sábado, 29 de agosto de 2015

Tavarede - A terra de meus avós - 21

A mobília do senhor conde
       …………………….
       Sinto na alma saudades torturantes
       Dos serões e das festas ruidosas,
      Com luzes, flor’s e pratas cintilantes,
      Veludos, sedas, pedras preciosas.
       …………………….

         Era assim que, na fantasia “Chá de Limonete”, de Mestre José da Silva Ribeiro, a nobre e envelhecida figura do palácio dos senhores de Tavarede, recordava o seu passado.

         Como sabemos, o paço de Tavarede foi sempre a residência permanente da fidalga família dos Quadros, desde a sua construção, ainda na primeira metade do século XVI.

         A 10ª Senhora de Tavarede, D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa, casou, no dia 26 de Dezembro de 1791, com o célebre fidalgo D. Francisco de Almada e Mendonça, corregedor da cidade do Porto, onde realizou importantes obras. A família “Quadros e Almada” passou a ter a sua residência naquela cidade nortenha, fazendo, no entanto, frequentes visitas à nossa terra, onde, no dizer de Pinho Leal, no seu “Dicionário Portugal Antigo e Moderno”, “era a providência dos povos desta terra”.

Tendo enviuvado no ano de 1804, é de presumir que tenha voltado a fixar residência em Tavarede, onde faleceu no dia 25 de Fevereiro de 1835, encontrando-se sepultada na cripta do convento de Santo António, na Figueira da Foz.

Vem isto a propósito para referir que, sendo o palácio de Tavarede residência permanente, ou simplesmente temporária, o mesmo deveria estar mobilado, senão com luxo, pelo menos com as comodidades necessárias ao alojamento da, habitualmente numerosa, família Quadros.

O único filho varão de D. Antónia Madalena e de D. Francisco de Almada e Mendonça, que se chamou João de Almada Quadros Sousa de Lencastre, casou, em 1810, com D. Maria Francisca Emília da Fonseca Pinto de Albuquerque Araújo e Meneses, filha e herdeira do superintendente das coudelarias da comarca de Trancoso, possuidor de largas propriedades naquela terra, que constituíam um morgado, e que, pelo casamento, se uniram à casa de Tavarede.

Passou, entretanto, a residir em Trancoso, com sua família, fazendo, especialmente na época balnear, frequentes e demoradas visitas à nossa terra, instalando-se no seu velho solar de Tavarede.

De igual modo terá procedido o seu filho e herdeiro, o segundo conde de Tavarede, de quem, por seu falecimento em Novembro de 1853, foi herdeiro seu filho primogénito, D. João Carlos Emílio Vicente Francisco d’Almada Quadros Sousa Lencastre Saldanha e Albuquerque que, igualmente, herdou o título de conde de Tavarede.

Esta história tem, como um dos protagonistas, precisamente este titular. “Fidalgo no sangue, no aprumo, na ilustração, no carácter, no sentimento e invariável nas acções, o grande amigo imprimia feição a Trancoso, dava-lhe a sua vida, do seu tom, dos seus nervos, da sua qualificação social, anímica e mental: alma de luz, propagava a luz”, escreveu o jornal A Folha de Trancoso, tempos depois da sua morte.

Como curiosidade, e somente para reforço do que se disse sobre as suas deslocações a Tavarede, recorda-se que o conde, em Setembro de 1883, tomou posse como presidente da Direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Figueira da Foz. Certamente que, se aceitou essa nomeação, seria porque aqui estava o tempo necessário para o desempenho do mesmo ou, talvez, porque tencionava mudar a sua residência para a nossa terra, uma vez que, por essa ocasião, mandou fazer importantes obras de transformação no palácio.

Não deixa de ser interessante, e relativamente a esta história de “A mobília do senhor conde”, o que Ernesto Tomás escreveu na sua reportagem sobre Tavarede, de que já fiz algumas transcrições, agora sobre o palácio da nossa terra:

“Quando por essa época (1865) entrei, pela primeira vez, no edifício do Paço, velho alcácer onde esteve D. Maria Mendes Petite, mãe de Pêro Coelho, um dos que fizeram de D. Inês de Castro uma vítima, condenada pelo seu amor clandestino; quando subi aquelas escadas de pedra, frias e húmidas, que  iam dar ao andar nobre do edifício e percorri aquelas salas vastas, mas sem conforto, lembrou-me mais do que uma vez que por ali teriam andado os passos  do velho soldado da Índia, D. Francisco de Almada (referia-se ao pai do marido de D. Antónia Madalena), que por lá teria pisado António Pereira (?) de Quadros, e a última habitante do velho solar, D. Antónia Madalena de Quadros e Sousa.
……………
Percorrendo aquela antiquíssima habitação, ainda encontrámos os restos de um altar, numa das divisões ao lado do corredor principal que se dirige, no andar nobre, do norte ao sul. Um oratório, apresentando o seu esqueleto em madeira, tosca, conserva ainda ligados uns restos de forro de pano escuro, com umas linhas de galão sem brilho já. De resto nada de importante”.

Surpreende bastante esta descrição. Ponho, no entanto, uma hipótese. Esta visita terá ocorrido relativamente pouco tempo antes do início das obras de transformação do velho edifício que acima referi, das quais as mais importantes terão sido o desmantelamento da altaneira torre com ameias e a  modificação da frontaria do lado poente, com os novos torreões e os rendilhados estilo manuelino, que ainda bem conhecemos. Estariam, então, as mobílias devidamente guardadas em qualquer armazém? É de admitir que sim, e que seriam utilizadas quando a família fidalga aqui vinha passar as suas férias balneares e, talvez, acompanhar o andamento das obras.

Vamos, agora, passar ao segundo protagonista da história: o reverendo pároco Joaquim da Costa e Silva. No ano de 1894, o padre António Augusto Nobreza, também ele protagonista de uma outra história igualmente contada neste caderno, havia sido transferido para outra paróquia e, como era uso naqueles tempos, a diocese de Coimbra abriu concurso para provimento deste cargo, tendo sido provido no mesmo, em Junho de 1894, o padre Costa e Silva, até então coadjutor na paróquia de Paião.

Foi uma figura bastante controversa. Devemos recordar, porém, que naqueles já recuados tempos, as lutas políticas eram assaz violentas. Os militantes de um partido político sofriam, frequentemente, ataques dos partidos adversários. A imprensa, então, explorava ao mais pequeno pormenor todas as possíveis fraquezas e falhas dos responsáveis partidários. Os correspondentes locais, concretamente refiro-me ao caso de Tavarede, muitas vezes se excediam, chegando, até, à difamação e ao insulto, o que resultava, de vez em quando, em desmentidos públicos, quase sempre ordenados pelo Tribunal.

O padre Joaquim da Costa e Silva era natural da Ereira, concelho de Montemor-o-Velho. Como já referi, foi provido na igreja de Tavarede em Junho de 1894. Os próprios adversários políticos reconheciam-no como pessoa bastante inteligente e denodado lutador pelo bem-estar dos povos das paróquias onde esteve, como Paião, Tavarede e, por último, Quiaios.

