Aproximava-se outro acontecimento da
mais alta importância para o teatro tavaredense, o Concurso Nacional do Teatro
Amador. Mas, antes de nos debruçarmos sobre este feito memorável, ainda
queremos recordar um apelo que a comissão promotora da obras da colectividade
fez. Aos sócios e simpatizantes desta
velha e prestigiosa colectividade da vizinha povoação de Tavarede foi
endereçado o seguinte apêlo que nos apraz divulgar, reservando para outra ocasião,
quando dispuzermos de mais largueza de espaço, o breve resumo da actividade
cultural e beneficente da SIT que acompanha a referida circular.
Eis o conteúdo dessa circular:
É já velha de alguns anos a aspiração
de ampliar e melhorar a sede da Sociedade de Instrução Tavaredense, de modo a
fazê-la corresponder às exigências e às responsabilidades duma actividade cada
vez mais ampla.A falta de recursos da associação e a extrema pobreza do meio
local não permitiram, porém, transformar aquela aspiração em realidade; e a
velha colectividade tavaredense tem permanecido no prédio que é a sua sede
desde a fundação, em instalações acanhadas, de há muito reconhecidas
insuficientes e impróprias, actuando o seu grupo cénico no mesmo pequeno teatro
de há 50 anos, com absoluta carência de espaço, de apetrechamento técnico e das
mais rudimentares condições de conforto, que são essenciais para a continuação
e desenvolvimento duma actividade social em que o teatro funciona como
instrumento de cultura, de recreio e de educação popular.
Mas esta situação não pode manter-se:
chegou o momento em que é imperioso adoptar uma solução definitiva, porque o
estado de quase ruína do actual edifício reclama obras urgentes.
Já devidamente aprovado pela Inspecção
Geral dos Espectáculos, possui a Direcção da Sociedade de Instrução Tavaredense
um projecto de transformação e ampliação da sede, que ficou devendo à
generosidade e simpatia com que o distinto arquitecto Exmo. Sr. Isaias Cardoso
sempre tem acompanhado a acção desta colectividade. É a este projecto que se
pretende dar execução.
A obra é importante, e o respectivo
orçamento atingirá cerca de Esc. 300 000$00. Mas a sua realização impõe-se, sem
o que não poderá prosseguir e desenvolver-se a acção cultural, educativa e
beneficente, de incontestável alcance social e patriótico, que torna altamente
honrosa a folha de serviços da SIT. O breve resumo que, em anexo, nos
permitimos oferecer à consideração de V.Exa., fala expressivamente do valor
dessa actividade, cujos benefícios alcançaram não apenas a população
tavaredense e o concelho da Figueira da Foz, mas também outras localidades do
país. Afigura-se-nos que esta actividade social de mais de meio século, levada
a efeito, aliás, com singela humildade mas com plena consciência dos seus
efeitos salutares, merece ser continuada e alargada.
É neste espírito que nos dirigimos a
todos os nossos consócios e também às pessoas a quem a actividade da SIT merece
simpatia e aplauso.
Constituiu-se uma Comissão que assina
este apelo, com o fim de promover a obtenção dos fundos necessários para a
execução do projecto superiormente aprovado. E, convencidos de que V.Exa.
desejará auxiliar-nos, pois lhe será grato contribuir para uma obra que dará à
velha colectividade tavaredense a possibilidade de prosseguir uma actividade
benemerente com a qual conquistou o louvor geral, vimos solicitar a sua ajuda,
que poderá ser-nos dada com donativos em dinheiro ou em materiais.
Confiadamente esperamos ser atendidos,
pelo que lhe rogamos a fineza de preencher o boletim junto; ou, se isso nos for
permitido, procuraremos pessoalmente V.Exa. para recebermos a resposta a este
nosso apelo.
Apresentando-lhe os nossos cumprimentos
e testemunhando-lhe sincero reconhecimento, temos a honra de nos subscrever
Logo que teve conhecimento daquele
concurso, a Direcção da Sociedade reuniu-se com todo o grupo cénico. Eis um
apontamento sobre esta reunião. O
director do grupo cénico, senhor José Ribeiro, expôs o seu ponto,
manifestando-se contrário à participação da SIT naquele concurso, prometendo,
no entanto, assumir as responsabilidades atribuidas no regulamento aos
ensaiadores dos grupos, se a Sociedade resolvesse concorrer. Após demorada
troca de impressões resolveu-se, não obstante o parecer contrário do director
cénico, que a SIT fizesse a sua inscrição.
