sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 65


        Também cabe aqui uma notícia sobre a apresentação desta fantasia. Tavarede com o seu grupo cénico e um valor a orientá-lo com aquela garra e paixão próprias de quem conhece teatro, levou à cena uma luxuosa fantasia em 3 actos e 24 quadros – “Chá de Limonete”.
         E o que é este “chá” servido com as mais admiráveis porcelanas? Apenas um belíssimo espectáculo de histórias de Tavarede, concebido e realizado por um homem de elevada concepção, e desempenhada por um bloco sublime de amadores que, num esforço sem palavras soube valorizar numa interpretação sublime todas as cenas desse primoroso “chá” servido no próprio local da origem.
         Desde o “Sonho do Cavador” que a Sociedade Instrução Tavaredense tem feito teatro, sem fugir à arte e à escolha. Fieis a tudo quanto de bom tem sido representado, e escolhido para si esse bom para enriquecimento do seu vasto reportório, a Sociedade não se poupa nunca a esforços para igualar tanto quanto possível as melhores companhias de profissionais. E muitas vezes a sua interpretação suplanta-os. E a confirmá-lo está a peça de Ramada Curto “Recompensa”.
         Mas vamos ao “Chá de Limonete”, aliás a razão fundamental desta nossa crónica.
         Logo ao subir o pano fica-se com uma sensação do agradável com o primeiro quadro “Chá de Limonete”, onde não falta o chá e o açúcar, desempenho de graciosas raparigas, e coros das chávenas do chá, conjunto de beleza visual, prejudicada, como toda a peça, pelo restrito espaço destinado a representações de categoria desta.
         Segue-se o segundo quadro – O soneto de Frei Manuel de Santa Clara, quadro que serve de fio condutor durante toda a representação. João de Oliveira Júnior no Frei Manuel que desce à terra – a Tavarede – para matar saudades e saber se tudo é ainda como o havia deixado, - merece relevo especial assim como o Velho-Tavarede na figura de Fernando Reis de primoroso desempenho e firme dicção; senhor absoluto do seu papel, conserva durante todo o espectáculo a mesma calma e o mesmo sentido de responsabilidade que lhe foi confiada. Logo depois o 3º. quadro – “A cidade e o campo” – onde Violinda Medina – a jovem de sempre, alegre e folgazã e o belo e firme trabalho de João Cascão, fazem o duo desta partícula da peça. O 4º. quadro é preenchido pelo “Velho Tavarede” de que acima falamos, a figura do pequeno burgo que tudo sabe como um livro aberto. Está-lhe nos olhos e no coração toda a infância tavaredense e ele a explica e apresenta a Frei Manuel de Santa Clara. Segue o 5º. quadro “A doação de Tavarede à Sé de Coimbra”, bela imagem da história local com toda a sua pompa da época, onde o rei D. Sancho e a rainha D. Dulce, desempenhado por Manuel Nogueira e Lucídia Santos, ouvem da boca do notário do rei e perante fidalgos, bispos e arcebispos, condes, mordomos, a doação de Tavarede. De belo efeito este quadro, é um verdadeiro episódio, doloroso, ligado à vida dos tavaredenses. Outro quadro, o 6º., mostra-nos com um sentido bairrista de agradável efeito cénico as “Marinhas de Tavarede” com os seus marnoteiros e as raparigas do sal que vão recebendo os cestos apenhados, cantando com afan, enquanto a embarcação de velas abaixo, deixa apenas o nu dos seus mastros vigorosos. Bom e sugestivo quadro. O 7º. quadro é preenchido com um característico onde impera uma leve comicidade – “Bruxidades e laranjas da China”. A Isabel Peixinha, figura regional confiada ao saber e experiência de Maria Teresa de Oliveira, imprimiu valor e firmeza em toda a actuação. O coro das laranjas é cheio de beleza, valorizando-o as interessantes raparigas e as indumentárias de surpreendente efeito. O quadro seguinte, o 8º. – “In Vino Veritas” presta-se a comentários dos intérpretes, fixando-se o humor do David Seco, desempenhado com grande naturalidade e perfeição por António Jorge da Silva.
         A finalizar o primeiro acto, o 9º. quadro “O jantar do Deão” que nos apresenta toda a submissão do povo apresentando as suas oferendas para o lauto jantar do Deão. Muita gente, muitas dádivas, muitos comentários e coro misto do povo de Tavarede. Quadro muito bem urdido e imaginado, motiva o fecho do primeiro acto. 