   Recordo, somente, o que o jornal “A Voz da Justiça” escreveu, no dia 4 de Janeiro de 1924, noticiando o seu falecimento: “o padre Joaquim da Costa e Silva que, antes de paroquiar Quiaios, esteve a dirigir a igreja de Tavarede, foi sempre um político activo, pondo a sua influência ao serviço dos homens que aqui defendiam a política regeneradora, antes da proclamação da república e, na vigência desta, dos que, monárquicos ou republicanos, combatiam a política democrática.
Foi sempre nosso adversário. Isto não obsta que, esquecendo nesta hora certos actos por ele praticados e que nós aqui atacámos, digamos que, nas vezes em que o padre Joaquim da Costa e Silva ocupou na Câmara Municipal o lugar de vereador, procurou sempre obter benefícios para a localidade onde paroquiava”.

Estão feitas as apresentações dos dois protagonistas desta história. Vamos, agora, à mesma: “A mobília do senhor conde”.

* * *

Na edição de 20 de Janeiro de 1899 o jornal “O Povo da Figueira” escreveu, em correspondência de Tavarede:

“…….. Quando o conde de Tavarede resolveu vender a casa que aqui tinha (o Paço), e onde havia mobília valiosa, o nosso Papa-jantares (alcunha atribuída ao padre Costa e Silva, não sei a que propósito), dirigiu-se logo a Trancoso a falar com ele, afim de lhe pedir um guarda-roupa para uma aplicação religiosa………..”.

O conde, que era uma pessoa religiosa e bastante generosa, vendo o fim a que se destinava essa peça de mobília, não hesitou e de imediato escreveu um pequeno bilhete, dirigido ao seu feitor, que tinha mandado a Tavarede precisamente para embalar todas as mobílias existentes no palácio, e no qual ordenava para “…. lhe dar o que fosse preciso para a igreja”.

Com aquele bilhete na mão, logo que chegado a Tavarede, o pároco foi ter com o feitor e exigiu o cumprimento das ordens do conde. Reconhecendo a letra do patrão, de imediato o homem se prontificou a cumprir o que lhe era ordenado e logo se disponibilizou para fazer a entrega “de tudo o que fosse preciso para a igreja”. Era, assim, que estava a ordem escrita.

Realizada, entretanto, a venda do palácio e da quinta, o conde veio à Figueira para ultimar tudo. O comprador foi o sr. Luís João Rosa, de quem também conto, neste caderno, uma pequena história.

Depois de tudo tratado com a venda, foi o conde a Tavarede para concluir as providências que havia ordenado ao seu feitor, quanto à embalagem da mobília, que tencionava enviar, pelo caminho de ferro, para a sua casa de Trancoso. Calcule-se, agora, o seu espanto quando o seu empregado lhe disse que a mobília havia-a levado o padre Joaquim da Costa e Silva, a quem a havia entregado em obediência às ordens do sr. conde, conforme o bilhete que lhe mandou e no qual dizia para “entregar o que fosse preciso para a igreja”.                                                 

Após dar umas voltas pelas salas, então já praticamente vazias, o conde, vendo que o padre, que lhe tinha pedido unicamente um guarda-roupa, lhe levara as principais peças de mobília que ainda cá tinha, teve o seguinte desabafo: “se a casa tivesse rodas também era capaz de a levar para casa dele”!

Alma bondosa, porém, nada mais disse ou empreendeu, e como não haviam restado senão umas “fracas coisas de mobília”, deu-as ao feitor e regressou a Trancoso de mãos vazias, relativamente à mobília que viera buscar a Tavarede.

O jornal, explorando o caso, acrescenta: “Quem for à igreja só lá vê um guarda-roupa, mas se forem a casa do meu amiguinho (o padre Costa e Silva), lá encontram um bom aparador e muitas outras coisas. O resto da mobília, como lhe não cabia toda em casa, tratou de mobilar a casa de um amigo”!

Entre outras peças, o jornal acrescenta que o pároco levou: “dois guarda-roupas, um importante aparador, duas boas mesas, um lavatório, uma banquinha, uma excelente mesa de jogo (até isto!!!) e não sei que mais”.

O padre, depois do conde se ter ido embora, tomou conhecimento da reacção do titular e comentou para com uns amigos que “a mobília tinha sido levada por ordem do conde”.

Comentário final: se a tinha dado, porque razão mandou o conde a Tavarede um seu empregado (Francisco Pires) com a incumbência de empalhar e embalar a mobília para a despachar pelo caminho de ferro? E porque razão, ao tomar conhecimento do caso, o conde havia comentado “se a casa tivesse rodas também a levava para casa dele?”. Estas palavras foram ouvidas por pessoas da terra, que as confirmaram ao correspondente do jornal.

Adianta ainda o referido correspondente que, depois, o pároco mandou chamar o feitor para que lhe contasse o que se havia passado e sabendo que o conde tinha ficado bastante zangado, principalmente por causa do aparador, que era um móvel muito valioso e pelo qual tinha particular estima, disse ao homem que estava pronto a devolver tudo que o conde quisesse, embora sempre  insistindo que ele lhe havia dado toda a mobília que havia trazido.

Não sei se o feitor comunicou para Trancoso esta informação do pároco mas, na verdade, o conde não quis mais saber do caso nem da mobília.

Alguns anos mais tarde, é o correspondente em Quiaios, do jornal “A Voz da Justiça”, que fala na mobília, numa pequena local daquela povoação, em Junho de 1905: “…….no jantar dado (pelo padre Joaquim da Costa e Silva, que fora, entretanto, transferido para Quiaios) foram muito apreciados uns pastéis com recheio de mogno, do conde de Tavarede, e uns pãezinhos feitos de milho da congrua que pertencia ao padre Manuel Vicente, actual pároco de Tavarede”.


Será que, na verdade, “a mobília do senhor conde” foi acabar a sua existência em Quiaios?  


Ruínas do palácio dos Condes de Tavarede

Tavarede no teatro - 12

      Terminado o resumo desta fantasia, é ocasião de passar aos comentários encontrados na imprensa figueirense. Mas, igualmente, é ocasião de fazer um esclarecimento a qualquer possível leitor destas notas. O movimento revolucionário de Maio de 1926, que derrubou a primeira República e que acabaria por instaurar o chamado “Estado Novo”, teve muitas implicações sociais e religiosas, além das políticas, claro, em todo o país. Tavarede não foi excepção e viveu momentos difíceis, especialmente no meio associativo. É um período, digamos, de cerca de dez anos, a partir de meados de 1926, que desperta a curiosidade e vale a pena conhecer. Sobre ele espero debruçar-me num outro trabalho.

