A Conspiradora
É assim de resto e só assim, que se
operam “milagres” do género dos conseguidos pelos amadores de Tavarede.
“Milagres” que deixam sobretudo surpresos aqueles que pela sua craveira
intelectual, estão em melhores condições para lhes apreender, em toda a sua
extensão, o valor e significado.
Não pode pois com verdade dizer-se, que
na pobreza actual das suas manifestações culturais, nomeadamente no género
artístico, a Figueira não tenha presentemente quem lhe garanta uma projecção
muito acima do vulgar, pelo brilho e fulgor duma destacada e louvável actuação,
toda ela ao serviço da cultura popular, da benemerência e da divulgação do bom
teatro.
Ainda que para tal, como se verifica, a
cidade tenha de socorrer-se da subida valia e dos invulgaríssimos méritos do
grupo cénico de modesta aldeia do seu termo.
Para seu lustre e justa fama perante
estranhos.
E confrangedora humilhação aos próprios
olhos.
Não fosse o “milagre” de Tavarede a
condenação mais formal da indolente apatia que, em flagrante contraste, há
muito invadiu e domina a cidade…
E
após as habituais deslocações a Coimbra e a Tomar, o grupo cénico foi, pela
primeira vez a Torres Novas. Conforme
havia sido noticiado, veio no passado dia 27 do mês findo a esta Vila para dar
um espectáculo no Teatro Virginia em homenagem à Comissão de Honra do Virgínia,
Clube Desportivo de Torres Novas e Grupo de Senhoras Dirigentes da Colónia
Infantil de Férias, o Grupo Cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense que
chegou ao Largo do Paço cerca das 19 horas. Aguardavam-no, a Banda Operária
Ribatejana, Bombeiros Voluntários e muito povo. Dali, o cortejo dirigiu-se à
Câmara Municipal onde os componentes do Grupo Cénico foram recebidos pelo sr.
Presidente, Vereadores e outras entidades. O sr. dr. Alves Vieira
apresentou-lhes as boas vindas, a que o orientador e ensaiador do simpático
grupo, sr. José Ribeiro, agradeceu.
À noite,
com o nosso excelente Teatro repleto, realizou-se o espectáculo. Antes, porém,
mais uma vez, falou o sr. Presidente da Câmara que fez o elogio do Grupo Cénico
de Tavarede. O sr. José Lopes dos Santos dirigiu também algumas palavras de
saudação em nome dos antigos amadores torrejanos e recitou um soneto dedicado
ao Grupo de Tavarede e ofereceu-o ao sr. José Ribeiro. O Presidente do Clube
Desportivo, sr. Manuel Vences entregou uma lembrança. Por fim, agradeceu o sr.
José Ribeiro em nome do Grupo Cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense,
todas as provas de simpatia dispensadas desde a chegada, e, num empolgante
improviso, falou das belezas de Torres Novas, da grande obra que é aquele
Teatro que os seus olhos contemplavam e enalteceu as qualidades dos torrejanos.
E imediatamente principiou a representação da peça “A Conspiradora”, a que o
nosso colaborador F.F. faz a seguir as suas apreciações.
Conhecendo já, de tradição, o grupo cénico
da Sociedade de Instrução Tavaredense e, informados – quer por leitura de
notícias críticas publicadas na imprensa quer por referências orais que me
foram feitas por pessoas que assistiram a alguns dos espectáculos promovidos
por esse Grupo – da qualidade, merecimento, importância e significado da obra
levada a cabo pelo seu director artístico, o jornalista José Ribeiro, foi com
alertado interesse e em alvoroçada expectativa que nos dirigimos no passado
sábado ao Teatro Virgínia para assistirmos à representação de “A Conspiradora”.
Devemos
dizer, antes de mais, em homenagem à verdade, que esse interesse teve uma
compensação positiva e essa expectativa não foi iludida nem ludibriada. De
facto, valeu a pena ir ao Virgínia ver e ouvir o grupo de Tavarede!
Diremos
mais: - Dos conjuntos de teatro de amadores que já vimos actuar, tais como o
Grupo Dramático Lisbonense quando ainda era dirigido pela malograda e
inolvidável Manuela Porto e o Grupo Dramático da “Sociedade de Instrução
Guilherme Cossul” orientado por Jacinto Ramos (hoje director do Teatro
Experimental de Lisboa), aquele que, a nosso ver, traduz e consubstancia um
maior mérito cultural é, sem dúvida, o agrupamento de que José Ribeiro é o
grande animador.
