sexta-feira, 28 de março de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 69

         Não vamos descrever todo o programa levado a efeito. Teve a colaboração, por exemplo, do Orfeão de Leiria, do Grupo de Teatro Miguel Leitão, do Teatro dos Estudantes de Coimbra, com teatro e com a tradicional serenata. O espectáculo de gala foi com a representação, pelo nosso grupo, da peça Serão homens amanhã.  Na véspera, foi apresentado e posto à venda o livro ’50 Anos ao Serviço do Povo’, da autoria de Mestre José Ribeiro.

         A sessão solene foi um acto brilhante, que teve a presidi-la o Professor Doutor Joaquim de Carvalho,  um dos maiores vultos culturais de sempre da Figueira.



                                         Sessão solene das Bodas de Ouro                                                                                         
          E não se pode esquecer um dos actos comemorativos que mais emocionou. Um espectáculo preparado pelo director cénico, levou à cena a primeira peça que o grupo da Sociedade representou, a comédia Os medrosos, a que se seguiu Revivendo o passado. Nos passados dias 23 e 24, a SIT viveu mais duas noites de inesquecível alegria, com a apresentação do anunciado espectáculo de Evocação.
Tivemos o ensejo e o prazer de ver representar, com um à vontade de causar inveja a muitos novos, antigos amadores desempenhando papeis que criaram, alguns há mais de 40 anos.
         Foi com verdadeira emoção e ternura que o público viu aparecer no palco as figuras remoçadas de Helena Figueiredo, Idalina Fernandes, Emília Fadigas, Maria José Figueiredo, António Coelho, António Graça, Francisco Carvalho e outros, a quem dispensou calorosas salvas de palmas, à medida que iam entrando em cena. Nos finais de acto caíam sobre o tablado verdadeiras chuvas de flores, lançadas por algumas senhoras da assistência.
 Serviu de comentador ao espectáculo o sr. José da Silva Ribeiro, que antes de iniciar-se a representação de cada acto falou das peças a que pertenciam, fazendo a apresentação dos antigos, a quem saudou comovidamente, e dos novos amadores que iriam representá-los. Evocou também velhas figuras da cena tavaredense, como os irmãos Broeiros e tantos outros que, certamente, se pertencessem ainda ao número dos vivos, não deixariam, de estar presentes nessas duas inolvidáveis noites de saudade. Foram revividas cenas de Os amores de Mariana, O sonho do cavador e A cigarra e a formiga.

         Certamente todos se recordarão que, aquando procurámos contar o associativismo em Tavarede na década de 1920, e ao referirmo-nos ao Grupo Musical, considerámos aqueles anos como dourados, para esta associação. Na verdade, com o seu grupo cénico recheado de talentosos amadores e com a sua afamada tuna, considerada uma das melhores e mais bem organizadas tunas desta região, foram anos triunfais, que só acabaram pelas circunstâncias que então narrámos.

         A Sociedade de Instrução, no entanto, e graças ao grupo dramático e, acima de tudo, devido à competência e saber do seu director cénico, igualmente teve os seus períodos triunfantes, ou, como costumamos dizer, também teve os seus tempos dourados. Com as suas operetas e fantasias, com o teatro popular e tão do agrado das gentes tavaredenses, recordamos o teatro extraído da obra de Júlio Diniz, e com a escolha de tantas peças, que acabaram por ter êxitos retumbantes, o teatro de Tavarede, então só representado pelo grupo da Sociedade, alcançou uma projecção extraordinária. E, não é de mais referir, sempre com a missão admirável da beneficência.