         Mas o esclarecimento que cabe neste caderno é este: a própria imprensa figueirense de então, e não somente em notícias dos seus correspondentes locais, também se partidarizou, pelo menos durante alguns anos. E verifica-se esta situação anómala: “A Voz da Justiça” noticia, comenta e critica todos os espectáculos e acontecimentos relacionados com a Sociedade de Instrução e não publica uma linha sequer sobre a outra colectividade; por seu turno, “O Figueirense”, faz precisamente o contrário, noticiando tudo sobre o Grupo Musical, que, diga-se sem favor, também dispunha, naquele tempo, de um excelente grupo dramático, e esquecia completamente a Sociedade de Instrução. Quanto ao terceiro jornal existente, “O Dever”, de índole religiosa, enveredou mais pela linha de “O Figueirense”, mas pouco nos deixou de interesse para este trabalho.

         Quero dizer, pois, com este esclarecimento, que, salvo nos casos das fantasias “Em busca da Lúcia-Lima” e “Pátria Livre” (esta apresentada meses antes do referido movimento político), não é possível comparar críticas ou opiniões. É natural, portanto, e acredito muito nisso, que nas notícias encontradas haja um bocado de exagero. É natural, pois cada qual “puxaria a brasa à sua sardinha”. Prestado este esclarecimento e feito o aviso, qualquer leitor, repito, se o houver, deverá dar um pequeno “desconto” ao que lê e fazer o seu próprio juizo, se tal fôr possível.

         Relativamente a “Pátria Livre” o primeiro comentário que faço é este: no dia 5 de Janeiro de 1926, o correspondente de “A Voz da Justiça”, informava que “deve fazer-se amanhã o primeiro ensaio de leitura da revista em 1 acto e 3 quadros “Pátria Livre”, que será apresentada com a “Má-Sina”, na récita de gala do dia 16 do corrente. A revista tem 9 números de linda música, original e coordenada pelo distinto amador sr. António Simões. Conquanto faltem poucos dias, é de presumir que os nossos amadores, com a boa vontade de que estão animados, consigam dar à “Pátria Livre” uma representação brilhante”. (Como aparte, note-se a confirmação do que antes refiro. O correspondente diz expressamente os nossos amadores, fazendo-se ignorar de que havia um outro grupo de amadores em Tavarede e isto mesmo antes do citado movimento político).

         Mas, dizendo que o anunciado espectáculo de gala se realizou, efectivamente, no indicado dia 16, fico admiradíssimo como é que era possível, em cerca de 10 dias úteis, aprender papéis, marcações, ensaiar texto e músicas em tão curto espaço de tempo, mesmo considerando que se tratava de uma simples fantasia num acto e dois quadros, pois o terceiro quadro era, simplesmente, uma apoteose. Sem dúvida, fantástico!
         Passo, então, aos comentários. “A Voz da Justiça”, em 19 de Janeiro de 1926, escreveu: “.........era esta a principal atracção da récita. Havia um grande interesse pela representação da “Pátria Livre”, e pode dizer-se que a revista agradou plenamente. Os aplausos foram calorosos, entusiásticos, fazendo a assistência bisar quase todos os números de música. Houve chamadas ao autor, ao maestro e ao ensaiador. João Gaspar de Lemos Amorim e António Simões mereceram sem favor as prolongadas salvas de palmas que se ouviram – o primeiro, por ter escrito com alegre fantasia e uma certa irreverência o comentário ligeiro e gracioso de alguns acontecimentos e factos locais; e o segundo pela felicidade com que compôs e adaptou os números de música, alguns deles lindíssimos; mas não são menos dignos de elogio o espírito e a boa vontade com que os amadores se houveram, de modo a poderem representar a “Pátria Livre” apenas com 10 dias de ensaio. Não pode exigir-se mais de amadores de aldeia. A impressão geral da representação foi a melhor, sendo especialmente notadas a apresentação correcta e afinação dos coros. A orquestra, constituída por 14 figuras, magnífica”.

         Por sua vez, “O Figueirense” ainda noticiou este espectáculo, escrevendo somente: “....... e a revista em 1 acto e 3 quadros, do sr. João Gaspar de Lemos Amorim e música do sr. António Maria de Oliveira Simões, “Pátria Livre”, tendo concluído o espectáculo com uma apoteose e hino da Sociedade”.

         A “Gazeta da Figueira”, que cessaria a sua publicação no mês seguinte, também noticiou o espectáculo com “...... e a interessante revista “Pátria Livre”, da autoria do nosso ilustre conterrâneo sr. João Gaspar de Lemos Amorim e musicada pelo nosso querido amigo, dessa cidade, sr. António Maria de Oliveira Simões, cujo desempenho agradou completamente”.

         Quanto a comentários críticos, somente “A Voz da Justiça” escreveu que “a revista tem cor local, tem fantasia e uma certa vivacidade de comentário que prendem o espectador, e gira à volta deste acontecimento sensacional: a separação de Tavarede do concelho da Figueira, levada a cabo por uma revolução triunfante donde sai a proclamação da República do Limonete. Há grupos de efeito nos quais tanto as raparigas como os rapazes se apresentam vestidos com fantasia muito expressiva. Dignos de nota, especialmente, o número da Fonte e coro das Bilhas e o coro de Ceifeiras e Cavadores, cantados com perfeita afinação por toda a massa coral”.


         E termino as notas sobre a “Pátria Livre” com mais um simples comentário. Estes dois números referidos na notícia acima, todos nós os conhecemos. O primeiro, alegre e saltitante, é obrigatório em todas as evocações que se têm feito, pela alegria contagiante que irradia; e o segundo, que está simbolizado para sempre numa pequena placa, junto da estátua ao Cavador, numa rotunda de Tavarede, é bem a expressão real do passado, não muito longínquo, da terra do limonete, evocando os nossos antepassados, cavadores e ceifeiras, trabalhadores das terras tavaredenses, onde com o seu trabalho esforçado e bem suado, arrancavam o seu pão e de suas famílias. Honradamente, e cantando com toda a alegria, a riqueza da Vida e do Trabalho.

sábado, 22 de agosto de 2015

Tavarede - A terra de meus avós - 20

O fornecimento de água à Figueira




         No dia 1 de Janeiro de 1889, numa notícia inserida no jornal “Correio da Figueira”, escreve-se a local seguinte: “Prosseguem os trabalhos para a captagem das águas, acima de Tavarede, estando já perfurados aproximadamente 250 metros de galeria. Começou-se o assentamento da canalização, que se acha efectuado desde o Largo do Pinhal, onde tem de ser construído o reservatório, até próximo de Tavarede, numa extensão de mais de 900 metros, que atravessam o caminho da Esperança, e propriedades dos senhores José Joaquim Fernandes Águas e conde de Tavarede. A tubagem desde o reservatório à origem, mede um pouco mais de 3.000 metros”. Na semana seguinte, acrescenta: “Já começou a escavação, no alto do Pinhal, para se construir o depósito, ou grande reservatório de água, que há-de abastecer a Figueira. Pela altura em que aquele sitio fica, virá a água naturalmente, e pela simples pressão, a todos os pontos da cidade. A canalização atravessou hoje a estrada de Tavarede, em direcção à galeria”.

