sexta-feira, 4 de abril de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 70

         Reparamos, agora, que tivemos uma enorme falha. Não se pode, nem deve, esquecer a magnífica campanha que a SIT levou a efeito, no ano de 1952, levando o seu teatro a diversas localidades do nosso concelho. O programa constava, além de uma pequena palestra pelo director cénico, da representação dos autos de Gil Vicente, Barca do Inferno e Mofina Mendes, da peça As três gerações. De notar que o produto líquido de cada representação reverteu a favor, integralmente, para a colectividade visitada, sendo de admitir que numa ou noutra localidade a visitar, dada a sua pequena população e a pobreza do meio, a receita não chegará para as despesas; mas nem mesmo esta circunstância impedirá a visita dos tavaredenses, pois o “déficit” que se verificar será coberto pela Sociedade de Instrução Tavaredense.

         Ainda no mesmo ano, comemorou-se o primeiro centenário da morte de Almeida Garrett. Estas comemorações, além da sede em Tavarede, também tiveram lugar na Figueira, Condeixa, Alhadas, Quiaios, Marinha Grande, Soure e Coimbra. Além do Frei Luís de Sousa, foi preparado um espectáculo com programa especial. Seria irrealizável se não contássemos com colaborações e dedicações valiosas. A tragédia “Catão” decorre em Útica, no ano 46 AC; “D. Filipa de Vilhena”, no século 17; “Um auto de Gil “Vicente”, no século 16 e “O Tio Simplício”, no século 19, em plena época do próprio Garrett. Veja a variedade e a riqueza do guarda-roupa, cenários e cabeleiras de cada época. O acto de Um auto de Gil Vicente passa-se a bordo da nau “Santa Catarina do Monte Sinai”, na antecâmara da que é já Duquesa de Sabóia, onde se encontra o rei D. Manuel, a infanta sua filha D. Beatriz e Bernardim Ribeiro, cujos amores lendários são o motivo da peça; o almirante da esquadra Conde de Vila-Nova; o Bispo de Targa; o velho Garcia de Rezende, que nos deixou descrição minuciosa daquele quadro da época manuelina; os embaixadores do Duque de Sabóia; Paula Vicente, a filha de Gil Vicente, apresentada por Garrett como grande intérprete na representação das obras vicentinas, etc. São quatro obras diferentes, com acção em quatro épocas diferentes, apresentadas num só programa, exigindo a presença de mais de 30 intérpretes, porque cada um deles não pode interferir em mais de uma peça. Isto bastará para se avaliar da complexidade 

Um auto de Gil Vicente

quantos problemas a resolver! – e da grandeza do empreendimento a que a Sociedade de Instrução Tavaredense se lançou, ensaiando um programa tão difícil e dispendiosa montagem. Alberto Anahory, que é uma autoridade em guarda-roupa histórico, está a tratar da indumentária com o seu belo gosto e sentido artístico; e o professor Manuel de Oliveira, artista consagrado na cenografia, estuda já os cenários a pintar, cujas “maquettes” em breve serão expostas. Estes dois artistas dão-nos colaboração preciosa, com uma simpatia que excede os limites de simples probidade profissional. Sem eles, e sem outras devoções carinhosas, não chegaríamos ao fim.