         Mas a verdade é que o referido director cénico soube rodear-se de um grupo de amadoras e amadores, fervorosos entusiastas do palco, que, com o seu talento e experiência, originaram um conjunto cénico de categoria acima do normal e que foram verdadeira referência no teatro amador nacional. E disso daremos provas lá mais adiante. Lógico é, portanto, que nos debrucemos mais sobre esta colectividade, sobretudo neste período, sem deixarmos de elogiar as congéneres da freguesia, que prosseguiam, com os seus recursos, na sua missão educativa e recreativa. Vejamos, agora, uma nota referente a mais uma ida a Coimbra. Depois de um largo interregno teatral as luzes da ribalta da nossa única sala de espectáculos voltaram a acender-se.
         Sobre as tábuas actuaram os dois mais representativos grupos de amadores de Teatro do nosso distrito: O Teatro dos Estudantes e o Grupo Cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense.
         A primeiro, pela boca do seu presidente, estudante Anselmo Ventura, afirmou a sua presença ali como dupla homenagem: à obra do Dr. Elísio de Moura e aos cinquenta anos de intenso e honrado labor do conjunto tavaredenses.
         Representaram os estudantes a “Suplica de Cananeia”. Interpretou o belo quadro vicentino a estudante Cândida Clavel do Carmo que soube comunicar todo o dramatismo da Cananeia através duma linguagem cheia de emoção interior e duma gesticulação simples mas expressiva.
         A extensão do papel, dominado sem auxilio de ponto, fê-la por vezes distrair do crescendo de potencial dramático que o papel impõe, mas não há dúvida que a interpretação em bloco, constitui óptima revelação de aptidões, atendendo às dificuldades extraordinárias que envolvem o texto vicentino e principalmente a imobilidade da figura.
         A voz de Cristo, clara e penetrante, fez-se ouvir num ambiente que não era, positivamente, de silêncio.
         Disse com mestria mas parece não ser aconselhável dispensar o microfone dado o tamanho da sala, o barulho constante dos retardatários e, até por virtude duma maior diferenciação entre o humano e o sobrenatural.
         A Sociedade de Instrução Tavaredense, depois dum largo intervalo, apresentou a peça argentina de Dartes & Damiel: “Serão Homens Amanhã”; a tradução foi feita pelos conhecidos escritores revisteiros Fernando Santos e Almeida Amaral.
         Temos a impressão nítida, que Dartes & Damiel foram imensamente prejudicados na versão portuguesa e que a principal vítima no espectáculo foi João Cascão.
         Efectivamente o desenvolvimento da acção passa-se normalmente em relação a todos os personagens com excepção daquela que é o fulcro, à roda da qual tudo gira; simplesmente da normalidade de todos e da anormalidade de um, resulta um choque que soa profundamente a falso.
         Parece que Fernando Santos e Almeida Amaral não perderam oportunidades para colocar na boca de Carlos (João Cascão) certos ditos mais ou menos de revista que não só perturbaram o desenrolar da peça como tornaram falso, totalmente falso, o final.
         Não se nota no “clima” do segundo acto nenhuma preparação emocional para o desenrolar, inevitável, da trama porque João Cascão se viu sempre entre Syla e Caríbedes na interpretação do seu papel.
         À ânsia de Carlos por uma vida de família que nunca tivera, opõe-se quase sempre um outro Carlos inateravelmente lançado às feras por um dito de espírito (?) barato bem longe duma insinuação “chaplinesca” que conviria à situação.
         Assim a peça na sua construção ruiu, pois o final surge sem sentido, abruptamente, como que dando a impressão de que o autor não sabendo como sair dum labirinto, resolve destruir este num abrir e fechar de olhos e colocar-se como por magia fora dele.
         Da interpretação é justo que se destaque em primeiro lugar o belo apontamento de Vitalina Lontro, que faz uma criada, segura, perfeita, dominando as situações com à vontade. Violinda Medina num papel cheio de dificuldades, a maior parte delas reflexo da actuação de (Carlos). João Cascão representou com naturalidade, disse bem, e caminhou no palco com uma desenvoltura que é característica apenas dos que sabem representar.
         João Cascão teve um grande papel onde não brilhou tanto como poderia. Que pena a sua forma de falar sem relevos e quase sempre mocórdica! Pela maneira como evolui no palco poder-se-ia dizer que João Cascão seria um grande actor se tirasse partido do texto através duma intenção que está na base da interpretação; Fernando Reis foi pouco convincente e a sua dicção cheia de preciosidade concorre para o prejudicar; António Jorge da Silva, o avô, é hoje dentro do grupo um dos esteios: cheio de qualidades, sabe dizer e conhece já razoavelmente o palco; dos outros, uma referência a Maria Tereza de Oliveira cuja voz não a ajuda e que falou sempre – talvez por isto – com demasiada vivacidade para uma velha; as crianças… são crianças mas não esquecemos os rapazes que se mostraram mais desenvoltos do que a menina.
         O cenário… francamente esperávamos mais de Manuel de Oliveira ou antes… esperava-nos outra coisa.
         Já é tempo de deixarmos a cenografia clássica – mais cara e pesada – para enveredarmos por processos mais simples.
         Boa a sugestão de gabinete de clube dada no 1º quadro do I acto com a faixa escura na parte anterior do palco; os actores é que se não devem esquecer que essa zona escura existe…
         Também a mesa, neste mesmo quadro, era grande demais eclipsando, totalmente, João Cascão.
         Deixamos para o fim propositadamente a principal figura que anima as representações da Sociedade de Instrução Tavaredense: José Ribeiro.
         Não é possível dentro do comodismo da hora em que vivemos entender como é possível existir um José Ribeiro que sacrifica uma vida inteira à cultura e protecção das gentes da sua Tavarede. Dos cinquenta anos de labor dessa Sociedade de Instrução pode dizer-se que os mais belos e de maior projecção cultural se devem ao lutador e estudioso que tem construído uma obra que as nossas principais cidades não desdenhariam de apadrinhar.
         Na representação que ocorreu sobre as tábuas do Avenida, na evolução das figuras vimos constantemente José Ribeiro; pena foi que o não ouvíssemos falar também…

         À crítica cumpre a análise fria dos acontecimentos mas feita dentro dum campo de justiça. Pois baseado nesta mesma justiça deixemos aqui ficar a nossa melhor saudação a José Ribeiro e aos cinquenta anos da Sociedade de Instrução Tavaredense.

Usos e Costumes na Terra do Limonete -13

         Muitas vezes temos referido o facto de Tavarede, em tempos que já lá vão, ser uma pequena aldeia cujos habitantes viviam e trabalhavam, na sua maioria, na agricultura. Por conta própria, nas suas terras, ou por conta alheia, eram muitos os cavadores que tiravam, do seu trabalho agrícola, o sustento de sua família.
         Era uma vida bastante dura, muitas vezes trabalhando sob um sol abrasador, enquanto noutras tinham que suportar um frio que enregelava. Além disso, e isto ainda durante a primeira metade do século vinte, não tinham horário, trabalhando de sol a sol, cujo relógio era o sino da torre da igreja, tocando as trindades para o início do trabalho ainda o sol estava a despertar, bem como para anunciar o fim do trabalho, quando o sol já desaparecia no poente.
         No mês de Abril os dias começavam a ser maiores, pelo que foi necessário estabelecer um período de descanso a meio da tarde, para recuperarem um pouco das forças dispendidas. Terá sido esta a necessidade de estabelecer este costume e, assim, surgiu o uso de festejar a tarde estabelecida para a chamada ‘merenda grande’. A nossa terra, seguindo o exemplo geral, também celebrava esta tarde.
         Foi um costume que perdurou durante muitos anos, pois ainda nos recorda, e com saudade, confessamos, quando íamos em ‘ranchada’ merendar fora, normalmente no pinhal sito aos Quatro Caminhos do Senhor do Arieiro, bem perto da velha escola primária.
         A primeira nota que encontrámos respeitante a esta celebração, foi em Abril de 1899. “A srª D. Maria Amália de Carvalho, digna professora da povoação de Tavarede, offereceu na passada segunda feira – dia da merenda grande – uma soirée familiar, que decorreu animadíssima entre despretencioso convívio, até perto da uma hora da madrugada.
         O sr. A. Rodrigues recitou o monologo em verso “O Terrível”, entre francas gargalhadas, sendo também bastante palmeado o sr. A. Proa nas suas cartas de magia. Durante o baile esteve tocando, sob a direcção do sr. João Proa, um quintetto que muito agradou.
         De tarde estivera alli executando algumas musicas a “Troupe Gounod”, sendo-lhe offerecido um abundante copo d’agua. Muito mais tínhamos que dizer, mas o espaço de que dispomos n’este jornal não nos deixa alongar mais”.
         O costume já seria antigo pois, no ano seguinte, mereceu uma nota um pouco maior, num periódico figueirense. “Hontem, ao inicio da tarde, quiz-nos parecer que os nossos visinhos figueirenses tinham julgado ser dia de S. João cá na parvonia. Por essas estradas além viam-se ranchos e ranchos de pessoas, e aqui na povoação passavam igualmente muitos outros com cestos enfeitados de verdura e flôres e recheiados de saborosos petiscos, que iam manducar á sombra d’árvores dispersas por ahi fóra.
         Não era porém dia de S. João, mas sim o da festejada merenda grande, tão suspirado por todos os operarios que até Setembro gosam 2 horas de sesta. Tavarede offerecia-nos mais um tom de quem estava em festa, do que a sua apparencia habitual de monotona pacatez.
         Um grande cortejo de meninas e meninos, alumnos da nossa escola elementar, conduzindo cestos caprichosamente engrinaldados de flôres, percorreram muitas ruas da localidade. Á noite a exma. srª. D. Maria Amalia de Carvalho, sua intelligente professora, reuniu em sua casa muitas meninas suas discipulas e outras das suas relações, e ali estiveram em animado convivio até perto da meia noite. Festas e mais festas”.
         Um outro periódico refere “... houve a costumada romaria, dando a Figueira o seu ‘contigente’ avantajado. Muita alegria; muita festa”. Os figueirenses, como se depreende, aproveitavam aquela tarde para recuperarem forças e procuravam os sítios mais aprazíveis da nossa terra, para saborearem as fartas merendas à sombra das árvores ramalhudas. “Foi grande a concorrência de figueirenses que na segunda feira vieram aqui passar a tarde e festejar a merenda grande. Locandas cheias de freguezes, homens de banza á cinta, mulheres sobraçando cestos recheados de acepipes, danças, vozes argentinas soltando cantigas alegres, um movimento desusado nas ruas, emfim, um bocado de tudo se viu aqui n’aquella tarde. As meninas da escola andaram com cestos enfeitados a percorrer as ruas, depois de terem merendado com alegria E era bonito admirar aquelle grupo de gentis creanças, todo coberto de flores, risonho, cheio de candura, a offerecer-nos um quadro simplesmente bello!. Finalmente, uma tarde bem passada para os felizões que vêem com razão que esta vida são dois dias”.

