula que tinha, mas com pouco uso, etc. Refira-se que tudo isto
aconteceu na realidade, pois vem publicado em várias locais da imprensa
figueirense.
Mas
como não se conseguia o relógio e como ninguém sabia às quantas andava, alguém
se lembrou de apanhar um cuco e ensiná-lo a cantar as horas. Bem lembrado,
melhor executado. Poucos tempos depois, lá estava o cuco no seu posto cantando
as horas. Para as horas pares cantava “cu-cu” e para as ímpares um ‘cu’, por
exemplo, para as cinco horas, cantava “duas vezes cu-cu” e só mais “um cu” para
fazer a conta certa.
Mesmo
assim, ainda fazia falta o toque das Trindades. Pagavam pouco e “por pouco
dinheiro, ninguém quer dar ao badalo”... Também o caso estava resolvido: os
tavaredenses saltavam da cama mal luzia o dia; com o sol a pino, iam “à
trincadeira” e à “hora dos morcegos, que é ao lusco-fusco, ovelhas ao curral”. O
cuco também só dava as horas até às 11 horas da noite, o que era mais do que
suficiente: “cá na aldeia, esta gentinha deita-se sempre entre as dez e as
onze”...
Mais
coisas mostraram ao jornalista. Quando regressaram aos Paços da República para
fazer as despedidas e quando estava a agradecer ao presidente as facilidades
que lhe dera para a reportagem, que estava certo, iria causar sensação no país,
ouvem uma enorme vozearia na rua. Alguém que foi à janela conta: “É a malta dos
cavadores e o rancho das ceifeiras, que vão pegar no trabalho depois do
jantar”...
Coro
Desde
manhã ao sol posto,
Arado
ou foice na mão,
Seja
Inverno ou seja Agosto,
Ceifamos
a loira espiga
Ou
pomos à terra o grão.
Cavadores
Vamos
todos sem cansaço
Na
terra dura
Cavar,
cavar.
A
força do nosso braço
Traz
a fartura
Do
nosso lar.
Ceifeiras
Somos
as ledas ceifeiras
Que
vão as messes trigueiras
Segar,
ceifar,
Sempre
ligeiras,
Sempre
a cantar,
A
cantar.
Coro
Cavar,
Ceifar,
Ceifar,
cavar,
Sem
descansar.
Perante
o entusiasmo geral, mal acaba o coro, ouve-se o presidente dizer ao jornalista:
Presidente – “o trabalho consola, o
trabalho dignifica, quando é honesto e orientado para bom fim. Veja esta gente.
Após horas de labutação e canseira, ainda canta e sente-se feliz. Gente
admirável, os trabalhadores das nossas aldeias!... Ainda brilha no céu a
estrela de alva, saltam eles da cama, lestos e bem dispostos como quem vai para
uma festa. E de enxada ao ombro, uma broa no bornal, um trauteio de cantiga na
boca, tão contentes como pardais em Julho, lá vão para a faina de cada dia, a
revolver a terra maternal, donde há-de sair a mantença de todos, a abastança, a
conservação da vida. São eles, os tisnados e rudes cavadores, de riso claro e
bom, alma lavada e braço forte, o amparo, o sustentáculo duma Pátria Livre!”. (A primeira parte termina, ouvindo-se a música do coro
dos cavadores e das ceifeiras que, durante a fala do presidente, tinha
continuado a tocar em tom baixo).
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