                                Chá de Limonete - Lamentos da vila de Tavarede
  
         O segundo acto tem mais beleza, muito embora o primeiro tenha valor e grandeza cénica. Vem então o 10º. quadro – “Lamentos da vila de Tavarede”, onde Violinda Medina representando a Vila, lamenta a perda da sua câmara que passou para a Figueira da Foz. Bem observado, este quadro tem alta significação e as agruras do povo justificam-se. Depois o 11º. quadro – “Fornos da Poia e Língua de Vaca” quadro que representa um grande forno em actividade onde o forneiro, figura típica desempenhada por António Jorge da Silva, espera com fernesi e nervosismo as mulheres que vão levar o pão à cosedura. Descomposturas, ralhos, justificações e cantigas para amenizar todos os contratempos. O 12º. quadro – “A colher das papas” é preenchido por um galante coro feminino, ricamente vestido, emoldurando-o uma lindíssima música como toda, da inspirada composição do maestro António Simões. Segue o 13º. quadro – “No tempo dos franceses”. Este quadro recheado de valor patriótico e elevado sentido de amor à Pátria e à liberdade, tem garra, tem valor excepcional quando João Cascão, heróico, fervente, quase revolucionário incita o povo para marchar sem medo, juntando-se ao bravo Zagalo que marcha de Coimbra para expulsar os franceses do Forte de Santa Catarina. Belas imagens, boas máscaras, belo trabalho que entusiasma. O 14º. quadro – “Saia balão” serve apenas para passar em rápida análise essa época distante e que também teve o seu aquartelamento em Tavarede. Vão bem os seus figurantes Maria da Conceição Santos e António Paula Santos. E a terminar o 2º. acto é apresentado o 15º. quadro “Brazão de Tavarede”. Lá está a grande Violinda Medina com as suas vestes de camponeza, enxada ao ombro, exaltando o brazão da terra – o trabalho do campo, enquanto todos os companheiros dormem a sesta, uma sesta que parece real, dada a disposição dos personagens, o seu àvontade, a “certeza de que estão dormindo”. E eleva o trabalho do campo e da enxada, o valor dos camponeses, em frases vigorosas firmes... até que eles despertam, raparigas e rapazes para cantarem a glória da terra e dos campos.






                                    Chá de Limonete - A colher das papas
  
         O terceiro acto apresenta-nos “Tavarede de hoje em dia” com o 16º. quadro – “Manuel da Fonte”, que serve de motivo aos lamentos do Ribeiro de Tavarede (António Paula Santos) em que as suas águas beijavam com alegria as pernas das lavadeiras. O 17º. quadro intitula-se “Civilização”, onde aparecem o indireita, o futebol, o fado e o teatro. Deste quadro merece especial referência o Fado, por Maria Almira Ferrão, uma bela voz, personificando a nossa Amália Rodrigues e em lugar de fundo o Teatro, por Manuel Nogueira, que actua primorosamente mostrando poder convencional.
         A história do Teatro em decadência, demonstra bem quanto é perito José da Silva Ribeiro, autor exclusivo de todo o recheio de “Chá de Limonete”. E Manuel Nogueira soube interpretar o pensamento do autor. Seguiu-se o 18º. quadro – “A Dinastia dos Toquins”, figuras típicas de Tavarede, ganhões que no carro e nos bois tiveram sempre o seu maior espelho. Bom trabalho de José Vigário, valorizado por um conjunto de carreiros num coro de bonito efeito. O 19º. quadro – “Potes Floridos”, faz a história dos ranchos da vila quando surgia o 1º. de Maio. Bom poema dito com elegância e modelação por Violinda Medina e a marcha das raparigas com seus potes barrados de lindas flores dos jardins de Tavarede. Lá está a tuna e a pandeireta dando veracidade ao quadro.
         Vem então o 20º. quadro – “O Palácio de Tavarede”. Todo ele é sublime; sóbrio, como verdugo desafiando o tempo e os homens, surge o portão do Palácio. Batem. Abre-se o monstro e a figura do Palácio de Tavarede aparece, gasta alquebrada, mutilada. Voz fraca e cançada pelas injustiças dos homens. E a evocação surge – cheio de emoção e de mágua pelo mal feito. Fernando Reis foi bem escolhido para o papel, desempenhando-o com magnífico acerto.
         Segue o 21º. quadro – “Nunca diz mal de ninguém”, quadro de interessante efeito, servindo-se para exaltar a água da Fonte de Tavarede, o encontro das sopeiras da Figueira com os magalas enquanto os murmúrios correm como lebres... nunca diz mal de ninguém. E as moças de Tavarede que ali se juntam, não têm namoro mas têm língua para a intriga. Quadro curioso que muito enriquece o trabalho de José Ribeiro.
         Estamos quase no final do espectáculo. 22º. quadro – “Foguetes” preenchido por Tavarede-marca, desempenhado por José Maria Cordeiro e pelo fogueteiro interpretado por António Jorge da Silva.
         Enquanto o primeiro exalta as qualidades da sua terra dando lugar de relevo, o fogueteiro anima-se com as festas e arraiais porque para tudo são precisos foguetes. Lá surgem belos comentários ao nosso Porto e Barra e as festas e mais festas, foguetes e mais foguetes e a barra... (não se sabe nada). O penúltimo quadro. 23º. – “Ti João da Quinta” feito por António Graça, muito bem medido, porque serve de motivo à crítica às inumeras contribuições que o lavrador tem de pagar. Por isso ele tem um filho na Universidade, estudando leis para orientar o pai nos pagamentos à Fazenda desde Janeiro a Dezembro.
         E finalmente o 24º. quadro. Um belo coro de flores e jardineiros – “Jardins do Limonete” em que se encerra este belo e primoroso espectáculo.
         Deixamos para o fim o primor executivo de todos os cenários de Rogério Reynaud e Manuel de Oliveira, este do Teatro Nacional D. Maria II e a partitura originalíssima e admirável devida à competência comprovada do compositor António Simões.
         O guarda-roupa de admirável efeito e os coros muito iguais contribuiram para o grande êxito da representação. Uma cortina de Alberto Lacerda, original e a carácter.

         Casa cheia. Ovações consecutivas. Primoroso trabalho que merece deixar a casca e, sem receio, correr outras terras, para confirmação do que me foi dito por José Ribeiro. A verdadeira função do teatro de amadores, que está como um documento sagrado na sua maneira adentro dos muros da Sociedade de Instrução Tavaredense merece, com este seu “Chá de Limonete” mostrar a outras terras e outras gentes que é isto o teatro de amadores em Portugal e cujas directrizes foram traçadas em Tavarede, uma risonha vila da Beira Litoral, e que devem servir de exemplo a todos os nossos amadores.

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