A professora D. Maria Amália de Carvalho, a quem já atrás aludimos, havia estabelecido o costume de, pelas crianças da sua escola, se festejar este dia. Pelos apontamentos transcritos, percebe-se que o cortejo infantil, com os seus cestos cheios de flores, espalhavam alegria pela rua principal da aldeia até ao local escolhido para a confraternização.
 



  
Esta fotografia pertence à peça teatral ‘O sonho do cavador’, onde se recriava o cortejo acima referido, no quadro com que fechava o primeiro acto da peça.

Durante os anos em que aquela professora leccionou em Tavarede, o costume manteve-se, o mesmo acontecendo com a professora seguinte, D. Maria José Santos, como nos relata uma nota de Abril de 1917. “Na escola mixta desta freguezia todos os anos se costuma festejar o dia da merenda grande. Fomos convidados pela digna professora, srª. D. Maria José M. Santos, a assistir a este grande ato d’alegria das creanças, que é, para elas, um dos melhores.
         Assistimos, pois, à sua merenda grande, que foi revestida de bela animação das creanças, com os seus cestos lindamente enfeitados. Antes da merenda viam-se na sala as creanças, de pé, formadas numa roda, cantando varias cantigas populares. Seguiu-se a merenda. Cada creança foi então buscar os seus cestos cobertos de flôres, sentando-se, e cada uma tirando deles o seu variado sortido de comida. Os sorrisos despendiam-se de todos os rostos. A chilreada daquele viveiro encantava toda a gente que o admirava. Após a refeição novas canções entoaram, dançando tambem alegremente, comunicando a sua alegria ao espirito dos assistentes.  Assim se passou na escola desta localidade a tarde da merenda grande. A petizada divertiu-se até fartar e a todos deixou a melhor recordação o seu aprasivel festival. Daqui felicitamos a distinta professora srª. D. Maria José Martins Santos por ter realisado na sua escola uma festa cheia de alegria e disciplina”.

                 No entanto, a festa já não teria o brilho e o aparato dos anos anteriores, pois um outro jornal refere, sobre o mesmo acontecimento, o seguinte: “N’outros tempos, effectuava-se com todo o brilho na escola d’esta localidade a sympathica festa da merenda grande. Este anno, ou por outra na passada segunda-feira, deixou uma tristissima impressão no espirito das pessoas que assistiram áquella festa infantil. Os bons tempos foram-se, e assim vão desapparecendo tambem as tradicionaes festinhas que deixaram gravadas na memoria de todos immensas saudades...”.

As operetas em Tavarede - 10

              
Grupo cénico da SIT em 1928

  (O serão começa ouvindo-se, em fundo musical, a “Valsa do Sonho”) O tema musical que estamos a ouvir chama-se “O Sonho”. Manuel da Fonte acabara de comer e dorme a sua sesta à sombra de uma árvore frondosa. Como desde há uns tempos atrás, está só. Aborreciam-no as cantigas e as risadas das cachopas, sempre na galhofa com os rapazes... Por isso, preferia estar sòzinho. Queria dormir descansado e, como sempre, queria sonhar...

         Era assim que se iniciava a fantasia “O Sonho do Cavador”, representada no nosso palco, pela primeira vez, em 28 de Abril de 1928. José da Silva Ribeiro havia escrito o texto e João Gaspar de Lemos Amorim os versos. A música era original ou coordenada pelo maestro amador figueirense António Maria de Oliveira Simões.

         Antes de prosseguirmos com a nossa história, não queremos deixar de aqui fazer alguns comentários a esta fantasia. E começaremos por dizer que, até aos dias de hoje, “O Sonho do Cavador” foi a peça mais representada pelos nossos amadores. Tomar, Buarcos, Figueira, Coimbra, Pombal, além de Tavarede, foram os palcos onde se representou esta fantasia. Encontram-se quatro versões diferentes. A primeira, que foi a que sofreu mais alterações, estreou-se, como dissemos, em Abril de 1928. No dia 29 de Junho de 1930, é apresentada uma segunda versão. Em Dezembro que 1936 é levada à cena a terceira versão, que se repete em 1942, e em Janeiro de 1987, em espectáculo evocativo, esta fantasia é reposta em cena, numa quarta versão, com diversas alterações. A história é sempre a mesma. Muitos dos quadros é que, ou cortados pela censura ou porque haviam perdido actualidade, iam sendo substituidos, bem como a música.

         As críticas que se encontram inseridas na imprensa da altura, são bastante elogiosas. Todas elas referem belos cenários, magnífico guarda-roupa, espectacular montagem cénica com interpretações correctíssimas e, sempre em maior destaque, uma música encantadora, muito bem cantada, que o público se não cansava de ouvir e aplaudir. Hoje, e porque será a que maior interesse pode despertar, vamos contar a primeira versão.

         Como já dissemos, Manuel da Fonte sonhava, enquanto dormia a sesta. Era um sonho que o fascinava. Pobre desde pequeno, agarrado à enxada na labuta do pão de cada dia, sentiu, então, a ambição da riqueza. “Passa um homem a vida inteira a trabalhar e ao fim, morre de fome; outros, então, sem nunca terem feito nada, apodrecem de ricos. Parece que eles já vêm ricos ricos da barriga da mãe e nós, assim que nascemos, somos logos condenados à pena perpétua do trabalho...”.