Não por
ser o mais homogéneo, disciplinado e coeso. Não, também, por possuir um mais
elevado grau de afinação artística, de maturidade interpretativa, de
consciência teatral, de equilíbrio cénico.
Muito
menos pela superioridade intrínseca dos textos dramáticos que constituem o seu
repertório.
Tão-pouco
pela maior justeza técnica, audácia intelectual, sentido rítmico, originalidade
formal, poder imaginativo, consistência interna das suas encenações (neste
particular, Manuela Porto, rasgou amplas e fecundas perspectivas no Grupo
Dramático Lisbonense que foram, de modo algum, aproveitadas, continuadas e até
enriquecidas pelo Teatro Experimental do Porto da direcção de António Pedro).
O que,
em nosso entender confere ao Grupo Cénico de Tavarede um significado e um
alcance pedagógico-culturais ainda não logrados em associações congéneres é o
facto de o referido grupo ter surgido numa pequena aldeia, portanto num
reduzido aglomerado populacional e ali recrutar os seus elementos e, ainda,
nesse meio rural, encontrar o público bastante (em número, em devotamento e em
compreensão) para apoiar e proteger, moral e materialmente, os seus
empreendimentos teatrais.
Eis o
que se nos afigura singular, admirável, único, na geografia cultural do nosso
país.
Que
prodigiosa escola de cultura popular, de pedagogia social, de educação
estética, de convivência cívica, de cooperação humana ergueu José Ribeiro em
Tavarede com o seu grupo de amadores teatrais, onde os instintos se sublimam,
os sentimentos se enobrecem, os impulsos naturais se refreiam, as forças inatas
do espírito se desenvolvem, os recursos da inteligência se valorizam, as
virtualidades artísticas da sensibilidade se consciencializam, tudo dentro duma
disciplina, livremente consentida, duma convergência voluntária de esforços, de
um trabalho colectivo, desinteressado, heróica e despretenciosamente efectuado;
disciplina, convergência, trabalho estes que sobre as tábuas de um palco
assumem uma harmoniosa e construtiva expressão de paz espiritual, de saúde
mental, de beleza plástica e vivência emotiva.
Que dizer
do nível da representação de “A Conspiradora” no passado dia 27 de Abril?
Dizer
que esse nível foi óptimo, excelente, impecável, seria mentir desnecessária e
inutilmente e, além do mais prestar um mau serviço ao grupo de Tavarede.
Mas, sem
sombra de complacência ou ponta de exagero, podemos tranquilamente afirmar,
seguros de que ninguém nos contestará a asserção, que tal nível foi francamente
satisfatório se não nos esquecermos (e não o devemos honestamente fazer) que os
rapazes e as raparigas que vimos representar no Virgínia a peça de Vasco
Mendonça Alves não só são amadores, mas também e, muito principalmente, são
homens e mulheres de modesta condição social (quase todos eles operários) e de
escassa instrução.
De uma
maneira geral, todos os intervenientes na representação da peça possuem uma
dicção correcta, uma articulação e colocação de voz aceitável que, embora
apresentando deficiências e quebras, muito raramente caiem na melopeia
silábica, num enfatuamento declamatório, na tonitruância oratória.
Quase
todos com jogo fisionómico expressivo (alguns até, forçando a nota, acentuando
caricaturalmente o recorte já de si pitoresco e anedótico de certas personagens
– por exemplo: - o cónego Raimundo, Governo, A Morgada de Loures).
Há que
destacar, porém, por um acto de justiça, os amadores que encarnam os
personagens da Marquesa do Souto dos Arcos, de Clara e do Padre António, que
deram mostras duma capacidade histriónica e de uma desenvoltura interpretativa
pouco vulgar entre amadores.
Quanto à
peça, achamo-la, para nosso gosto, pobre de miolo dramático, frouxa de
autêntica teatralidade e de coerente acção dialogal, aliterada e de indigesta
dialéctica verbalística, superficial e demagógica no tocante ao seu conteúdo
ideológico, demasiadamente descritiva e retoricamente (tão só, não mais!)
evocadora dum acontecimento histórico que merecia e consentia um mais hábil,
flexível, penetrante e consequente tratamento cénico.
Terminando, formulamos um voto de
esperança: - é o de que, muito em breve, existam em Portugal, disseminados
pelas suas cidades, vilas e aldeias, muitos grupos de teatro de amadores que
seguindo o exemplo do de Tavarede desmintam aqueles que, com certa razão,
melancolicamente o reconhecemos, afirmam que o movimento associacionista entre
nós quase sempre se vem confinando aos clubes desportivos.
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