         E a nossa terra teve a honra de receber uma embaixada coimbrã, que aqui se deslocou propositadamente para homenagear a Sociedade de Instrução. Tavarede viveu no passado domingo, com a visita da embaixada que de Coimbra se deslocou para homenagear a Sociedade de Instrução Tavaredense, algumas horas de inefável alegria.
         Pouco antes das 4 horas, começou a juntar-se muito povo no Largo do Paço, para receber os visitantes, vendo-se ali os estandartes da Sociedade Filarmónica 10 de Agosto, Grupo Musical de Instrução Tavaredense e da Sociedade de Instrução Tavaredense. Chegada a caravana, constituída por mais de 20 automóveis conduzindo cerca de 100 pessoas, organizou-se um cortejo em direcção da sede da S.I.T., levando na frente a Filarmónica 10 de Agosto que, com a sua presença, muito contribuiu para o êxito da brilhante recepção.
         Ao longo do percurso, pendiam das janelas vistosas colchas, e, à passagem do cortejo, caíam sobre os visitantes pétalas de flores que sopradas pelo vento, em torvelinho, sugeriam a ideia duma maravilhosa chuva multicor.
         Chegados à S.I..T., realizou-se uma sessão solene, que aberta pelo sr. Rui Fernandes Martins, Presidente da Assembleia Geral da Sociedade homenageada, constituiu a mesa, à qual convidou a presidir o sr. dr. Elísio de Moura, nela tomando parte os srs. dr. Fernandes Martins, dr. Manuel dos Santos Duarte, dr. Celestino Maia, dr. Armando Boaventura, do Teatro dos Estudantes; Abílio dos Santos Júnior, José Castilho, do “Diário de Coimbra”; e António de Sousa, do “Despertar”. Depois de saudar os visitantes, o sr. Prof. Rui Martins prestou homenagem ao sr. dr. Elísio de Moura, afirmando que a Sociedade de Instrução Tavaredense se sentia altamente honrada com a sua presença.
         Falou em seguida o sr. dr. Fernandes Martins que pronunciou um discurso cheio de lirismo, focando vários aspectos do problema da assistência, tendo no final do seu discurso convidado o sr. dr. Elísio de Moura a descerrar uma lápide de que a embaixada coimbrã era portadora e que é uma réplica daquela com que a S.I.T. foi homenageada em Coimbra e se encontra colocada no salão nobre do Teatro Avenida, contendo a inscrição:
         “À Sociedade de Instrução Tavaredense nas suas Bodas de Ouro. Homenagem de: Asilo da Infância Desvalida; O Enxoval do Recém-Nascido; Associação de Socorros Mútuos dos Artistas, Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários; Delegação dos Inválidos do Comércio; Associação Protectora dos Diabéticos Pobres; Os empregados do Teatro Avenida”.
         Falou depois o advogado sr. dr. Roque Paim acerca do papel desempenhado pela S.I.T. em prole da beneficência e da cultura, sendo o seu discurso muito apreciado pela sua forma elegante e burilada.
         Seguiu-se no uso da palavra o sr. dr. Elísio de Moura, que se espraiou em considerações acerca da S.I.T. e da sua acção, dirigindo palavras de muito apreço ao sr. José Ribeiro, alma da Sociedade que se estava homenageando.
         Antes de encerrar a sessão o sr. Rui Fernandes Martins convidou o sr. José Ribeiro a dizer algumas palavras, tendo este traçado o perfil do sr. dr. Elísio de Moura e da sua obra, e afirmando a grande honra que constituía para Tavarede a presença de tão ilustre sábio na modesta sede da S.I.T.. E, assim, terminou esta brilhante e memorável sessão solene.
         Antes de se retirarem para Coimbra, foram os visitantes obsequiados com um “copo de água”, que serviu de pretexto para se trocarem amistosas saudações.

         E é chegada uma nova deslocação do grupo cénico. Há muitíssimo tempo que a Marinha Grande não recebia uma lição de bom teatro, e, caso curioso mas não único, essa lição foi-lhe dada magistralmente pelo nosso já conhecido, simpático e valoroso grupo cénico de Tavarede!
         No mais curto espaço que nos é possível, resumiremos:
         Festejou-se na noite de 30 de Outubro último, no Teatro Stephens, o centenário da morte de Almeida Garrett com a representação do seu drama imortal “Frei Luís de Sousa”, e, desse empreendimento difícil e assustador para muitos profissionais, encarregou-se corajosamente o “Grupo Cénico de Instrução Tavaredense”. Ele tomou conta do teatro, da peça Garrettiana e... do público!
         Abriu o espectáculo o exmo. sr. dr. Acácio de Calazans Duarte, Director do Teatro Stephens, que em breves palavras apresentou o grupo, fazendo a sua história desde a fundação até nossos dias. Depois o exmo. sr. José da Silva Ribeiro, Director do Grupo Cénico de Tavarede, numa brilhantíssima alocução, quase uma oração de sapiência, fez o elogio de Almeida Garrett, como homem, como político e como escritor, terminando por se referir à peça que se iria representar e ao modesto grupo disso encarregado, que, quanto a nós, será modesto nas suas figuras, mas grande na sua arte, disciplina e força de vontade! As suas palavras prenderam a assistência que as ouviu gostosamente e nós, que com prazer o ouviríamos largo tempo, gostaríamos até de saborear uma conferência sua sobre qualquer tema histórico e instrutivo. Depois, pelo nosso conterrâneo dr. José Henriques Vareda foi-lhe oferecido um artístico jarrão em vidro e pela menina Maria Madalena Monteiro Medina um lindo ramo de flores.
         Seguiu-se a representação de “Frei Luís de Sousa”.
         Sobre a peça não nos atrevemos tocar, pois é sobejamente conhecida e já nos foi apresentada em cinema. Só podemos acrescentar que é um mimo de literatura e construção.
         É puro Garrett e avisadamente andou a Direcção do SOM em trazer até nós esta agrupamento e esta deliciosa peça, e se alguém não foi vê-los não podendo ou não querendo, perdeu uma boa oportunidade para a vista e para o espírito, pois o saber não ocupa lugar...