         Era assim que ele, conversando com Rosa, a sua prometida, lhe dizia que queria ir em busca da riqueza. Para ela, não passava de um desvairo da sua sua cabeça. Pois não chegou ele a passar uma noite inteira, a cavar, atrás da igreja, à procura do tesouro que ele havia sonhado ali encontrar? Mas, não. Ele estava decidido. Para o pobre cavador a Fada do Sonho não o enganava. E era sempre a mesma coisa, mal fechava os olhos...

         Fada – “Sou eu quem ocupa o seu pensamento. Sonha com a riqueza, com o oiro, e é o oiro falso do meu vestido que o deslumbra. Neste momento, avista a estrada da fortuna, toda ensombrada de árvores carregadas de oiro. A aldeia onde nasceu afigura-se-lhe uma cadeia onde vivem os condenados à pobreza. Esquece-a, abandona-a, sem uma saudade. E tendo quebrado a enxada, caminha alegre e feliz na estrada da fortuna, recolhendo oiro aos punhados. É este o sonho do cavador”.      (enquanto a Fada conta o sonho, ouve-se, suave, a mesma valsa)

         Acorda decidido. Irá à procura da riqueza. Abandona a enxada e prepara-se para ir embora. É então que lhe surge a Agricultura.

   Sou desde a mais remota antiguidade
   Sustento e firme apoio dos Estados.
   Sem mim os grandes homens da cidade
   Morriam dentro em breve esfomeados.

    O camponês curvado à leiva
    Revolve a terra c’o a sua enxada.
     À força de suar, tira-lhe a seiva
      Que se torna abastança abençoada.

      Alegre e contente,
      Mal rompe a manhã,
      Esta boa gente
      Lá vai sorridente
      Para o seu duro afã. 

Ah! sim, a Agricultura. Bem lhe importava a ele. Não, não mudará as suas ideias. Diz-lhe ela que as terras ficarão a monte e que virá a fome bater à porta?


         Manuel da Fonte – “E que me importa a fome dos outros se a minha pobreza também lhes não importa? Dizes que o meu braço é forte e poderoso; mas tu cansáva-lo e em breve acabarias por arruiná-lo. Tenho-te entregado tudo: o meu corpo, que tu exploravas como o senhor explora o escravo, e a minha alma, que só de pensar em ti, nada mais via do que estas leiras de terra que tenho amanhado, como se para além delas não houvesse mundo. Consumias-me de canseiras: obrigavas-me a cavar a terra, sem te importares que o frio me trespassasse os ossos, ou que a brasa do sol me queimasse o corpo, como se em vez de lume do céu fosse medonha fogueira do inferno. E a terra, má, ingrata, traiçoeira, deixava-se rasgar aos golpes da minha enxada, sôfrega, a rir, a rir da minha cegueira de amante, que todo se lhe entregava, do suor do meu rosto que me corria em bica. E que me deu ela em paga? E como recompensáste tu o meu esforço?”

sexta-feira, 21 de março de 2014

Operetas em Tavarede - 9

         Muito mais haveria a contar. Mas algumas das coisas mostradas ao ilustre visitante, já nós as conhecemos. A água da nossa fonte, por exemplo, não podia ser esquecida. Quanto às bruxas, as tais das fitas da sacristia, e parece que havia muitas em Tavarede, essas levou-as o deus Mercúrio para o seu planeta. Deixaram a terra e parece que nunca mais voltaram. As fitas... bem, essas, ainda continuaram e continuam. De vez em quando há cada fita na terra do limonete!...

         Mas o que a todos os visitantes, nacionais ou estrangeiros, deuses ou humanos, o que a todos se mostra, com justificado orgulho, é a força do trabalho do bom povo da nossa aldeia. Terra de cavadores, que de manhã à noite, de verão ou de inverno, debaixo dum sol escaldante ou com a roupa empapada pelo suor e pela chuva, sempre agarrados à enxada, vão cavando o pão de cada dia. Pão de cada dia que, nas tardes quentes do verão, quando as searas estão bem maduras clamavam pela foice diligente das ceifeiras, para o colherem, depois do que para as eiras.

         E sempre, homens e mulheres, novos e velhos, labutando e cantando. A alegria do trabalho, a consolação da fartura, que os seus braços fortes e honrados arrancavam às abençoadas terras de Tavarede, é bem mostrada nas suas cantigas que, de manhã à noitinha, eram soltadas pelas suas gargantas.

  Coro
 Desde manhã ao sol posto,
Arado ou foice na mão,
Seja Inverno ou seja Agosto,
Ceifamos a loira espiga
Ou pomos à terra o grão.

Cavadores
Vamos todos sem cansaço
Na terra dura
Cavar, cavar.
A força do nosso braço
Traz a fartura
Do nosso lar.

Ceifeiras
Somos as ledas ceifeiras
Que vão as messes trigueiras
Segar, ceifar,
Sempre ligeiras,
Sempre a cantar,
 A cantar.

   Coro
  Cavar, Ceifar,
 Ceifar, cavar,
 Sem descansar.


F I M







A Fonte de Tavarede (bersos de Cardoso Marta)

  
    
       O cavador, a cigarra e a formiga




O Sonho do Cavador  (desenhos do prof. Alberto de Lacerda)

                (O serão começa ouvindo-se, em fundo musical, a “Valsa do Sonho”) O tema musical que estamos a ouvir chama-se “O Sonho”. Manuel da Fonte acabara de comer e dorme a sua sesta à sombra de uma árvore frondosa. Como desde há uns tempos atrás, está só. Aborreciam-no as cantigas e as risadas das cachopas, sempre na galhofa com os rapazes... Por isso, preferia estar sòzinho. Queria dormir descansado e, como sempre, queria sonhar...

         Era assim que se iniciava a fantasia “O Sonho do Cavador”, representada no nosso palco, pela primeira vez, em 28 de Abril de 1928. José da Silva Ribeiro havia escrito o texto e João Gaspar de Lemos Amorim os versos. A música era original ou coordenada pelo maestro amador figueirense António Maria de Oliveira Simões.

