sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Operetas na Terra do Limonete - 5

Podemos dizer, desde já, que esta revista é um autêntico marco na história do teatro musicado tavaredense. Adiante sabereis a razão desta nossa afirmação.

         O espectáculo começa nos Paços da República, onde se encontram reunidas as figuras mais importantes da aldeia e muito povo. O entusiasmo é enorme. Para presidente é escolhido “pelos seus merecimentos e mais partes”, o cidadão Agostinho Pandorgas. Aceita a nomeação e as suas primeiras palavras são de agradecimento ao comandante das tropas libertadoras.

         Presidente – “Obrigado! Muito obrigado! Bravo, comandante: agora que estamos libertos do jugo odioso, consinta que em nome deste povo lhe agradeça o heroísmo com que levou do rabo a cabo esta façanha imortal”.

         Comovido com as palavras do presidente e orgulhoso do seu heróico feito, o bravo comandante das tropas tavaredenses responde:

         Comandante – “Este povo não podia por mais tempo gramar a tirania que pesava sobre ele. Acabaram os vexames, as contribuições, as licenças do carro e da caça, o serviço braçal! Quebraram-se os grilhões que nos prendiam à maldita Figueira. Já era tempo de dar liberdade a este povo, que andava pelas azinhagas a gemer as suas dores...”.

         Bem, tal feito tinha que dar brado no país. De Lisboa, mal houve conhecimento do triunfo da revolução, o jornal “A Bomba Social” enviou a Tavarede o seu jornalista Delfim Pirolito. Pretendia ele fazer uma reportagem bem desenvolvida, para dar a conhecer a todos os seus imensos leitores, as razões da revolução e quais os projectos futuros e prossibilidades da sobrevivência e consolidação da independência agora adquirida.

         Presidente – “Da Figueira não precisamos nada, nem sequer a ponta dum chavelho. Aqui temos tudo o que é preciso, e para dar e vender. A boa couve tronchuda, o bom nabo, o rico pepino, o belo tomate... Temos tudo: a estação do caminho de ferro, o matadouro, o hospital militar, a central eléctrica, o cemitério...”

         E é que era verdade. Naqueles tempos, todas aquelas instalações estavam situadas em terrenos pertencentes à freguesia de Tavarede. Os figueirenses nem sequer tinham “onde cair mortos”! E a explicação continua, ao mesmo tempo que lhe iam dando a conhecer tudo o que de bom tem a freguesia. Claro que já é de longa data conhecida e famosa a água de Tavarede, “fina, pura, saborosa, aveludada, um verdadeiro regalo”.

Fonte
Mato a sede a toda a gente
E às avesinhas do céu;
À minha água transparente
Ninguém fez cara de réu.

 Todo o dia ao lusco-fusco
 Oiço as alegres cantigas
 E os segredos que os rapazes
 Cochicham às raparigas.

 Bilhas
Airosas, catitas,
De barro encarnado,
À fonte nos levam
Com todo o cuidado;
E às vezes trazemos
Raminho entrouxado.
A moça que chega
C’o seu namorado
Comigo à cabeça
Conversa um bocado
E apanha à sucapa
Seu beijo furtado.

         Sabem, agora, uma das razões de considerarmos esta revista como um marco no nosso teatro musicado. A cantiga da “Fonte e suas Bilhas”, pela primeira vez ouvida nesta revista, é uma das que mais agradaram ao nosso povo e que, ainda hoje, é frequentemente recordada e cantada. Mais adiante conhecerão uma outra.

         Naqueles tempos, os tavaredenses, na sua grande maioria trabalhadores do campo, trabalhavam de sol a sol. Mas, na verdade, sentia-se a falta de um relógio que, colocado na torre da Igreja, anunciasse as horas do dia. Abriram-se subscrições, houve algumas dádivas, como do João do Ricardo, que deu um pataco novo; do João Caceira, que declarou que dava os pesos; do Francisco Maltês, que prometeu uma pêndula que tinha, mas com pouco uso, etc. Refira-se que tudo isto aconteceu na realidade, pois vem publicado em várias locais da imprensa figueirense.

         Mas como não se conseguia o relógio e como ninguém sabia às quantas andava, alguém se lembrou de apanhar um cuco e ensiná-lo a cantar as horas. Bem lembrado, melhor executado. Poucos tempos depois, lá estava o cuco no seu posto cantando as horas. Para as horas pares cantava “cu-cu” e para as ímpares um ‘cu’, por exemplo, para as cinco horas, cantava “duas vezes cu-cu” e só mais “um cu” para fazer a conta certa.

         Mesmo assim, ainda fazia falta o toque das Trindades. Pagavam pouco e “por pouco dinheiro, ninguém quer dar ao badalo”... Também o caso estava resolvido: os tavaredenses saltavam da cama mal luzia o dia; com o sol a pino, iam “à trincadeira” e à “hora dos morcegos, que é ao lusco-fusco, ovelhas ao curral”. O cuco também só dava as horas até às 11 horas da noite, o que era mais do que suficiente: “cá na aldeia, esta gentinha deita-se sempre entre as dez e as onze”...

         Mais coisas mostraram ao jornalista. Quando regressaram aos Paços da República para fazer as despedidas e quando estava a agradecer ao presidente as facilidades que lhe dera para a reportagem, que estava certo, iria causar sensação no país, ouvem uma enorme vozearia na rua. Alguém que foi à janela conta: “É a malta dos cavadores e o rancho das ceifeiras, que vão pegar no trabalho depois do jantar”...

 Coro
Desde manhã ao sol posto,
Arado ou foice na mão,
Seja Inverno ou seja Agosto,
Ceifamos a loira espiga
Ou pomos à terra o grão.

Cavadores
Vamos todos sem cansaço
Na terra dura
Cavar, cavar.
A força do nosso braço
Traz a fartura
Do nosso lar.

Ceifeiras
Somos as ledas ceifeiras
Que vão as messes trigueiras
Segar, ceifar,
Sempre ligeiras,
Sempre a cantar,
A cantar.

Coro
Cavar, Ceifar,
Ceifar, cavar,
Sem descansar.

         Perante o entusiasmo geral, mal acaba o coro, ouve-se o presidente dizer ao jornalista:


         Presidente – “o trabalho consola, o trabalho dignifica, quando é honesto e orientado para bom fim. Veja esta gente. Após horas de labutação e canseira, ainda canta e sente-se feliz. Gente admirável, os trabalhadores das nossas aldeias!... Ainda brilha no céu a estrela de alva, saltam eles da cama, lestos e bem dispostos como quem vai para uma festa. E de enxada ao ombro, uma broa no bornal, um trauteio de cantiga na boca, tão contentes como pardais em Julho, lá vão para a faina de cada dia, a revolver a terra maternal, donde há-de sair a mantença de todos, a abastança, a conservação da vida. São eles, os tisnados e rudes cavadores, de riso claro e bom, alma lavada e braço forte, o amparo, o sustentáculo duma Pátria Livre!”. (A primeira parte termina, ouvindo-se a música do coro dos cavadores e das ceifeiras que, durante a fala do presidente, tinha continuado a tocar em tom baixo).

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