Entretanto, e para comemorar o
cinquentenário da morte do poeta e dramaturgo D. João da Câmara, foi levada à
cena a comédia Os velhos. E foi com
esta peça que concorreram ao mencionado concurso, na categoria comédia,
escolhendo, para a categoria drama, Frei
Luís de Sousa.
Foi uma decisão acertadíssima. Após as
representações na sede, como provas de selecção, foi escolhida, para ir à fase
final, em Lisboa, a comédia Os velhos.
Em Fevereiro de 1959, a revista Plateia publicou uma entrevista feita ao
director cénico. - Quantos anos de
existência tem a vossa colectividade e a que modalidades se dedica?
- O artigo 1º dos nossos Estatutos
estabelece: “A Sociedade de Instrução Tavaredense, fundada em Tavarede em 15 de
Janeiro de 1904, é uma associação essencialmente destinada à instrução e
educação das classes populares”. E o artigo 2º diz: “Para realizar o seu
objectivo manterá na sua sede uma escola nocturna e gratuita em que se
ministrará o ensino primário”. Esta escola nocturna funcionou
ininterruptamente, com proveito notório da humilde população tavaredense, desde
a fundação da Sociedade, em 1904, até 1942. Possui também biblioteca, que
proporciona leitura domiciliária aos associados.
- Desde quando fazem teatro e qual o
critério que seguem na escolha do reportório?
- Pratica-se teatro desde o primeiro
ano da fundação da Sociedade, embora nos primeiros tempos esta actividade não
fosse constante. Nos últimos quarenta e dois anos, porém, sob a orientação do
mesmo director cénico, a actividade da secção tornou-se permanente. No artigo
3º dos Estatutos determina-se: “Como elementos educativos e de recreio terá uma
biblioteca e gabinete de leitura e utilizará o seu teatro, mantendo uma secção
dramática que se guiará por um regulamento elaborado pela Direcção”. Na
Sociedade de Instrução Tavaredense a actividade teatral não é propriamente a
que resulta da reunião de umas tantas pessoas com o fim de levarem à cena uma
peça: esta actividade tem carácter de permanência e é norteada por este
princípio estatutário: utilizar o teatro como instrumento de recreio e de
cultura.
Paralelamente com as representações
teatrais realizam-se palestras sobre teatro. E também se têm levado a efeito
espectáculos de características acentuadamente culturais.
Na orientação seguida na escolha do
reportório quase nunca temos em conta os resultados da bilheteira; instruir e
educar através do teatro só raramente corresponde a êxitos materiais. Sabendo
muito bem que as limitações de um grupo de amadores duma pequena aldeia o
impedem de lançar-se na montagem e interpretação de algumas das boas peças dos
teatros profissionais, recusamo-nos a pôr em cena alguns dos seus espectáculos
que são êxitos de bilheteira garantidos, mas que consideramos degradantes.
- Qual o número de intérpretes
femininos e masculinos tem?
- Não temos um número certo de
intérpretes. Na peça “A Conspiradora”, por exemplo, representada na época
anterior, os intérpretes foram vinte e dois. No “Chá de Limonete”, como em “Ana
Maria”, o número de intérpretes e figurantes subiu a quarenta. O recrutamento
faz-se, entre os habitantes da nossa aldeia, consoante as necessidades. Pode
dizer-se que todas as famílias têm tido representação no grupo cénico. O elenco
renova-se constantemente, sobretudo na parte feminina. As raparigas casam, e as
obrigações do lar não lhes permitem frequentar os ensaios. Só raramente as
amadoras que constituem família continuam a representar. Presentemente, há no
grupo cénico três admiráveis excepções. Os amadores que, pode dizer-se, sem
mantém em longa actividade, quase permanente, entrando em todas ou quase todas
as peças, serão uns quinze: nove masculinos e seis femininos.