         Bem sei que não é uma história o que vou contar sobre o que aconteceu com a captação das águas do Prazo para abastecimento à Figueira. Sem dúvida que a cidade, em franca expansão e desenvolvimento naqueles anos, tinha absoluta necessidade de água. Até então o fornecimento era feito pelas fontes da Várzea e da Lapa, principalmente, onde iam buscar a água de que careciam, e por um ou outro poço, cuja água fosse considerada potável. Depois de vários estudos feitos por técnicos especializados, optou-se pela captação do Prazo. Segundo veremos, pelas transcrições que adiante faço, resolveram o problema para alguns anos mas, em compensação, Tavarede, nas suas hortas e várzeas, viu-se despojada de um bem que tinha tão abundante e de tão boa qualidade.

         Como acima referi, não vou contar uma história. Mas, acredito, muita gente haverá que gostará de conhecer esta “história”. Não foi pacífica esta exploração. Os estudos, como iremos ver, iniciaram-se em 1880, mas só em Agosto de 1889 “terminaram as questões levantadas a propósito da compra das águas, ou antes do direito de as procurar na propriedade do Prazo, onde a Companhia do Gás e Água desta cidade encetara os seus trabalhos. Pela compra total da propriedade, ficou a companhia possuidora do terreno da questão, podendo agora aproveitar todas as águas ali nascentes – salvo o direito a quem se julgue prejudicado. É caso para nos felicitarmos muito sinceramente, pois o fornecimento de boa água é para a Figueira um objecto de primeira necessidade. E felicitamos igualmente a companhia, muito em especial se findaram de vez os obstáculos a que ela realize os fins a que se propunha”.

         E antes de iniciar a começo da viagem, vou já transcrever uma notícia demonstrativa das consequências desta exploração das águas. Vem na “Gazeta da Figueira” de 6 de Maio de 1899:

         “Aproxima-se o tempo mais ardente do verão e com ele as questões que todos os anos se dão aqui entre os lavradores, motivadas pela falta de água para as regas das suas terras da Várzea, Serrado, Solão, etc. A todos custa ver definharem-se pela sede as suas culturas, cuja sementeira tantos sacrifícios lhes importou, vendo se por isso obrigados a recorrer de qualquer forma ao meio de conduzirem a água ás suas valas, por mais longínquas que elas sejam.
         A divisão da água para aqueles pontos é feita no rio, local junto à Igreja, e é ali que todos os dias se levantam questões entre os lavradores, que muitas vezes chegam a tomar carácter de gravidade. Querem uns ser senhores da água continuadamente, quando outros esperam pela sua vez dez, doze, quinze e mais dias!
         E não haveria meio mais fácil de obstar a estas desigualdades? Não poderia a autoridade administrativa encarregar o regedor desta freguesia de estabelecer a forma de todos se remediarem com a pouca água que infelizmente chega ao local da divisão, sem haver queixas contra o abuso de alguns indivíduos?
         Seria bom que este assunto fosse estudado por quem compete olhar pela manutenção da ordem pública, evitando assim que muitas pessoas dignas de respeito e que têm necessidade de fazer conduzir a água para os seus prédios, ainda que tardiamente, sofram por várias vezes desgostos, ouvindo insultos que lhes dirigem certos indivíduos sem educação, que só vivem praticando o mal. Em contrário, teremos mais dia menos dia que lamentar as funestas consequências deste desleixo.
         E dizemos desleixo, porque já de há muitos anos se dão aqui estes factos, sem que até hoje se dignasse dar-lhes as devidas providências qualquer autoridade local, tornando-se portanto necessário que se encare a sério esta questão que, como acima dizemos, pode redundar num grave conflito”.

         Sem mais, vamos, então, até ao ano de 1880. Na apresentação do projecto, que teve como objectivo a “aquisição de águas subterrâneas e execução das obras necessárias para as conduzir à povoação e distribuição destas pelas fontes e pelos domicílios”.

         O projecto compunha-se de três partes principais:

         1º Drenagem do solo por um sistema de galerias subterrâneas para a captação das águas, na região superior do vale da ribeira de Tavarede, no sítio denominado o Prazo;
         2º Assentamento da canalização de ferro para a condução das águas à vila;
         3º Construção de um reservatório no alto do Pinhal numa altitude superior à de todas as casas da vila, para a fácil e regular distribuição da água pelos chafarizes, que se julgue conveniente estabelecer, e pelos domicílios, quando mais tarde se pretenda este desideratum.

         Como não havia à superfície do solo, nos arrabaldes da Figueira, nenhuma nascente assaz copiosa que fornecesse só por si o volume de águas necessário para o abastecimento da vila, foi necessário o recurso à exploração subterrânea. O sítio escolhido para a exploração deveria satisfazer, simultaneamente, às duas condições principais: fornecer água em abundância e fornecê-la em altitude bastante para que, chegando à Figueira com cota assaz elevada, pudesse a todo o tempo distribuir-se pelos domicílios sem haver necessidade de a levantar. Estas condições encontraram-nas, à perfeição, no vale do Prazo, acrescendo a circunstância importantíssima que os trabalhos ali se poderiam estabelecer de forma a que se desenvolvessem quase indefinidamente para o futuro, quando o aumento da população e as crescentes necessidades do consumo deste elemento tão precioso o exigissem. Neste caso, como sabemos, falharam os cálculos, pois poucas décadas depois tiveram de recorrer a novas captações noutros locais.

         O relatório prossegue referindo que o vale de Tavarede era, de todos os que descem da Serra da Boa Viagem, o que corria em mais baixo nível, cortando transversalmente uma espessíssima série de camadas permeáveis, sendo nos seus flancos que brota o maior número de nascentes. “A água vê-se com efeito romper por toda a parte, e especialmente no fundo dos vales e das quebradas, uma vegetação activa e louçã, plenamente atesta a frescura do solo”. E prossegue: “segundo os nossos trabalhos de exploração em nível inferior ao alvéo  da ribeira, é claro que as galerias que abrirmos colherão toda a água que as camadas contiverem no maciço superior ao plano em que eles forem estabelecidos, maciço importantíssimo, pois o relevo do solo sobe rapidamente nos dois flancos do vale, não havendo em toda a extensão da serra nenhuns pontos de descarga mais baixos do que este vale”.