 
                                       Frei Luís de Sousa – 1º acto

          A peça está rica e luxuosamente posta em cena, rigorosamente à época, tanto nos cenários belíssimos do mestre cenógrafo do Teatro D. Maria II, Manuel de Oliveira, como a indumentária de Alberto Anahory, rica e vistosa. Os vestidos de D. Madalena de Vilhena são alguma coisa de belo e de raro em teatro de amadores. O desempenho atingiu uma alta craveira artística, principalmente por parte da exma. srª D. Violinda Medina e Silva. Esta senhora que já conhecíamos de outras vezes que nos visitou, bem como seu marido(?) o sr. António Jorge da Silva, é uma artista na verdadeira acepção da palavra e que representa, sem exagero, como uma Amélia Rei Colaço ou como uma Palmira Bastos! É preciso vê-la para acreditar! A sua D. Madalena de Vilhena arrebatou o público, fazendo-o chorar e sofrer, nos lances mais dramáticos e trágicos da peça, e não sabemos se qualquer das artistas que mencionámos, o fariam melhor!
         No final do 2º acto e todos os 3º e 4º, até o pano descer, arrancou-nos os nervos, torceu-os, obrigou-nos a chorar e a viver consigo toda a imensa tragédia que Garrett escreveu! Parabéns, minha senhora!
         O sr. António Jorge da Silva em “Telmo Pais” deu-lhe réplica condigna e foi também um “grande actor”. Tudo nele esteve certo, venceu e convenceu. O sr. João Cascão em “Frei Luis de Sousa”, com um timbre de voz mais grave e mais cheia, seria um impecável Manuel de Sousa, mas, mesmo assim, foi subindo gradualmente até ao fim da peça em que nos deu o dramatismo requerido que nos comoveu e também convenceu! Óptimo!
         A jovem Maria Isabel Reis “Dona Maria de Noronha” evidenciou bastantes qualidades e poderá, de futuro, vir a ser uma bela “artista”. Um pouco indecisa a princípio, talvez uma questão de nervos, foi também subindo até ao trágido desfecho da peça, sendo na cena da morte uma digna discípula de seus mestres, imprimindo a essa cena lancinante a patética dor do desabar estrondoso de quatro vidas despedaçadas pela força do Destino! Muito bem, Maria Isabel! O “romeiro”, sr. Fernando Reis, também bastante bem. A sua frase “Ninguém!” a clássica frase que amedronta os artistas, foi bem pronunciada. A sua voz é a requerida. Só o achámos por vezes, ainda muito vigoroso, após tantas vicissitudes e trabalhos. Frei Jorge Coutinho – sr. João de Oliveira Júnior, foi um frade que atravessou a peça como se fosse um frade autêntico e nisso está o nosso melhor elogio e todo o mérito que poderia ter. Os restantes intérpretes srs. José Maria Cordeiro – Prior de Benfica -, António Paula Santos – um irmão converso -, António da Silva Coelho – Miranda -, José Vigário – Arcebispo de Lisboa -, Maria Teresa de Oliveira – Doroteia -, todos acertadamente nos seus papéis secundários, concorrendo muito para o bom êxito de “Frei Luís de Sousa”.
         Todas as cenas foram admiravelmente planeadas e executadas. Até aquelas em que seria fácil cair no ridículo, pela diferença da época em que vivemos, foram de forma a passar com naturalidade. O incêndio do 1º acto, muito bem, e principalmente a cena final da tragédia, passada no altar do Convento de S. Domingos, é uma chave de ouro no fim do espectáculo!
         Teve a grandiosidade religiosa requerida, a que não faltou o coro dos frades, acompanhado a orgão pela nossa conterrânea e também distinta amadora srª D. Maria Hermínia Roldão.
         O público marinhense, este nosso público por vezes tão frio e reservado, aplaudiu de pé e quando um público aplaude de pé é porque está salva a reputação dos intérpretes, das peças e a honra e o prestígio do Teatro Português!

         Ao “Grupo Cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense” um abraço de parabéns do público marinhense e o sincero desejo de em breve o podermos aplaudir novamente, porque serão sempre benvindos a esta laboriosa terra!

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