Também cabe aqui uma notícia sobre a
apresentação desta fantasia. Tavarede com
o seu grupo cénico e um valor a orientá-lo com aquela garra e paixão próprias
de quem conhece teatro, levou à cena uma luxuosa fantasia em 3 actos e 24
quadros – “Chá de Limonete”.
E o
que é este “chá” servido com as mais admiráveis porcelanas? Apenas um belíssimo
espectáculo de histórias de Tavarede, concebido e realizado por um homem de
elevada concepção, e desempenhada por um bloco sublime de amadores que, num
esforço sem palavras soube valorizar numa interpretação sublime todas as cenas
desse primoroso “chá” servido no próprio local da origem.
Desde
o “Sonho do Cavador” que a Sociedade Instrução Tavaredense tem feito teatro,
sem fugir à arte e à escolha. Fieis a tudo quanto de bom tem sido representado,
e escolhido para si esse bom para enriquecimento do seu vasto reportório, a
Sociedade não se poupa nunca a esforços para igualar tanto quanto possível as
melhores companhias de profissionais. E muitas vezes a sua interpretação
suplanta-os. E a confirmá-lo está a peça de Ramada Curto “Recompensa”.
Mas
vamos ao “Chá de Limonete”, aliás a razão fundamental desta nossa crónica.
Logo
ao subir o pano fica-se com uma sensação do agradável com o primeiro quadro
“Chá de Limonete”, onde não falta o chá e o açúcar, desempenho de graciosas
raparigas, e coros das chávenas do chá, conjunto de beleza visual, prejudicada,
como toda a peça, pelo restrito espaço destinado a representações de categoria
desta.
Segue-se
o segundo quadro – O soneto de Frei Manuel de Santa Clara, quadro que serve de
fio condutor durante toda a representação. João de Oliveira Júnior no Frei
Manuel que desce à terra – a Tavarede – para matar saudades e saber se tudo é
ainda como o havia deixado, - merece relevo especial assim como o Velho-Tavarede
na figura de Fernando Reis de primoroso desempenho e firme dicção; senhor
absoluto do seu papel, conserva durante todo o espectáculo a mesma calma e o
mesmo sentido de responsabilidade que lhe foi confiada. Logo depois o 3º.
quadro – “A cidade e o campo” – onde Violinda Medina – a jovem de sempre,
alegre e folgazã e o belo e firme trabalho de João Cascão, fazem o duo desta
partícula da peça. O 4º. quadro é preenchido pelo “Velho Tavarede” de que acima
falamos, a figura do pequeno burgo que tudo sabe como um livro aberto. Está-lhe
nos olhos e no coração toda a infância tavaredense e ele a explica e apresenta
a Frei Manuel de Santa Clara. Segue o 5º. quadro “A doação de Tavarede à Sé de
Coimbra”, bela imagem da história local com toda a sua pompa da época, onde o
rei D. Sancho e a rainha D. Dulce, desempenhado por Manuel Nogueira e Lucídia
Santos, ouvem da boca do notário do rei e perante fidalgos, bispos e
arcebispos, condes, mordomos, a doação de Tavarede. De belo efeito este quadro,
é um verdadeiro episódio, doloroso, ligado à vida dos tavaredenses. Outro
quadro, o 6º., mostra-nos com um sentido bairrista de agradável efeito cénico
as “Marinhas de Tavarede” com os seus marnoteiros e as raparigas do sal que vão
recebendo os cestos apenhados, cantando com afan, enquanto a embarcação de
velas abaixo, deixa apenas o nu dos seus mastros vigorosos. Bom e sugestivo
quadro. O 7º. quadro é preenchido com um característico onde impera uma leve
comicidade – “Bruxidades e laranjas da China”. A Isabel Peixinha, figura
regional confiada ao saber e experiência de Maria Teresa de Oliveira, imprimiu
valor e firmeza em toda a actuação. O coro das laranjas é cheio de beleza,
valorizando-o as interessantes raparigas e as indumentárias de surpreendente
efeito. O quadro seguinte, o 8º. – “In Vino Veritas” presta-se a comentários
dos intérpretes, fixando-se o humor do David Seco, desempenhado com grande
naturalidade e perfeição por António Jorge da Silva.
A
finalizar o primeiro acto, o 9º. quadro “O jantar do Deão” que nos apresenta
toda a submissão do povo apresentando as suas oferendas para o lauto jantar do
Deão. Muita gente, muitas dádivas, muitos comentários e coro misto do povo de
Tavarede. Quadro muito bem urdido e imaginado, motiva o fecho do primeiro acto.
Chá
de Limonete - Lamentos
da vila de Tavarede
O segundo acto tem mais beleza, muito
embora o primeiro tenha valor e grandeza cénica. Vem então o 10º. quadro –
“Lamentos da vila de Tavarede”, onde Violinda Medina representando a Vila,
lamenta a perda da sua câmara que passou para a Figueira da Foz. Bem observado,
este quadro tem alta significação e as agruras do povo justificam-se. Depois o
11º. quadro – “Fornos da Poia e Língua de Vaca” quadro que representa um grande
forno em actividade onde o forneiro, figura típica desempenhada por António
Jorge da Silva, espera com fernesi e nervosismo as mulheres que vão levar o pão
à cosedura. Descomposturas, ralhos, justificações e cantigas para amenizar
todos os contratempos. O 12º. quadro – “A colher das papas” é preenchido por um
galante coro feminino, ricamente vestido, emoldurando-o uma lindíssima música
como toda, da inspirada composição do maestro António Simões. Segue o 13º.