           Mais adiante o relatório escreve “não é simplesmente o facto da existência das nascentes à superfície do solo do vale do Prazo, nascentes aliás valiosas, a base do conselho para esta exploração de águas: foram principalmente considerações geológicas que firmaram esta escolha. Com efeito, além destas manifestações exteriores, que revelam a existência de consideráveis massas de água, no interior do solo, a garantia da permanência dessas nascentes, sobretudo quando sejam exploradas em nível superior ao alveo da ribeira, está assegurada pela composição íntima e estrutura do solo, que é constituído por camadas pela maior parte muito permeáveis, sobrepondo-se do sul para o norte concordantemente, e com fraco pendor umas às outras, e inflectindo-se do Cabo Mondego para Maiorca em forma de bacia, da qual a Figueira ocupa o centro”. Prossegue depois: “A exploração que propomos será por estes motivos, pois, a mais produtiva, e muito de presumir (ou quase certo) que poderá suspender-se muito antes do limite assinalado do projecto. Os trabalhos são além disso estabelecidos de modo que não comprometem as explorações futuras, antes podem sucessivamente desenvolver-se quando convier, sem que esta ampliação do fornecimento embarace nunca o abastecimento usual. Para isso bastará abrir, pelo mesmo sistema, em nível superior ao dos trabalhos existentes, e para montante do extremo superior da galeria colectiva, uma rede de galerias análogas, que poderá estender-se até às nascentes do Olho de Perdiz, onde nasce a ribeira de Tavarede, ou ainda mais além através da serra, estabelecendo-se a ligação dos novos trabalhos com os trabalhos antigos só depois que aqueles estejam terminados”.

         O relatório continua depois com a parte técnica das obras a realizar para as captações e transporte da água até ao Pinhal, donde partirá a distribuição pela Figueira. Não adianta mais transcrições. O que atrás fica escrito, chega bem para saber como era o vale do Prazo abundante em águas que, pela ribeira de Tavarede, regavam em profusão todas as nossas hortas e várzeas, até ir desaguar no Mondego. Durante anos, Tavarede matou a sede à Figueira. Os projectos diziam que nunca faltaria a água. Não foram precisos muitos anos para o contrário ser uma triste realidade.




No vale de S. Paio

Tavarede no Teatro - 11


         E tinham muito trabalho. “Então agora, com a revolução cá na terra, tem sido um lavar de ceroulas nunca visto...”.

         O personagem seguinte era o grande cacique, o maior trunfo eleitoral da terra. Mas as coisas, como passaram a estar com a nova república, não lhe estavam a correr nada bem... Chamam-lhe o “Beiçudo”. Ao ser questionado se queria dizer alguma coisa para a imprensa, queixa-se que a gente da aldeia eram todos uns ingratos e canta:

                                               Cá destas terras
                                               Sou o mandão.
                                               Autoridades
                                               Tenho na mão.

                                               Livro rapazes
                                               C’um safanão.
                                               Ninguém me excede
                                               Na votação.

                                               Tudo isto à custa
                                               Do carrascão
                                               Fazendo sempre
                                               Um figurão.

                                               Mas não percebo
                                               Mandando em tudo
                                               Como nas urnas
                                               Levo cascudo.

                                               Acho este caso
                                               Muito bicudo.
                                               Parece mesmo
                                               Parte d’entrudo.

                                               Por isso eu ando
                                               Tristonho e mudo,
                                               E já me chamam
                                               Grande Beiçudo!

         Depois de ele sair, o jornalista pergunta a razão de chamarem à terra a pátria da Lúcia-Lima, “se diziam que esta planta tinha vindo da China?”.

         Não. A Lúcia-Lima é de cá e muito de cá. Vegeta galhardamente por estes sítios e toda a gente lhe chama limonete... O resto era história. A história de “dois brasileiros, ricos como porcos, que vieram a Tavarede de aeroplano, em busca da Lúcia-Lima, supondo ser uma mulher. E, em virtude duma tramóia que o mariola dum tal Pinga-Amor lhes armou, foram parar à China. Dali regressaram a Tavarede, mas o que trouxeram não foi a Lúcia-Lima, foi uma chinesinha, por sinal bem linda, que canta na perfeição as cantigas do seu país e a quem toda a gente chama a Cotovia...”.

         Entra Cotovia que, a pedido do governador, canta para o visitante a canção que tem o seu nome e que já conhecemos.

         Gostou imenso o jornalista e, quando entrou o presidente da República e o Comandante das Tropas, que vinham saber como havia corrido a visita, começaram a ouvir, lá ao longe, um coro, que se foi aproximando: “é a malta dos cavadores e o rancho das ceifeiras, que vão pegar no trabalho depois do jantar...”.

                            (coro)           Desde manhã ao sol posto
                                               Arado ou foice na mão
                                               Seja inverno ou seja Agosto
                                               Ceifamos a loira espiga
                                               Ou pomos à terra o grão.

                            (cavadores)               Vamos todos sem cansaço
                                                                  Na terra dura
                                                                  Cavar, cavar.
                                                        A força do nosso braço
                                                                  Trás a fartura
                                                                  Do nosso lar.

                            (ceifeiras)                Somos as ledas ceifeiras
                                                        Que vão as messes trigueiras
                                                                  Segar, ceifar,
                                                                  Sempre ligeiras,
                                                                  Sempre a cantar,
                                                                           A cantar.

                            (coro)                     Cavar, ceifar,
                                                        Ceifar, cavar,
                                                        Sem descansar.

         E prepara-se a apoteose final, em louvor do trabalho, enquanto o jornalista, encantado com o que vê e ouve, diz “grande coisa é o trabalho! Dá alegria, dá saúde, dá vida!” Ao que responde o presidente: “O trabalho consola, o trabalho dignifica quando é honesto e orientado para bom fim. Veja esta gente. Após horas de labutação e canseira, ainda canta e sente-se feliz”.

         Com entusiasmo continua: “A sua alegria é sincera. Gente admirável, os trabalhadores das nossas aldeias! Ainda brilha no céu a estrela de alva, saltam eles da cama, lestos e bem dispostos como quem vai para uma festa. E de enxada ao ombro, uma broa no bornal, um trauteio de cantiga na boca, tão contentes como pardais em Julho, lá vão para a faina de cada dia, a revolver a terra maternal, donde há de saír a mantença de todos, a abastança, a conservação da vida. São eles, os tisnados e rudes cavadores, de riso claro e bom, alma lavada e braço forte, o amparo, o sustentáculo duma Pátria Livre!”.

         E é no meio de imensa animação e alegria que cai o pano sobre a apoteose ao “Trabalho”.

domingo, 16 de agosto de 2015

Tavaredee - A terra de meus avós - 19

De casa de cultura a… taberna!


         No livro “50 Anos ao Serviço do Povo”, ao recordar as casas “onde se representavam peças que fizeram correr rios de lágrimas e provocaram indigestões de gargalhadas”, Mestre José Ribeiro escreve que, entre outras, havia a de Joaquim Águas, pai do velho capitão José Joaquim Alves Fernandes Águas, “prédio em que mais tarde esteve o Grupo Musical Tavaredense”.

         Bem sei que já no segundo caderno destas recordações me referi a esta casa, muito em especial quando nela tiveram a sua sede o Grupo Musical e de Instrução Tavaredense, nos anos de 1914 a 1930 e, depois, o Grémio Educativo e de Instrução Tavaredense, entre 1931 e 1935. É natural, portanto, que me repita nalgumas breves notas, mas considero necessário recordá-las para bem contar a história que se segue, considerando que a casa teve um papel importantíssimo no desenvolvimento cultural na nossa terra, durante mais de cinquenta anos, e que, por circunstâncias várias que procuraremos comentar no decorrer da história, acabou ingloriamente em ruínas, na segunda metade dos anos trinta do século passado, acabando por ter sido reconstruída e reconvertida em estabelecimento de mercearias e vinhos, para se não dizer “taberna” que, aliás, ainda conhecemos muito bem.