         Antes de prosseguirmos com a nossa história, não queremos deixar de aqui fazer alguns comentários a esta fantasia. E começaremos por dizer que, até aos dias de hoje, “O Sonho do Cavador” foi a peça mais representada pelos nossos amadores. Tomar, Buarcos, Figueira, Coimbra, Pombal, além de Tavarede, foram os palcos onde se representou esta fantasia. Encontram-se quatro versões diferentes. A primeira, que foi a que sofreu mais alterações, estreou-se, como dissemos, em Abril de 1928. No dia 29 de Junho de 1930, é apresentada uma segunda versão. Em Dezembro que 1936 é levada à cena a terceira versão, que se repete em 1942, e em Janeiro de 1987, em espectáculo evocativo, esta fantasia é reposta em cena, numa quarta versão, com diversas alterações. A história é sempre a mesma. Muitos dos quadros é que, ou cortados pela censura ou porque haviam perdido actualidade, iam sendo substituidos, bem como a música.

         As críticas que se encontram inseridas na imprensa da altura, são bastante elogiosas. Todas elas referem belos cenários, magnífico guarda-roupa, espectacular montagem cénica com interpretações correctíssimas e, sempre em maior destaque, uma música encantadora, muito bem cantada, que o público se não cansava de ouvir e aplaudir. Hoje, e porque será a que maior interesse pode despertar, vamos contar a primeira versão.

Usos e Costumes na Terra do Limonete - 12

       No Natal de 1901, uma local deseja festas felizes e lembr         a aos tavaredenses o costume antigo de comemorar o ‘nascimento do Deus-Menino’, as consoadas familiares, as tortas doces e os filhós... Mas em Dezembro de 1903 a nota publicada é muito mais extensa. “Houve tempos – e não vão elles muito longe! – em que aqui, n’esta minha terra querida, se representava o presepio na noite de Natal e n’outras da época que, de geração em geração, nos tem vindo a relembrar a Natividade de Christo. Era uma distracção simples, mas reunia ella muitas familias n’um convivio fraternal, alegre, que nos proporcionava uma horas de satisfação intima.
         Ia-se ao presepio, revia-se a gente na garbosidade das moças tavaredenses, vestidas a capricho no traje de pastoras, e admiravamos-lhes tambem as habilidades scenicas, porque ellas quasi sempre debutavam n’esses espectaculos... E d’ahi, os felizes da sorte, regressavam ao lar, e lá iam rodear a certã onde fervia o azeite com os tradicionaes filhós, ou onde o forno trasbordava com doces tôrtas!
         Era assim que se passava por aqui esta feliz quadra do Natal. E hoje, se é certo que ao estomago dos afortunados não faltam as abundantes consoadas com que se celebra a data natalicia, há no emtanto – triste é dizel-o – a falta de qualquer espectaculo que nos recreie o espirito e que venha quebrar um tanto a insipida monotonia d’estas longas noites de dezembro.
         Parece que a gente moça bem depressa adormeceu sobre os triumphos colhidos!
         Isto escrevo eu, porque é a nitida expressão da verdade; porém, moralmente, sinto muito dizel-o. Comprehendo eu bem que tudo cança, e sei que algumas pessoas há que, por justos motivos, se teem affastado do meio em que tanto se accentoava o desenvolvimento da educação dos meus patricios. Essa circumstancia, porém, não obsta a que muitos rapazes deixem de trabalhar no intuito de se instruirem; e, para isso, umas das primeiras coisas de que deviam tratar, era da creação d’um grupo dramatico. No theatro aprende-se muito, todos o sabem; é uma escola que educa e recreia o espirito sem enfado, e d’ella se auferem resultados proficuos, desde que cada um comprehenda quaes os deveres que tem a cumprir.
         Era n’este caminho que eu desejava ver varios conterraneos meus, que bem precisam de o trilhar, e que, tendo horas de descanço, mal as desperdiçam. Trabalhem, por isso, para se instruir, e, fazendo-o, hão-de colher depois os fructos d’esse esforço”.
Ter-se-ia perdido o costume de festejar a data? Os costumados e antigos usos limitar-se-iam à reunião familiar para consoar? A verdade é que as notícias encontradas referem espectáculos teatrais em vésperas do Natal, mas nunca mais referiram o Presépio e os Reis Magos.
Até que, em Dezembro de 1915, “no teatro do Grupo Musical, da vizinha povoação de Tavarede, continuam com muita vontade em ensaios desta excelente peça cénica (Autos Pastoris), que pelo Natal ali será representada”. Mas não chegou a subir à cena, devido ao falecimento de uma pessoa ligada à colectividade e muito considerada na terra. Representaram, embora algum tempo depois da data própria, o Auto dos Reis Magos, completando o espectáculo com algumas cenas pastoris. Deram três representações com este espectáculo.
 


Cena final do Presépio - 1916

Em 1916 já houve Presépio. O correspondente local de um jornal figueirense comentou desta forma a passagem da quadra natalícia. “Este dia, em que as familias se confraternisam n’uma alegria franca, foi passado na nossa terra com prazer. Realisou-se o tradiccional Presepe, nas Sociedades locaes, que foram muito concorridos.   No theatro do Grupo Musical as scenas pastoris foram desempenhadas correctamente, merecendo fartos applausos José Medina e sobrinho nos papeis de Moço e cego, assim como a menina Guilhermina Nogueira e Silva interpretou bem o papel de Anjo. Na scena da Lambisqueira houveram-se com agrado os amadores. Apenas no acto das Cinco pastoras houve a notar o chaile á hespanhola, que deu a impressão o Presepe passar-se n’alguma terra galega.
         A orchestra e os córos estavam afinados. E a casa á cunha. Na Sociedade d’Instrucção correu tambem o theatrinho ao agrado de todos”.
         E a então jovem colectividade resolveu, em boa hora, retomar o uso e costume tavaredense dessas representações natalícias. O Presépio subia à cena quatro ou cinco vezes, o mesmo sucedendo com os Reis Magos e, segundo as notícias encontradas, sempre com casas ‘à cunha’.
         Relativamente ao ano de 1917 encontrou-se a seguinte local. “Com esta peça deram no Grupo Musical o 2º espectaculo, na ultima segunda-feira, vespera de Anno Bom. Lá estivemos tambem. Embora não houvesse da parte do publico tanta afluencia como da 1ª representação, ainda estava uma casa regular, quer dizer, estava uma casa quase como a primeira.
         Todos os amadores foram calorosamente ovacionados, sendo muito acclamado o pandego das castanholas, o amigo Rentão, que gramou no palco uns tesos abraços d’alguns rapazes d’essa cidade e que assistiram ao espectaculo. Foi um bocado de noite bem passada, d’estas noites de pandega e alegria que o Grupo Musical de quando em quando nos proporciona.
         Hontem, dia de Anno Bom, houve lá tambem um baile que se prolongou até á 1 hora da noite. Segundo nos consta, será brevemente levado á scena pelos mesmos amadores, o drama sacro Os Reis Magos, conjunctamente com mais algumas scenas pastoris. Esperemos, portanto, até ao dia da sua representação”.



