quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

RECORDAÇÕES DE TAVAREDE


Afinal estas minhas narrações teem ido a mais longe do que pensavamos, distrahidos pelas recordações, de tempos que não voltam mais, e de factos que difficilmente se repetirão.


No entanto ligamo-nos quanto possivel á descripção das impressões que iamos sentindo; vertiginosamente, á medida que avançamos no percurso da povoação que nos prestou assumpto.


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Fronteira á casa da tia Maria Bretôa, encontra-se ainda, com a apparencia primitiva, a casa do fallecido Manuel Jorge da Silva, algumas vezes ponto de reunião dos rapazes e raparigas do logar, que, ao descahir da tarde, depois dos jogos de pella do domingo, para ali iam dar-se ao goso da dansa.


Manuel Jorge da Silva era um velho extremamente serio, muito metido consigo, mais ou menos intelligente, a quem chamavam Manuel Sapateiro, porque em tempo havia exercido o officio.


Com a convivencia de uma ou outra pessoa illustrada, chegou a ter uns conhecimentos praticos que o distinguiram de muitos que ali habitavam.


Em 1858 foi chamado para escripturario da secretaria das obras da barra d’esta cidade, logar que desempenhou durante trinta e tantos annos com pontualidade e honradez.


Para entreter-se com os rapazes do sitio tinha a paciencia de á noite ir-lhe servir de ponto nos ensaios theatrais.


Aos domingos, ia pelas cercanias de Tavarede gastar o tempo, em visita ao seu serrado e à sua terra da Matheôa, sendo n’esta occasião que a familia concedia licença para se poder dansar na loja da habitação.


Em elle chegando, a um aviso combinado, tudo parava. Muitas vezes fazia que não tinha ouvido ou visto. Entrava para casa, gravemente; cortejava quem estava e subia para o andar superior a descançar das fadigas do seu costumado passeio dominical.


Morreu ha cerca de quatro annos, n’uma edade avançada, bemquisto de todas as pessoas que o conheciam.


Pelo lado do poente da casa que acabamos de mencionar, corre direita ao norte uma travessa, denominada do rio Velho, que vem acabar na rua Direita. Dizia-se e diz-se na localidade que por ella passava um rio, naturalmente um ribeiro ou regato que ia lançar as suas aguas sobre a planicie que se estende ao sul de Tavarede juntando-se a outros, que formam o ribeiro que vem desaguar ainda hoje ao pé do Matadouro, ao nascente d’esta cidade.


A travessa do Rio Velho, que dá communicação á rua de Traz e tambem para o alto do Terreiro, ao norte da povoação, attesta, com o mau estado do seu pavimento, o pouco cuidado ou desleixo que tem havido nas corporações municipaes, deixando-a assim, quasi intransitavel, apresentando contudo, a espaços, e raros como oasis no deserto, uns monticulos de pedra, a denunciarem calçada, que poderia ter existido ha um seculo ou mais.


E não exageramos... É vêr e crêr.


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Sobranceira á povoação e ao largo aonde a travessa vae dar, está a casa de Ourão, reformada na sua antiguidade e aonde o fallecido capitalista o sr. João José da Costa, então habitante do palacete dos Condados, fez construir um razoavel theatro, grande relativamente á importancia da povoação e alindado por dentro na linha dos mais modernos.


Chegou ainda a abrir-se para a exhibição de alguns espectaculos desempenhados por gente da terra, aonde encontrava, a par do recreio, umas luzes de conhecimentos, apanagio inseparavel de divertimentos d’esta ordem.


Alguns desgostos, originados no progredimento de tão louvavel instituição, fizeram fraquejar-lhe a sua energia e boa vontade e o theatro fechou d’uma vez, estando hoje n’elle de habitação o nosso amigo João dos Santos, procurador da casa do fallecido proprietario.


E falando ainda no extincto sr. Costa, devemos dizer que muito em melhoramentos lhe ficou devendo a povoação e freguezia de Tavarede, pois que, a sua posição de politico activo e intelligente lhe facilitava os meios de conseguir o que desejasse.


Tentou tambem conseguir o encanamento do ribeiro que corre junto á egreja, dando ao seu leito uma direcção mais recta e conveniente, não o conseguiu porém, porque a morte se lhe interpôz no caminho da tentativa.


Agora, parece, que a Junta de Parochia pretende levar a effeito tal modificação, tendo mandado já para esse effeito levantar a respectiva planta. (Gazeta da Figueira - 15.04.1896)

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