É que aquela Várzea é bem, neste dia, um altar onde as moças
poisam as melhores preces de seu amor feliz, e onde fazem as preces da sua
alegria venturosa. Reboam ali, naquele largo, pertinho da Fonte, cantigas
desfiadas por fieiras de oiro, correndo, como veios de água cantante e fresca,
cada vez mais felizes, cada vez com mais encantos.
E quando o sol se ergue para doirar a folhagem tenra dos
arbustos, a desafiar o viço e a roubar a frescura das rosas – manchas de neve,
pintas de oiro ou pontos vermelhos, sensuais, de fogo aveludado -, em que a
palidez da madrugada empresta às moças desaparece, para as fazer de olhar mais
perturbante, mais amoroso e mais feiticeiro, a ventura, a saúde, o prazer de
gosar a liberdade, de cantar e de viver, assim, à sôlta, - viver que não
extenua, que não cansa, que perturba e entontece, - então os corações erguem-e
mais altos, tão altos como a alegria juvenil da mocidade – tal qual como os
braços espinhosos das roseiras, e contam á água fresca que os cântaros levam, a
sua alegria que, por ser muita, é sempre pouca – tão curta é a hora feliz que
os venturosos julgam descuidadamente viver!
Pudessem muitos mentir, e na madrugada de amanhã, o riso a
florir nos lábios, a alma, lá dentro, a brincar contente, satisfeita e feliz,
ir até à Várzea, nos ranchos alados da mocidade, e dizer às rosas, no seu dia,
o que sentem e o que não podem dizer!... Se assim fôsse, todos seriamos
felizes, todos seriamos alegres, contentes, pelo menos, aparentemente. E as
rosas, no dia do seu culto, teriam, naturalmente, mais beleza, mais frescura e
mais perfume!...”.
Como referimos ao princípio, é com verdadeira teimosia que
se continua a querer recordar este costume na terra do limonete. Que o possa
ser por muito tempo, embora já estejamos crentes que as flores e o limonete já
serão insuficientes para ornamentar os potes. Julgamos que a melhor forma de
terminar a recordação deste uso e costume tavaredense será a transcrição duma
nota publicada, há cerca de cem anos, sobre a fonte da Várzea e o dia primeiro
de Maio.
“Meu amigo Carlos Dias
Sabes porque não te tenho escripto? Vagas
perguntas as minhas, por que, certamente, já adivinhas te que tem sido por
falta de dinheiro para a estampilha do correio. Desculpa, meu amigo. Não se
ouvia uma voz e estava sonora...
Ia falar-te da Varzea sem primeiro reproduzir o
que sinto. É o enthusiasmo ardente que me guia, um verdadeiro paraizo tudo o
que a natureza me mostra... Vê lá tu o ceu, esse azul que é tão intenso na
primavera, mesmo hoje com uma côr baça admiro-o mais do que nunca! Vejo-me hoje
innundado d’uma luz tão amiga, que, tudo o que posso alcançar com a vista, se
vem estampar no meu coração, exactamente como a imagem d’um anjo muito amado!
Olha, meu amigo, se eu não vivesse bezuntado na
pobreza das letras d’este seculo; se eu soubesse claramente o tempo em que
vivo, onde me encontro, retrataria, com todos os reflexos multicolores e as
pedrarias que resplandecem nos contos immortaes. Contudo, como alguma coisa vês
no teu amigo, dá, a esta carta, o valor que ella merece.
A Varzea é que eu não esqueço. Fui lá hoje, logo
ao raiar do dia e notei-a deserta, sem uma habitação, nem uma arvore. Vi que
foi creada n’um logar escolhido por Deus, porque, estre aquelles muros e rente
á terra, dá-nos um aspecto exipcio! Era muito cedo ainda quando lá cheguei.
Fiquei a contemplal-a por algum tempo. Depois, vi chegar uma moça esbelta, de
uns olhos tristes e brilhantes, de uns olhos de apaixonar um principe. Encheu a
bilha, e, embiocada, curvou-se ao ranger do queixume entrecortado que,
devagarinho, nos mostrava a corrente da agua crystalisada. Ajudei-a em seguida
a pôr a bilha á cabeça, e, dizendo-me ruborisada o seu “muito obrigadinho”, tomou de novo o seu caminho. Era morena e tinha
uns braços rijos e mui redondinhos, vi-lhos nús até ao cotovello!
Não esqueço, por largo tempo, a Varzea, crê, meu
amigo. Quasi que não sahia de lá, preso por um bruxedo guloso, e, o que mais me
apressou a retirar, foram as fitinhas de agua que cahiam do ceu semelhantes a
chumbo derretido. Se não fosse isto, havia de esperar por mais bilhas trazidas
por mãosinhas de riquissimas donzelas!
Tudo me falou com docilidade: o brando vento que
vinha de Tavarede, o chilrear dos passarinhos que saltitavam nas sebes, o resar
do Oceano que se ia já a perder por aquellas planicies.
Bem sabes, meu amigo, que sempre admirei as
fontes. Tantas tenho conhecido, algumas tão historicas que até uma rainha
venerou em tempos!
Quando trago á memoria duas fontes que conheço
desde o meu berço - a Portella e a Azambuja - afigura-se-me logo vêr, na Varzea
e junto ao filtrar da agua, pastores e namoradas a combinar o dia do casamento.
N’uma dessas fontes, na Azambuja, lavou as mãos a rainha D. Leonor.
Como eu saboreei e respeitei aquelle ar puro e
fresco á beira da fonte da Varzea!
Varzea. Varzea, falta-te o musgo que reverdece na
primavera; falta-te o sobreiro que ensombra nas tardes de um sol de fogo;
falta-te um poço predilecto dos espiritos sublimes, onde as cachopas da terra
possam mostrar-nos, descuidadas, a alvura dos seus virginaes seios... Mas nem
por isso deixas de ser a Varzea tão bemdita, quer na filtradinha bebida que nos
dás, quer na confiança que nos inspiras!
Oh! Quem tivesse conhecido a Varzea em tempos,
havia de se rir agora de mim, por querer engrandecel-a... Quando aquella
bicasinha brotava de entre as urzes e as giestas, decerto que a Varzea, com o
seu aspecto selvagem, havia de chamar-se preciosidade! Se tu ouvisses, meu
amigo, como eu ouvi, um côro de anjos tão melodioso e delicado a caminho da
Varzea, n’uma noite de luar, de segredos e attitudes, já não dormias!
Levantavas-te, como eu, para acompanhar o cortejo enfeitado de rosas e
laranjas, seguir de perto os canticos harmoniosos, sentir o incenso de todo
aquelle montão de virgens e flôres, e, por fim, beberes um copo da purissima
agua offerecida pelas mãos d’uma docissima Margarida!
O que restava da fonte
da Várzea antes
de ser destruída
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