Cena do primeiro acto ‘Os pastores brutos’

         Acreditamos que o entusiasmo por estas representações tenham ‘arrefecido’ um bom bocado, devido à ausência de muitos tavaredenses enviados para combater na guerra, que grassava na Europa e em África. Mesmo assim, o Presépio foi representado no ano seguinte, bem como o Auto dos Reis Magos.
         “Tem amanhã lugar, no teatro do Grupo Musical, da vizinha povoação de Tavarede, um espectáculo com a representação do tradicional drama sacro Os Reis Magos, conjuntamente com várias cenas pastoris, como Camilo e Cacilda, Romagem das Cebolas, A mulher da cidade, Romagem do Diabo, etc., etc., sendo de esperar que o teatro tenha amanhã uma enchente à cunha, com o que folgamos”.
         Ainda se encontram alusões a estas peças pelas quadras natalícias de 1922 e 1923. A partir de então, caíram no esquecimento total dos tavaredenses. As celebrações religiosas já há muito que haviam perdido o anterior brilho. E se continuou a haver espectáculos de teatro pelo Natal e Ano Novo, já eram com outras peças que nada tinham a ver com tal quadra.

         No dia 20 de Dezembro de 1940 encontrou-se a seguinte nota no Jornal-Reclamo. “Têm prosseguido com grande interesse os ensaios da peça sacra em 4 actos ‘Autos Pastoris’, que o Grupo Musical levará à cena nos próximos dias 24 e 31, no teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense”. Assistimos a estas representações, que se repetiram no ano seguinte. E foi assim que em Tavarede acabaram em definitivo estes usos e costumes tanto do agrado do nosso povo. Já lá vão tantos anos que, sinceramente e com pena o dizemos, nunca mais se comemorará como antigamente o Natal e o dia dos Reis.

O Associativismo na Terra do Limonete - 68

Em Maio de 1953, tiveram início as festas comemorativas do 50º aniversário da Sociedade de Instrução Tavaredense. Foi realizado um baile, durante o qual foram anunciados os vencedores de mais um concurso de quadras populares, desta vez alusivo ao perfume 1002, da Nally. A comissão nomeada para programar as festas das Bodas de Ouro, teve actividade enorme, nunca se poupando aos trabalhos que lhe eram exigidos. Para conseguir obter alguns fundos, que tão necessários eram, realizou, no seu campo de jogos, mais umas ‘Grandes Festas de Arraial’, nas quais tiveram a colaboração de alguns dos mais  afamados conjuntos musicais da região.