         Não o fazendo totalmente, ocupava uma boa parte do quarteirão que, actualmente, é limitado a sul, pela Rua A Voz da Justiça, a norte, pela Rua do Grupo Musical e de Instrução Tavaredense, do nascente, pelo Largo D. Maria Amália de Carvalho, e do poente, pela Rua D. Francisco de Mendanha.

         “Duas casas, próximo do Largo do Forno. Pertenceram ao falecido Joaquim Alves Fernandes Águas, operário tanoeiro, que ao mesmo tempo empregava algumas vagas do seu labor no trato do amanho da sua quinta do Peso, não muito longe situada ao norte da povoação. Vivia ali com a sua prole, bastante extensa, filhos e filhas, que foram criados senão com uma educação almiscarada de salão, pelo menos educados regularmente, bem morigerados, decentes e eivados de espírito trabalhador”.

         Já sabemos quem foi este Joaquim Águas, que, pelos anos setenta do século dezanove, veio para a Figueira, onde começou por abrir uma oficina de tanoaria, a que se seguiu a fundação, com seus filhos, da casa Águas & Cª., que foi uma sociedade comercial de sucesso, especialmente no comércio e exportação de vinhos e seus derivados e nos transportes marítimos, de curto e longo curso.

         Ainda em Tavarede, o velho Águas, para quem o tradicional “Presépio” era o melhor dos seus divertimentos, resolveu instalar, numa daquelas casas, um pequeno teatrinho, onde ele e seus filhos representaram diversas peças, especialmente aquela sobre o  nascimento de Jesus, ficando registada a interessante notícia de que, nalgumas representações, os amadores se “travestiam”, ou seja, as mulheres representavam de homens e os homens de mulheres.

         Com a mudança para a Figueira da Foz da família Águas, a casa em que residiam julgo que terá passado a ser a morada do então pároco de Tavarede, o padre António Augusto da Silva Nobreza, pois que, em “Recordações de Tavarede” se escreve “na casa da Rua Direita onde habitava o falecido velho Águas, está hoje o digno pároco da freguesia, sr. Joaquim da Costa e Silva, um ornamento da vida eclesiástica, que bem concebe, perante a ciência do século, qual o seu lugar como padre e como cidadão”. Presumo, portanto, que durante alguns anos tenha sido a residência paroquial.

         Na casa ao lado, onde havia sido montado o pequeno e tosco teatro, instalou-se em 1895, o intitulado “Bijou Feminino”. Este teatro era animado pelo conhecido artista canteiro António da Silva Proa, enquanto que, certamente por influência de seu filho, João Nunes da Silva Proa, se organizou uma tuna que, em 1896, era dirigida por J. Teixeira Ferreira, “muito ilustrado professor nesta cidade”. Esta associação, “Bijou”, foi muito acarinhada pelo capitalista e fundador da Quinta do Robim, o sr. João António da Luz Robim Borges, e pelo reverendo Joaquim da Costa e Silva, que muito se interessou pelo teatro e pela organização da tuna, chegando a “andar de porta em porta pedindo aos sócios da Estudantina para saírem dela e irem para uma outra que ele quer organizar”.

         A casa do teatrinho ficou vaga quando acabou a actividade do “Bijou Tavaredense”. Não devo estar errado se disser que o seu declínio se terá ficado a dever ao falecimento, em Maio de 1897, do seu principal protector, o sr. Robim Borges.

         Em Julho de 1914, uma notícia na “Gazeta da Figueira”, escreve: “O apreciado Grupo Musical Tavaredense acaba de mudar a sua sede para os prédios ultimamente comprados pelo seu dedicado sócio protector, sr. Manuel da Silva Jordão, dos Carritos, os quais ficam situados mesmo ao centro da povoação e são aproveitados para a instalação da aula de música e de um elegante teatrinho, que já anda a ser construído. A direcção do Grupo Musical está muito grata para com o seu consócio sr. Jordão, por esta gentileza que muito concorre para o engrandecimento da agremiação”.

         Já sabemos que estas casas eram as antigas casas da família Águas. O Grupo Musical, que se havia fundado em Agosto de 1911 e desenvolvia as suas actividades teatrais e musicais numa loja junto ao Largo do Paço, em condições muito deficientes, aceitou a oferta daquele seu benfeitor,
 que a havia feito “motivado pelos fins propostos pelos activos dirigentes da nova associação”, e que, além disso, colaborou financeiramente nas obras necessárias para a construção de uma boa sala de espectáculos.

         A inauguração teve lugar em Janeiro de 1915.

         A partir de então, a colectividade tomou grande incremento cultural, desdobrando a sua actividade pelo teatro, música, escola nocturna, ginástica, desporto e convívio e tal foi o desenvolvimento que, poucos anos decorridos, se viu na necessidade de fazer novas obras para boa acomodação de todas estas actividades.

         Também já lhes contei a compra da sede pelo Grupo Musical àquele seu sócio protector, em condições excepcionais. Todavia, os gastos feitos com as obras de transformação da casa foram muito elevados e, apesar das tais “condições excepcionais”, a verdade é que em 1928, mais de cinco anos depois da compra, ainda faltava pagar cerca de metade.

         Bem se esforçaram os grupistas para satisfazerem o pagamento que o sr. Jordão acabou por exigir, por carta de Junho de 1928, lhe fosse feito em Novembro desse ano. Fizeram espectáculos em diversas localidades, com o grupo dramático e com a tuna, na tentativa de obterem fundos, pelo menos para amortizarem a dívida, pois, na verdade, nunca entregaram mais qualquer importância, falhando inteiramente as condições acordadas. Até garraiadas no Coliseu Figueirense, mas tudo foi insuficiente.

         Ainda tentaram um empréstimo bancário com hipoteca do edifício, mas as negociações com a agência do Banco de Portugal na Figueira não se concretizaram. E assim, embora com bastante mágoa de todos, foram obrigados a pôr a casa em venda.

Apenas como curiosidade, recordo este facto muito interessante: Em 1915, o sr. Manuel da Silva Jordão foi nomeado sócio benemérito e foi-lhe descerrado o retrato, num ambiente de enorme entusiasmo. Em Maio de 1924, o sr. Jordão concorda em vender o edifício, concedendo-lhes as maiores facilidades para o pagamento; em Março de 1929, “o presidente da direcção deu conhecimento que já havia liquidado contas com o principal credor do Grupo, sr. Manuel da Silva Jordão, propondo que o mesmo sr. fosse suspenso de sócio até à realização da primeira Assembleia Geral, pela qual deverá ser demitido, para o que se tem em vista o que se encontra estatuído, pois não só difamou o Grupo como menosprezou a honorabilidade de todos os componentes da sua direcção e ainda que, em atenção à incorrecção manifestada, ou por outra, posta em prática pelo mesmo sr. Jordão, propôs também que lhe fosse retirado imediatamente, da nossa sala de espectáculos, a sua fotografia, que ali se achava exposta…”. Passou, assim, de desejado a indesejado, de benemérito e protector a difamador!...