quadro – “No tempo dos franceses”. Este quadro recheado de valor patriótico e
elevado sentido de amor à Pátria e à liberdade, tem garra, tem valor
excepcional quando João Cascão, heróico, fervente, quase revolucionário incita
o povo para marchar sem medo, juntando-se ao bravo Zagalo que marcha de Coimbra
para expulsar os franceses do Forte de Santa Catarina. Belas imagens, boas
máscaras, belo trabalho que entusiasma. O 14º. quadro – “Saia balão” serve
apenas para passar em rápida análise essa época distante e que também teve o
seu aquartelamento em
Tavarede. Vão bem os seus figurantes Maria da Conceição
Santos e António Paula Santos. E a terminar o 2º. acto é apresentado o 15º.
quadro “Brazão de Tavarede”. Lá está a grande Violinda Medina com as suas
vestes de camponeza, enxada ao ombro, exaltando o brazão da terra – o trabalho
do campo, enquanto todos os companheiros dormem a sesta, uma sesta que parece
real, dada a disposição dos personagens, o seu àvontade, a “certeza de que
estão dormindo”. E eleva o trabalho do campo e da enxada, o valor dos
camponeses, em frases vigorosas firmes... até que eles despertam, raparigas e
rapazes para cantarem a glória da terra e dos campos.
Chá
de Limonete - A
colher das papas
O
terceiro acto apresenta-nos “Tavarede de hoje em dia” com o 16º. quadro –
“Manuel da Fonte”, que serve de motivo aos lamentos do Ribeiro de Tavarede
(António Paula Santos) em que as suas águas beijavam com alegria as pernas das
lavadeiras. O 17º. quadro intitula-se “Civilização”, onde aparecem o indireita,
o futebol, o fado e o teatro. Deste quadro merece especial referência o Fado, por
Maria Almira Ferrão, uma bela voz, personificando a nossa Amália Rodrigues e em
lugar de fundo o Teatro, por Manuel Nogueira, que actua primorosamente
mostrando poder convencional.
A
história do Teatro em decadência, demonstra bem quanto é perito José da Silva
Ribeiro, autor exclusivo de todo o recheio de “Chá de Limonete”. E Manuel
Nogueira soube interpretar o pensamento do autor. Seguiu-se o 18º. quadro – “A
Dinastia dos Toquins”, figuras típicas de Tavarede, ganhões que no carro e nos
bois tiveram sempre o seu maior espelho. Bom trabalho de José Vigário,
valorizado por um conjunto de carreiros num coro de bonito efeito. O 19º.
quadro – “Potes Floridos”, faz a história dos ranchos da vila quando surgia o
1º. de Maio. Bom poema dito com elegância e modelação por Violinda Medina e a
marcha das raparigas com seus potes barrados de lindas flores dos jardins de
Tavarede. Lá está a tuna e a pandeireta dando veracidade ao quadro.
Vem
então o 20º. quadro – “O Palácio de Tavarede”. Todo ele é sublime; sóbrio, como
verdugo desafiando o tempo e os homens, surge o portão do Palácio. Batem.
Abre-se o monstro e a figura do Palácio de Tavarede aparece, gasta alquebrada,
mutilada. Voz fraca e cançada pelas injustiças dos homens. E a evocação surge –
cheio de emoção e de mágua pelo mal feito. Fernando Reis foi bem escolhido para
o papel, desempenhando-o com magnífico acerto.
Segue o 21º. quadro – “Nunca diz mal de
ninguém”, quadro de interessante efeito, servindo-se para exaltar a água da
Fonte de Tavarede, o encontro das sopeiras da Figueira com os magalas enquanto
os murmúrios correm como lebres... nunca diz mal de ninguém. E as moças de
Tavarede que ali se juntam, não têm namoro mas têm língua para a intriga.
Quadro curioso que muito enriquece o trabalho de José Ribeiro.
Estamos quase no final do espectáculo.
22º. quadro – “Foguetes” preenchido por Tavarede-marca, desempenhado por José
Maria Cordeiro e pelo fogueteiro interpretado por António Jorge da Silva.
Enquanto o primeiro exalta as
qualidades da sua terra dando lugar de relevo, o fogueteiro anima-se com as
festas e arraiais porque para tudo são precisos foguetes. Lá surgem belos
comentários ao nosso Porto e Barra e as festas e mais festas, foguetes e mais
foguetes e a barra... (não se sabe nada). O penúltimo quadro. 23º. – “Ti João
da Quinta” feito por António Graça, muito bem medido, porque serve de motivo à
crítica às inumeras contribuições que o lavrador tem de pagar. Por isso ele tem
um filho na Universidade, estudando leis para orientar o pai nos pagamentos à
Fazenda desde Janeiro a Dezembro.
E finalmente o 24º. quadro. Um belo
coro de flores e jardineiros – “Jardins do Limonete” em que se encerra este
belo e primoroso espectáculo.
Deixamos para o fim o primor executivo
de todos os cenários de Rogério Reynaud e Manuel de Oliveira, este do Teatro
Nacional D. Maria II e a partitura originalíssima e admirável devida à
competência comprovada do compositor António Simões.
O guarda-roupa de admirável efeito e os
coros muito iguais contribuiram para o grande êxito da representação. Uma
cortina de Alberto Lacerda, original e a carácter.
Casa cheia. Ovações consecutivas.
Primoroso trabalho que merece deixar a casca e, sem receio, correr outras
terras, para confirmação do que me foi dito por José Ribeiro. A verdadeira
função do teatro de amadores, que está como um documento sagrado na sua maneira
adentro dos muros da Sociedade de Instrução Tavaredense merece, com este seu
“Chá de Limonete” mostrar a outras terras e outras gentes que é isto o teatro
de amadores em Portugal e cujas directrizes foram traçadas em Tavarede, uma
risonha vila da Beira Litoral, e que devem servir de exemplo a todos os nossos
amadores.
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