A festiva data, que tinha um significado muito especial para todos os tavaredenses, mereceu uma nova entrevista com o director cénico. É longa, mas é muito expressiva da acção da colectividade. Na histórica e aprazível povoação de Tavarede, há meio século que se vem erigindo, pedra sobre pedra, com inteligência e tenacidade, vultuosa obra colectiva e teatral pouco vulgar, cremos que única, no meio provinciano.
         Se algum dia ao historiador do teatro português interessar fazer o balanço do contributo prestado à arte dramática, pelo ignorado amadorismo, onde esse mesmo teatro foi recrutar, tantas vezes, as suas grandes figuras, que para serem grandes não careceram das luzes do Conservatório, porque as tinham já consigo desde nascença, ver-se-á no dever de consagrar capítulo especial à vida e obra da Sociedade de Instrução Tavaredense, de preclaras tradições e que tem levado a numerosos e apartados pontos do país a galhardia da sua arte de representar, e, com ela, um rosário apreciável de benemerências a favor de instituições de caridade e utilidade pública.
         Sabendo que a prestante colectividade vai comemorar no mês decorrente as Bodas de Oiro da sua fundação, julgámos de interesse para os nossos leitores ouvir alguém que nos elucidasse acerca das actividades da mesma e outros pormenores relacionados com a tradição teatral da pitoresca Aldeia do Limonete. E não havia que hesitar: só uma pessoa reunia plenamente as condições necessárias para satisfazer a nossa curiosidade e interesse - o seu dinâmico e prestigioso director cénico José da Silva Ribeiro.
         Jornalista distinto, culto noutros aspectos do saber humano - é vastíssima a sua cultura neste ramo por que se apaixonou desde novo.
         Como crítico teatral, quando exercia a crítica, a sua opinião era considerada e temida pelos “ases” da cena portuguesa, ao apresentarem-se, com as suas companhias, perante a exigentíssima plateia figueirense.
         Conversador sugestivo e atraente, torna-se, pela lhaneza do seu trato, acessível e pronto a quem quer que necessite dos seus prestimosos serviços.
         E fomos ouvi-lo. Encontrámo-lo absorvido pelos cuidados do seu novo trabalho - 50 Anos ao Serviço do Povo - no qual evoca e passa em revista os factos da Sociedade de que tem sido o infatigável, o grande, o maior de todos os obreiros. Mas nem isso o impediu de gentilmente nos acolher. Depois de lhe transmitirmos os nossos propósitos e removermos o obstáculo sério das suas ocupações de momento, disparámos-lhe, para principiar, duas perguntas:
         - É muito remota a tradição teatral em Tavarede? Lemos algures que já em 1877 existia em Tavarede um teatro de amadores que por causa das desordens que sempre havia nas noites de espectáculo foi mandado encerrar pelo Governador Civil do Distrito. Tem fundamento histórico esta notícia?
         - Efectivamente, - começa o nosso interlocutor - a tradição teatral é aqui bem vincada. Já Ernesto Fernandes Tomaz, na descrição que fez de Tavarede numa série de artigos publicados na Gazeta da Figueira em 1896, dizia que as sociedades dramáticas vegetavam em Tavarede como tortulhos. O episódio do encerramento dum teatrito que aqui havia, vem referido, como verdadeiro, por Pinho Leal no seu dicionário geográfico Portugal Antigo e Moderno. O teatro foi mandado fechar pelo Governador Civil em 1877, por motivo das desordens que se verificavam na noites de espectáculo. No livro comemorativo das “bodas-de-ouro” da Sociedade de Instrução Tavaredense - 50 Anos ao Serviço do Povo - a aparecer dentro de poucos dias, indicam-se os diversos locais onde se apurou que funcionaram teatros no século passado.
         - É verdade que as gentes de Tavarede manifestaram sempre natural pendor para o teatro?
         - Vem de longe o gosto dos tavaredenses pelo teatro. Esta gente tem-se mostrado muito inclinada às artes do teatro e da música. Alcançaram fama os teatros e as tunas de Tavarede. Não obstante a vizinhança de paredes-meias com a cidade, a um tempo benéfica e prejudicial, o sentimento associativo perdura na população desta velha e pobre aldeia.
         - Quais os nomes que no passado revelaram, de facto, decidida intuição para a arte dramática?
- Amador de grandes méritos, característico solicitado por todas as companhias do seu tempo, foi nos meados do século passado José Luís Inácio, casado com Luísa Genoveva, que foi também amadora. Na segunda metade do século, brilharam à luz da ribalta tavaredense - de cebo e petróleo - muitos actores e actrizes, dentre os quais se destacavam António de Oliveira, Ricardo Nunes de Oliveira (o tio Ricardo da Margarida), José Vigário e António da Silva Coelho (que todos conheceram por António da Barra), estes dois, respectivamente, pais dos amadores do mesmo nome ainda hoje no activo; Manuel de Oliveira Bertão e António Cruz (pai dos ilustres e saudosos tavaredenses drs. Manuel e José Gomes Cruz), insubstituível nos papeis de Jerónimo e Moço da Passarola do Presépio. No elenco feminino faziam figura Maria da Luísa Marcelina e Eduarda Matoso. Mais recentemente, já no começo do século actual, José Medina, excelente amador tanto no género dramático como no cómico, e ainda mais perto de nós, os dois irmãos António e Jaime Broeiro, para só falarmos dos que já não existem. Os vivos, todos os conhecemos, e alguns deles, tendo começado com a Sociedade de Instrução Tavaredense, ainda hoje dão as suas provas sobre as tábuas do palco.
- Arriscamos mais duas perguntas: - Porque não se abalançou até hoje a S.I.T. a construir sede própria se dispõe de condições primordiais, para isso, pela actividade e valor do seu grupo cénico? Não haveria vantagem em construir uma sede maior para reunir numa só récita o público que, por exiguidade do seu teatrinho – como V. lhe chama – tem que ser distribuido por vários espectáculos?
- A Sociedade de Instrução Tavaredense está instalada no edifício do Largo do Terreiro que foi, como sabe, a velha casa chamada de Ourão, transformada por João José da Costa - esquecido mas inesquecível benemérito - num, para o tempo e para a terra, óptimo teatro. A grande aspiração da sociedade era adquirir o prédio, para viver em casa sua: realizou-a, comprando o prédio. Depois, dado o desenvolvimento da actividade associativa e as responsabilidades e anseios do grupo cénico, outra aspiração surgiu: ampliar e transformar a sede, melhorando as instalações de uso permanente dos sócios e dotando-a com um teatro maior, um palco bem apetrechado que permitisse alargar e aperfeiçoar a obra de cultura que a Sociedade de Instrução Tavaredense vem desenvolvendo através do teatro. Este projecto é, de momento, irrealizável. Seriam precisas 3 a 4 centenas de contos. Onde ir buscá-las? Não esqueçamos que Tavarede é uma terra muito pequena e de população pobríssima. Não há aqui beneméritos ricos. E beneméritos... sem dinheiro não podem fazer obras que só com dinheiro se fazem...
- Pomos uma objecção:
         - Mas o grupo cénico tem uma actividade invulgar, e conquistou merecidamente um público entusiasta que acorre a aplaudi-lo...
         - É certo. Note-se, porém, que as récitas na sede são para sócios e famílias, e raramente pagam a montagem de cada peça. E dos espectáculos em teatros públicos são poucos aqueles cujas receitas revertem para o cofre da associação. Pode objectar-se que é excepcionalmente elevado o número de espectáculos de beneficência. Na verdade, uma lista, aliás incompleta, das récitas de beneficência realizadas na Figueira e noutras localidades pelo grupo tavaredense, mostra que o seu número se eleva a 98. Pelos elementos de que dispomos, e pelo valor actual da moeda, podemos sem exagero avaliar em mais de 400 contos o produto líquido entregue pela Sociedade de Instrução Tavaredense a obras de beneficência e a instituições de utilidade pública. Mas não sejamos ingénuos ao ponto de supormos que esta importante soma poderia também o grupo cénico alcançá-la para as obras da sua sede...
         - Mas, aproveitando o verão, não seria possível obter receitas importantes com representações nos teatros da Figueira? - interrompemos.