- Quais são as dificuldades que mais os
têm tolhido e, por outro lado, quais os aspectos favoráveis à vossa acção?
- As dificuldades são muitas e
variadas: licenças e impostos que há muito deviam ter sido suprimidos, direitos
de autor pesadíssimos, censura e classificação dos espectáculos. A actividade
do grupo cénico da SIT só se mantém à custa de enormes sacrifícios, com muita
perseverança e coragem para continuar remando contra a maré do desinteresse e
do alheamento duma parte do público e das entidades de quem seria legítimo
esperar auxilio moral e ajuda material.
- A vossa casa de espectáculos está bem
apetrechada de material cénico? Possuem pessoal técnico habilitado?
- A nossa casa é pobríssima. Temos
projecto para ampliá-la e melhorar o seu equipamento. Faltam-nos recursos para
executá-lo. Todos aqui, desde o director e ensaiador até aos carpinteiros de
cena, são amadores.
- Têm algumas ideias sobre renovação do
reportório?
- Não podemos ter a pretensão de
conseguir reportório propositadamente escrito para amadores. Onde estão os
escritores que a tal se dediquem? Seria desejar o impossível. Não há outra
possibilidade senão recorrer a peças já representadas por profissionais. Nem
sequer podemos pensar em traduzir propositadamente peças estrangeiras ainda não
representadas no nosso país: as autorizações, licenças e direitos são
verdadeiramente impeditivos. O problema do reportório é grave no teatro
profissional, não pode deixar de o ser para os amadores.
- Mantém intercâmbio com grupos
congéneres? Quais?
- Temos visitado as sedes de várias
colectividades que têm teatro e grupo de amadores. No concelho da Figueira da
Foz levámos a efeito uma “campanha vicentina”: representámos autos de Gil
Vicente em várias localidades do concelho; e o mesmo se fez com a comemoração
do centenário de Garrett. Também na nossa sede temos recebido a visita de
alguns grupos de amadores, nomeadamente o Teatro dos Estudantes da Universidade
de Coimbra e o Grupo de Teatro Miguel Leitão, de Leiria, e ainda o grupo de
Quiaios (Grupo Instrução e Recreio de Quiaios).
- Quais as reacções do público perante
o vosso trabalho?
- O público reage sempre, nos nossos
espectáculos, com muito honrosa simpatia. Mas… o que sucede com o teatro
profissional sucede com o teatro amador: o público é hoje muito menor do que há
alguns anos atrás. Razões várias explicam este afastamento: umas, facilmente
removíveis, pois dependem exclusivamente de providências do estado e das
autarquias locais; outras mais difíceis de vencer, e que por isso mesmo
deveriam ser seriamente consideradas. Limitações impostas pelo Estado, errado
critério das autarquias locais que pretendem fazer receita com o teatro de
amadores, dificuldades económicas, mau gosto do público, às vezes lisongeado em
vez de ser corrigido, concorrência de outros espectáculos mais acessíveis e que
são de perniciosa influência no gosto artístico e na cultura do povo – tudo
isto afasta do teatro o povo que ao teatro não devia faltar. Os teatros ficam
desoladoramente vazios, por vezes quase desertos! Mas também de quando em
quando se esgota a lotação: ainda há pouco a maior casa de espectáculos da
cidade vizinha esgotou com uma revista má entre as piores, e com preços
elevados, para pouco depois o público deixar a casa… às moscas, num espectáculo
declamado de alta categoria artística, pela peça e pelo desempenho. E o mal da
cidade vai contagiando as vilas e aldeias: contam-se os espectadores pelos
dedos num espectáculo sério, digno, e poucos dias depois acorrem em grande
número só porque há cantigas e castanholas.
- Como encara o problema do teatro em
Portugal?
- O problema do teatro em Portugal não
pode ser resolvido isoladamente; outros problemas lhe estão ligados; e não se
esqueça de que há, principalmente, um problema de cultura.
- Quais os vossos planos futuros?
-
Os nossos planos futuros? Contentamo-nos com enunciar um programa: persistir
apesar de tudo, continuar remando contra a maré, não nos deixando vencer pelo
alheamento do público e alimentando sempre a esperança de que ele voltará.
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