Quais as razões concretas? Por querer receber o seu dinheiro? Concretamente não sei, mas estou inteiramente convencido que houve interferências e interesses estranhos.

A casa foi comprada por um tavaredense, António de Oliveira Lopes. Uma das condições contratuais, era a de que o Grupo continuaria ali instalado mediante o pagamento de uma renda. Note-se que o comprador, à data da operação, era um dos directores da colectividade.

Os esforços realizados acabaram num fracasso. Os encargos assumidos com as obras, que também não haviam sido completamente pagos, e, talvez os tais interesses estranhos, levaram a que o novo proprietário da casa, poucos meses após a compra, não vendo liquidadas as rendas já vencidas, meteu uma acção de despejo em Tribunal e o Grupo Musical foi obrigado a deixar aquelas instalações que tanto sacrifício haviam exigido!

Antes de avançar com a nossa história, entendo conveniente fazer um breve comentário que, talvez, explique em parte a situação acima referida.

No dia 12 de Agosto de 1928, domingo, havia partido de manhã uma excursão, em camioneta de aluguer, com tavaredenses e figueirenses que, sob a direcção do reverendo padre Manuel Vicente, foram em peregrinação a Fátima, afim de participarem nas cerimónias religiosas que ali se realizariam nessa noite e no dia seguinte.

Por volta das 5 horas da tarde e no lugar de Reguengo do Fetal, entre Batalha e Fátima, uma ultrapassagem mal feita por uma outra camioneta, fez com que o condutor da camioneta da peregrinação tavaredense perdesse a direcção e, resvalando para um declive, a camioneta desse uma volta sobre si antes de se imobilizar.

Com gravidade ficaram somente feridos dois peregrinos: Abílio Simões Baltazar, um dos proprietários da Quinta do Robim, que dado o seu estado crítico foi enviado para casa, onde faleceu pouco depois da chegada “no meio de horrorosos sofrimentos” e o padre Manuel Vicente, que sofreu uma forte comoção cerebral e apresentava contusões graves. Foi internado no hospital de Leiria e, apesar de todos os socorros prestados, ali faleceu poucos dias depois.

O padre Manuel Vicente era muito acarinhado e admirado pelo povo da freguesia. O seu trato afável havia conquistado a maioria dos tavaredenses e chegou a acompanhar, com relativa actividade, a vida associativa local. Só assim se compreende que, ao contrário do que se verificou em tantas outras paróquias, o padre Manuel Vicente tenha atravessado, com alguma facilidade, dois períodos bastante difíceis. Primeiro, em 1910, com a implantação da República e as fortes lutas contra os tradicionais privilégios da Igreja, e depois o 28 de Maio de 1926, que terminou com o regime republicano e do qual veio a resultar a sinistra ditadura salazarista.

Para sua substituição foi nomeado o reverendo padre José Martins da Cruz Dinis. Muito jovem, acabara de ser ordenado padre, bastante inteligente e declaradamente conservador, logo tentou a “reconversão” dos seus novos paroquianos, pois havia ficado muito surpreendido com a pouca participação religiosa da maioria da população local.

As colectividades eram um local propício à participação popular, pelas actividades que desenvolviam. E o novo pároco de imediato pensou na fundação de uma nova colectividade, intimamente ligada à religião.

Não vou especular o caso, mas, na verdade, ainda bem conhecemos os responsáveis do Grupo Musical daquela época. Os republicanos liberais, digamos assim, acabaram por levar o Grupo para as instalações do Paço, onde se mantiveram durante muitos anos. Os restantes, muito religiosos e conservadores, não os acompanharam.

Pouco tempo depois do despejo do Grupo Musical, o proprietário António Lopes vendeu o edifício à Diocese de Coimbra, pois a sociedade “Predial Económica”, em nome de quem foi feita a escritura, era propriedade, na totalidade, daquela Diocese.

Sabe-se que a compra foi feita devido à influência do padre Cruz Dinis. Sabe-se que um dos seus ideais era fundar uma colectividade de índole religiosa. Estará aqui a explicação para o “ultimato” feito pelo sr. Jordão ao Grupo Musical? Não avanço mais na especulação, mas sempre digo que, pelo que apurei, aquele senhor era católico praticante.

No ano de 1931 é fundado o Grémio Educativo e de Instrução Tavaredense. Foi seu presidente da Direcção o reverendo Cruz Dinis.

Aquela casa continuou, então, a sua acção cultural. As instalações, no dizer da imprensa figueirense, eram das melhores em aldeias do concelho. Aos amadores do teatro e da música que não haviam seguido com o Grupo Musical, outros se juntaram. Além de alguns espectáculos, muito em especial dirigidos às crianças, também a colectividade passou a dar aulas nocturnas, sob a direcção do padre Dinis que, anteriormente, dava as lições na sua residência.
relativo àquele
Não quero questionar a actividade religiosa, educacional e cultural daquele pároco. Ela foi grande, é fora de dúvidas. No entanto, e em minha opinião, depois de ter lido e relido tudo quanto há para ler, período, ele politizou em demasia a sua acção. Foram anos de duras e violentas lutas. Republicanos e conservadores, estes protegidos pela capa ditatorial do novo regime, defrontavam-se ferozmente, em especial nos órgãos jornalísticos que lhes davam cobertura.

E em Setembro de 1935, o reverendo padre José Martins da Cruz Dinis foi transferido, a seu pedido, para a paróquia de S. Paulo de Frades, em Coimbra, depois de aqui ter permanecido 7 anos.

Com ele acabou o Grémio Educativo. Ele era a sua alma. Mas, a nossa casa, continuou de pé. A obra cultural lá realizada durante tantos anos acabara de vez. Mas a nossa história ainda não acaba aqui. Continuemos.

Sem actividade, naturalmente que o edifício se começou a degradar. O proprietário estava longe, em Coimbra, e a Diocese interessou-se mais em vender a casa do que em fazer obras.

No dia 22 de Outubro de 1938, o jornal “O Figueirense” publicou a seguinte local sob o título “Incoerências”:

“O último número do semanário da Figueira da Foz “O Dever”, publica um interessante e oportuno artigo anónimo, sobre “tabernas”, com que estamos inteiramente de acordo, dada a boa doutrina que defende.
Nele se classifica a taberna de enorme desgraça individual e social e “o maior foco de infecção social”, o que ninguém se atreverá a contestar.
O pior é que, noutro local do mesmo número, se considera acertada a resolução dum proprietário, vendendo, para instalação duma taberna, a casa que possuía em Tavarede – Figueira da Foz, outrora sede duma associação católica.
Afinal, é bico ou cabeça?
Sem comentários…
O que o prezado colega não sabe é que a propriedade em referência, era pertença dum alto dignitário eclesiástico e a sua resolução é tanto mais para deplorar quanto é certo que a venda do prédio foi feita sonegadamente, depois de prometido à Comissão Organizadora para instalação da Casa do Povo de Tavarede”.

