sexta-feira, 2 de maio de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 74

               
A Conspiradora 


          É assim de resto e só assim, que se operam “milagres” do género dos conseguidos pelos amadores de Tavarede. “Milagres” que deixam sobretudo surpresos aqueles que pela sua craveira intelectual, estão em melhores condições para lhes apreender, em toda a sua extensão, o valor e significado.
         Não pode pois com verdade dizer-se, que na pobreza actual das suas manifestações culturais, nomeadamente no género artístico, a Figueira não tenha presentemente quem lhe garanta uma projecção muito acima do vulgar, pelo brilho e fulgor duma destacada e louvável actuação, toda ela ao serviço da cultura popular, da benemerência e da divulgação do bom teatro.
         Ainda que para tal, como se verifica, a cidade tenha de socorrer-se da subida valia e dos invulgaríssimos méritos do grupo cénico de modesta aldeia do seu termo.
         Para seu lustre e justa fama perante estranhos.
         E confrangedora humilhação aos próprios olhos.
         Não fosse o “milagre” de Tavarede a condenação mais formal da indolente apatia que, em flagrante contraste, há muito invadiu e domina a cidade…

E após as habituais deslocações a Coimbra e a Tomar, o grupo cénico foi, pela primeira vez a Torres Novas. Conforme havia sido noticiado, veio no passado dia 27 do mês findo a esta Vila para dar um espectáculo no Teatro Virginia em homenagem à Comissão de Honra do Virgínia, Clube Desportivo de Torres Novas e Grupo de Senhoras Dirigentes da Colónia Infantil de Férias, o Grupo Cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense que chegou ao Largo do Paço cerca das 19 horas. Aguardavam-no, a Banda Operária Ribatejana, Bombeiros Voluntários e muito povo. Dali, o cortejo dirigiu-se à Câmara Municipal onde os componentes do Grupo Cénico foram recebidos pelo sr. Presidente, Vereadores e outras entidades. O sr. dr. Alves Vieira apresentou-lhes as boas vindas, a que o orientador e ensaiador do simpático grupo, sr. José Ribeiro, agradeceu.
         À noite, com o nosso excelente Teatro repleto, realizou-se o espectáculo. Antes, porém, mais uma vez, falou o sr. Presidente da Câmara que fez o elogio do Grupo Cénico de Tavarede. O sr. José Lopes dos Santos dirigiu também algumas palavras de saudação em nome dos antigos amadores torrejanos e recitou um soneto dedicado ao Grupo de Tavarede e ofereceu-o ao sr. José Ribeiro. O Presidente do Clube Desportivo, sr. Manuel Vences entregou uma lembrança. Por fim, agradeceu o sr. José Ribeiro em nome do Grupo Cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, todas as provas de simpatia dispensadas desde a chegada, e, num empolgante improviso, falou das belezas de Torres Novas, da grande obra que é aquele Teatro que os seus olhos contemplavam e enalteceu as qualidades dos torrejanos. E imediatamente principiou a representação da peça “A Conspiradora”, a que o nosso colaborador F.F. faz a seguir as suas apreciações.
Conhecendo já, de tradição, o grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense e, informados – quer por leitura de notícias críticas publicadas na imprensa quer por referências orais que me foram feitas por pessoas que assistiram a alguns dos espectáculos promovidos por esse Grupo – da qualidade, merecimento, importância e significado da obra levada a cabo pelo seu director artístico, o jornalista José Ribeiro, foi com alertado interesse e em alvoroçada expectativa que nos dirigimos no passado sábado ao Teatro Virgínia para assistirmos à representação de “A Conspiradora”.
         Devemos dizer, antes de mais, em homenagem à verdade, que esse interesse teve uma compensação positiva e essa expectativa não foi iludida nem ludibriada. De facto, valeu a pena ir ao Virgínia ver e ouvir o grupo de Tavarede!
         Diremos mais: - Dos conjuntos de teatro de amadores que já vimos actuar, tais como o Grupo Dramático Lisbonense quando ainda era dirigido pela malograda e inolvidável Manuela Porto e o Grupo Dramático da “Sociedade de Instrução Guilherme Cossul” orientado por Jacinto Ramos (hoje director do Teatro Experimental de Lisboa), aquele que, a nosso ver, traduz e consubstancia um maior mérito cultural é, sem dúvida, o agrupamento de que José Ribeiro é o grande animador.
         Não por ser o mais homogéneo, disciplinado e coeso. Não, também, por possuir um mais elevado grau de afinação artística, de maturidade interpretativa, de consciência teatral, de equilíbrio cénico.