         - Oiça-nos com paciência. Nem tudo o que luz é oiro. Realmente, alguns anos atrás o verão era pródigo. Dávamos dois espectáculos em Agosto e dois em Setembro com casas cheias e resultados tão animadores, que se chegou a alimentar a esperança de ganhar em 10 anos o preciso para as obras. Mas... era a época das vacas gordas, que passou depressa. De há um tempo a esta parte verifica-se que sobem as despesas e descem as receitas. Posso citar-lhe um espectáculo de que, pagas as várias despesas e 5 contos do aluguer do teatro, ficaram para o cofre 350$00. E como não haveria de ser assim com as nossas representações, se é assim também com o teatro profissional? Uma boa parte do antigo público esqueceu o teatro; o novo - nem sequer o conhece. Solicitam-no a doença nacional do futebol (repare que nos referimos a doença) e a exploração industrial do cinema; e os organismos oficiais  facilitam e auxiliam a fuga dos velhos e a ignorância dos novos. Se o objectivo do Estado e das autarquias locais fosse a extinção do teatro em Portugal, não poderiam fazer melhor do que estão fazendo. É certo que a Sociedade de Instrução Tavaredense não sacrifica aos deuses da bilheteira, e podia, com outra orientação, melhorar bastante os resultados materiais da sua actividade teatral; mas, fazendo-o, traía a sua função. Ao programa educativo e cultural que a Sociedade de Instrução Tavaredense procura realizar através do teatro, não se ajustam transigências de género parquemaieresco nem exibições estilo retiro da Severa ou variedades da rádio.
         Perguntamos a José Ribeiro:
         - O campo em que recruta os intérpretes para as suas peças tem qualquer particularidade que o distinga dos outros meios associativos do concelho?
         - De maneira nenhuma. Os elementos do grupo cénico são recrutados na população tavaredense, indistintamente. Desde os cavadores de enxada, passando pelos vários ofícios e pela vida comercial na cidade vizinha; desde as raparigas da lavoura que passam o dia no amanho das terras e no trato dos animais, até às costureiras dos alfaiates e das modistas e às que labutam na vida doméstica, de tudo se encontra na companhia de Tavarede.
- Pode citar-nos os êxitos teatrais mais salientes alcançados pelo seu grupo cénico?
         - Como êxito de público, O Sonho do Cavador ocupa o primeiro lugar, com mais de 50 representações. Mas se bem interpretamos a sua pergunta, devemos citar Entre Giestas, Recompensa, A Nossa Casa, Horizonte, Canção do Berço, Génio Alegre, Auto da Barca do Inferno, Chá de Limonete e, o mais recente, Frei Luís de Sousa.
         Continuamos a inquirir:
         - Quais as peças que até hoje representou cuja acção decorre em Tavarede?
         - Com acção passada em Tavarede - Na Terra do Limonete, de João dos Santos e Dona Várzea, de João dos Santos e José Ribeiro, musicadas por Gentil Ribeiro; Pátria Livre e Em Busca da Lúcia-Lima, de João Gaspar de Lemos Amorim; A Cigarra e a Formiga, de Alberto de Lacerda e José Ribeiro; Grão-Ducado de Tavarede, O Sonho do Cavador, Evocação, Retalhos e Fitas e Chá de Limonete, de José Ribeiro - todas musicadas por António Simões. Além destas, outras peças se escreveram propositadamente para a Sociedade de Instrução Tavaredense: Histórias da Roberta, O Nascimento do Messias e as adaptações Morgadinha dos Canaviais e Justiça de Sua Magestade.
         Não resistimos a perguntar:
         - Com a sua acção educativa a S.I..T. tem conseguido sensível melhoria na educação do povo e morigeração dos costumes locais?
         - Não pode negar-se a influência da actividade da Sociedade de Instrução Tavaredense na população de Tavarede. Muitos foram os que aprenderam a ler ou se aperfeiçoaram na escola nocturna que funcionou até 1942. É também elevado o número dos que, passando pela secção dramática, beneficiaram da acção cultural e educativa que ali se desenvolve com uma continuidade verdadeiramente excepcional. E é igualmente de considerar a influência exercida sobre o público que lhe frequenta os espectáculos e as palestras.
         - Porque deixou de manter a sua escola nocturna?
         - Porque não foi possível dar cumprimento a certas exigências de carácter legal. Também no livro 50 Anos ao Serviço do Povo se indicam as razões que impediram a Direcção da Sociedade de Instrução Tavaredense de manter a escola, inteiramente gratuita, que funcionava desde a sua fundação em 1904, com uma frequência de cerca de 50 alunos, menores e adultos.
         - Verifica-se que a S.I.T. restringiu notavelmente o número de bailes realizados anualmente na sua sede. Obedece isso a medida de carácter económico ou ao reconhecimento da vantagem moral de sacrificar o baile ao teatro?
         - Eis uma pergunta agradável de ouvir, porque revela um interesse honroso, que contrasta com a indiferença de muitos. Mas... é bom esclarecer. Os bailes nas associações proporcionam algumas horas de recreio à massa associativa. O recreio também é necessário. É certo que algumas associações fazem do baile semanal, ou pouco menos, a razão de ser da sua existência. Se não fazem mais nada, havemos de concluir que fazem pouco e que sendo sociedades de recreio, não o são de educação. Por isso nos não interessam na mesma medida. Mas... será mais prejudicial à saúde física e moral, o baile ao sábado ou ao domingo na sociedade de recreio da aldeia, do que o baile diário, durante 3 meses consecutivos no casino da cidade? Quanto à Sociedade de Instrução Tavaredense, não há senão que louvar o critério dos seus directores considerando suficiente a meia dúzia de bailes que durante o ano oferece aos associados na sua sede.
         - Estamos de pleno acordo - acrescentámos. E permita-me outra pergunta: Tem sentido dificuldade na escolha de peças para o seu grupo?
- É sempre um grande problema. Independentemente do valor da peça como obra de arte teatral, há que ter em conta certas limitações e contra-indicações que resultam do meio em que nos encontramos, dos elementos de que dispomos e dos fins que nos determinam. São cada vez maiores as dificuldades. Algumas peças que nos serviriam estão-nos interditas, porque o empresário que as representou em Portugal não nos permite a sua representação. Veja-se a estreiteza deste critério, que, generalizado, extinguiria no nosso país o teatro de amadores, uma vez que não pode esperar-se dos autores dramáticos – coitados deles, apertados já em tantos condicionamentos!... – que escrevam peças só para amadores...
- Só mais uma pergunta para terminar: - Acha que são demasiado pesados os encargos que recaiem sobre os espectáculos de amadores?
- Partimos do princípio de que o teatro de amadores, praticado com devoção quase heróica pelas sociedades de educação e recreio espalhadas pelas vilas e aldeias de Portugal, constitui valioso elemento de cultura e recreio do povo, que interessa à nação manter em actividade. É assim que o Estado o encara? É seu dever, nesse caso, facultar-lhe e facilitar-lhe meios de vida. Presentemente as coisas passam-se como se os espectáculos de amadores fossem apenas... matéria colectável; cobram-se licenças, censura das peças, vistos dos programas, imposto sobre espectáculos públicos (!) e contribuições para a Caixa Sindical de Previdência dos Profissionais do Teatro (!!). Uma carga asfixiante! Não está certo. Se o estado não presta outro auxílio, que ao menos não queira fazer dinheiro da actividade desinteressada do teatro de amadores. O regime da cobrança dos direitos de autor continua a ser o mesmo - não obstante terem decorrido dois anos desde que foi nomeada uma comissão para estudar o assunto -, permitindo a fixação arbitrária de taxas em muitos casos proibitivas. E, a carregar ainda mais as tintas do quadro, aí temos agora a lei que regula a assistência de menores a espectáculos, tão louvável nos princípios com que se apresenta como lamentável e perniciosa na forma da sua aplicação. Podíamos apresentar-lhe casos concretos e bem expressivos, mas... iríamos muito longe. Não lhe parece que já lhe dissémos o bastante para se concluir que, na verdade, é precisa uma devoção quase heróica para continuar a manter entre as povoações rurais o fogo sagrado do teatro?
         Não podíamos deixar de concordar com o nosso entrevistado, de quem nos despedimos, profundamente reconhecidos e sensibilizados pelo prazer que nos deu e que sabemos ir igualmente proporcionar aos nossos estimados leitores com o conteúdo desta entrevista.

         Para fecho, só nos resta fazer votos que a velha Sociedade de Instrução Tavaredense possa continuar - e continue sempre - na sua activa e contínua acção de bem-fazer, pois na vida dos homens e das instituições só tem verdadeiro mérito o que se faz bem feito e o que se faz por bem.