 Como se vê tinha sido organizada uma comissão para instalar, na nossa terra, uma Casa do Povo, um dos organismos corporativos que o regime ditatorial espalhou com abundância pelo país, sob a tutela da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, argumentando casas de cultura e recreio populares mas, efectivamente, com o objectivo maior de fazer propaganda à sua ideologia política.

A casa onde esteve instalado o Grémio Educativo pertencia à Diocese de Coimbra. Ora, e com muita lógica, a referida Comissão Organizadora pensou que aquele edifício, já meio degradado, era uma boa solução para a instalação da Casa do Povo, fazendo, claro, as necessárias obras.

Poucos dias depois daquela notícia, em correspondência de Tavarede, “O Dever” escreve: “Segundo nos consta e é voz corrente, o Governo vai entregar à comissão organizadora da Casa do Povo de Tavarede, a quantia de trinta ou trinta e cinco contos para a construção da Casa do Povo de Tavarede, em local apropriado, pois que a casa que foi sede do Grémio não foi achada em condições, não só por se ter reconhecido pequena, mas por estar muito deteriorada.
…………………..
Afinal, temos de felicitar-nos por a casa do Grémio ter sido vendida, sem o que não teríamos um edifício novo para a Casa do Povo, e que foi apenas leviandade o barulho agressivo contra as pessoas julgadas com intervenção na sua venda”.

Começou, de imediato, tremenda polémica. A comissão organizadora, em carta dirigida àquele periódico procura rebater a notícia e escreve em determinado lugar: “…… Também não tem o menor fundamento que a chamada casa do Grémio, que a Comissão se propunha adquirir contraindo um empréstimo particular, fosse reprovada por ser pequena e estar deteriorada. Pelo contrário, foi e continua a ser considerada a que reúne as melhores condições de adaptação e ampliação (quando necessária) de todos os prédios existentes nesta povoação. Seria, além disso, ingenuidade supor que com 30 ou 35 contos (que se não sabe se virão) obteríamos um prédio novo, maior, e em melhores circunstâncias”. Termina a carta com a bem conhecida frase “A bem da Nação”.

Eu não queria alongar-me muito com algumas transcrições desta polémica. Ela foi longa. Mas, para que bem se fique a conhecer a história da casa em questão, terei de fazer mais algumas pequenas transcrições, das partes mais significativas e que me parecem de mais interesse.

O que estava em causa era se o Bispo de Coimbra, conhecedor dos desejos da Comissão Organizadora da Casa do Povo tinha ou não tinha prometido vender-lhes a casa. “O Dever” dizia que não e alegava:

“……… Mas porque não comprou? Desde que sugerimos a fundação da Casa do Povo de Tavarede – fomos nós da ideia – até à venda da casa do Grémio, decorreram muitos meses.
Desde que a Junta de Freguesia e muitas outras pessoas tiveram conhecimento da existência dum segundo pretendente, até ao encerramento do contrato de venda, decorreu tempo mais que suficiente para se prevenir. A sociedade proprietária teria muito prazer em vender o seu prédio para instalação da Casa do Povo, desde que alguém aparecesse com dinheiro e disposto a fechar contrato real e imediatamente”.

Mais à frente, acrescenta: “Isto mostra bem que o nosso correspondente teve razão em achar acertada a venda a um comprador certo, para se evitarem maiores prejuízos, visto que a Casa do Povo, em organização, ainda hoje não é comprador, pois hesita no caminho a seguir; e, portanto, que foi leviandade grosseira o barulho agressivo contra as pessoas julgadas com intervenção na sua venda. Os 35 contos do Estado, com alguns contos de compra e adaptação com que a Comissão se propunha adquirir e casa do Grémio contraindo um empréstimo particular, dariam mais de 60 contos com o que, é absolutamente certo, se construiria uma casa melhor do que a do Grémio, tanto mais que seria possível obter terreno de graça e outras ajudas”.

O debate jornalístico tornou-se inevitável. Por seu lado, a Comissão Organizadora tentava, com todos os elementos de que dispunha, argumentar que tinha razão, pois que o Bispo de Coimbra havia-lhes prometido todo o apoio e esse apoio, entendiam eles, incluía a cedência da casa.

Os meses de Novembro e Dezembro de 1938 foram férteis em comunicados de defesa, de ataque e, até, de questões que, na verdade, nada tinham com o problema, pois alguns foram meros ataques pessoais. Como recordação fica o nome dos dois principais intervenientes nesta longa polémica: em “O Dever”, que defendia a venda a um particular, o padre Alfredo de Melo Abrantes Couto, prior de Buarcos e encarregado temporariamente da paróquia de Tavarede, e em “O Figueirense”, em nome da Comissão Organizadora, esteve Belarmino Pedro.

Conheci relativamente bem os dois. Posso adiantar que, durante os poucos anos que o padre Abrantes Couto foi responsável pela paróquia de Tavarede, não teve vida nada fácil. Queixava-se, bastante, que o parco rendimento que aqui tirava, nem de longe nem de perto compensava o seu trabalho. Belarmino Pedro, que posteriormente integrou a redacção do jornal “A Voz da Figueira”, foi interveniente em várias polémicas com pessoas ou sobre assuntos da nossa terra, algumas, igualmente, bastante violentas.

Nesta história, se calhar, todos teriam razão. Ou talvez não. A verdade é que, com promessas ou sem promessas, a casa teve outro destino. Também, e como se sabe, a fundação do tal organismo corporativo, a Casa do Povo de Tavarede, prevista pela interessadíssima comissão, que tão brava e heroicamente lutou pela sua fundação, não passou de uma “vã quimera”, ou de um sonho que se esfumou.

Pelos vistos, o apoio que esperava do Estado e que estimaram em 30 ou 35 contos, que era bastante dinheiro para a época, nunca terá sido prometido e muito menos disponibilizado. Como aparte, indico que o prédio havia sido adquirido a António Lopes por 24 contos e foi vendido a António Pedro Carvalho por 10.

O que verdadeiramente interessava era contar a história daquela velha casa. Talvez tenha abusado nas transcrições, mas posso dizer que só transcrevi uma pequeníssima parte, mas o que não foi transcrito, além de nada mais adiantar, tornaria demasiado enfadonha a história. Preferi, e entendo que com acerto, ficar por aqui.

E vou concluir com um facto bastante irónico. O novo proprietário da casa, que a reconstruíu e onde montou um estabelecimento de mercearias e vinhos, onde não faltava uma grande taberna e um retiro, no quintal, para os petiscos e para jogos diversos, conhecedor de toda a polémica que a sua compra desencadeou e sabendo qual era a finalidade para que queriam as antigas instalações associativas, resolveu, talvez sarcasticamente, dar um nome ao seu novo estabelecimento. Chamou-lhe, e mandou escrever na fachada do edifício, em letras enormes, “A LOJA DO POVO”.


Sem mais comentários!