         Muito menos pela superioridade intrínseca dos textos dramáticos que constituem o seu repertório.
         Tão-pouco pela maior justeza técnica, audácia intelectual, sentido rítmico, originalidade formal, poder imaginativo, consistência interna das suas encenações (neste particular, Manuela Porto, rasgou amplas e fecundas perspectivas no Grupo Dramático Lisbonense que foram, de modo algum, aproveitadas, continuadas e até enriquecidas pelo Teatro Experimental do Porto da direcção de António Pedro).
         O que, em nosso entender confere ao Grupo Cénico de Tavarede um significado e um alcance pedagógico-culturais ainda não logrados em associações congéneres é o facto de o referido grupo ter surgido numa pequena aldeia, portanto num reduzido aglomerado populacional e ali recrutar os seus elementos e, ainda, nesse meio rural, encontrar o público bastante (em número, em devotamento e em compreensão) para apoiar e proteger, moral e materialmente, os seus empreendimentos teatrais.
         Eis o que se nos afigura singular, admirável, único, na geografia cultural do nosso país.
         Que prodigiosa escola de cultura popular, de pedagogia social, de educação estética, de convivência cívica, de cooperação humana ergueu José Ribeiro em Tavarede com o seu grupo de amadores teatrais, onde os instintos se sublimam, os sentimentos se enobrecem, os impulsos naturais se refreiam, as forças inatas do espírito se desenvolvem, os recursos da inteligência se valorizam, as virtualidades artísticas da sensibilidade se consciencializam, tudo dentro duma disciplina, livremente consentida, duma convergência voluntária de esforços, de um trabalho colectivo, desinteressado, heróica e despretenciosamente efectuado; disciplina, convergência, trabalho estes que sobre as tábuas de um palco assumem uma harmoniosa e construtiva expressão de paz espiritual, de saúde mental, de beleza plástica e vivência emotiva.
         Que dizer do nível da representação de “A Conspiradora” no passado dia 27 de Abril?
         Dizer que esse nível foi óptimo, excelente, impecável, seria mentir desnecessária e inutilmente e, além do mais prestar um mau serviço ao grupo de Tavarede.
         Mas, sem sombra de complacência ou ponta de exagero, podemos tranquilamente afirmar, seguros de que ninguém nos contestará a asserção, que tal nível foi francamente satisfatório se não nos esquecermos (e não o devemos honestamente fazer) que os rapazes e as raparigas que vimos representar no Virgínia a peça de Vasco Mendonça Alves não só são amadores, mas também e, muito principalmente, são homens e mulheres de modesta condição social (quase todos eles operários) e de escassa instrução.
         De uma maneira geral, todos os intervenientes na representação da peça possuem uma dicção correcta, uma articulação e colocação de voz aceitável que, embora apresentando deficiências e quebras, muito raramente caiem na melopeia silábica, num enfatuamento declamatório, na tonitruância oratória.
         Quase todos com jogo fisionómico expressivo (alguns até, forçando a nota, acentuando caricaturalmente o recorte já de si pitoresco e anedótico de certas personagens – por exemplo: - o cónego Raimundo, Governo, A Morgada de Loures).
         Há que destacar, porém, por um acto de justiça, os amadores que encarnam os personagens da Marquesa do Souto dos Arcos, de Clara e do Padre António, que deram mostras duma capacidade histriónica e de uma desenvoltura interpretativa pouco vulgar entre amadores.
         Quanto à peça, achamo-la, para nosso gosto, pobre de miolo dramático, frouxa de autêntica teatralidade e de coerente acção dialogal, aliterada e de indigesta dialéctica verbalística, superficial e demagógica no tocante ao seu conteúdo ideológico, demasiadamente descritiva e retoricamente (tão só, não mais!) evocadora dum acontecimento histórico que merecia e consentia um mais hábil, flexível, penetrante e consequente tratamento cénico.

         Terminando, formulamos um voto de esperança: - é o de que, muito em breve, existam em Portugal, disseminados pelas suas cidades, vilas e aldeias, muitos grupos de teatro de amadores que seguindo o exemplo do de Tavarede desmintam aqueles que, com certa razão, melancolicamente o reconhecemos, afirmam que o movimento associacionista entre nós quase sempre se vem confinando aos clubes desportivos.

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