sexta-feira, 25 de abril de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete -73

         Ainda neste mesmo ano de 1956, uma iniciativa houve que mereceu enorme apoio. A Sociedade carecia de obras na sua sede. Para tal, e graças ao projecto graciosamente oferecido pelo arquitecto José Isaias Cardoso, meteram ombros a uma trabalhosa campanha para a angariação de fundos. A imprensa colaborou e a ‘Campanha do Tijolo’ recebeu o melhor acolhimento. Acabaria por ser a Fundação Gulbenkian quem tornou as obras possíveis.

         Entretanto, e pelo aniversário de 1957, foi apresentada a peça A conspiradora. A mencionada ‘Campanha do Tijolo’ começava a produzir os seus ferutos. Tavarede recebeu mais uma embaixada, que aqui veio prestar homenagem à Sociedade de Instrução. Foi uma embaixada sintrense. Como aqui foi noticiado, nos passados dias 26 e 27 de Janeiro esteve em festa, comemorativa dos seus gloriosos 53 anos de activa e generosa existência, a beneméria Sociedade de Instrução Tavaredense, conceituada pioneira da educação e instrução popular, desde sempre a espalhar o bem pelas instituições de caridade, merecedoras de carinhoso auxilio, tanto no distrito de Coimbra, onde o conceito do seu afamado grupo cénico atingiu o apogeu das coisas boas, como no dos Porto, Aveiro, Viseu, Leiria, etc. etc.
         Ao saudar tão prestimosa colectividade de cultura e recreio, deslocaram-se à risonha aldeia de Tavarede, que fica apenas a um pouco mais de um quilómetro da Figueira da Foz, além do director deste jornal, António Medina Júnior, os srs. Eduardo Frutuoso Gaio, vice-provedor da Santa Casa da Misericórdia de Sintra, e tenente Manuel de Matos, grande proprietário e benemérito, que foram na missão da simpatia, da solidariedade e da gratidão pela SIT, cujo conjunto teatral há pouco aqui se exibiu – desinteressadamente – interpretando, com muito brilho, “Frei Luís de Sousa” e “Peraltas e Sécias”, a favor do nosso hospital.
         No sábado, 26, no seu teatrinho, assas acanhado e deficiente, subiu à cena, em 1ª representação, a excelente peça “A Conspiradora”, do dr. Vasco de Mendonça Alves, recentemente interpretada, no Teatro Nacional, em Lisboa, por categorizados artistas, entre eles sendo de justiça salientar a gigantesca e brilhante personalidade de Palmira Bastos.
         Rigorosamente “vestida” e “calçada”, “A Conspiradora”, ensaiada competentemente por mestre José Ribeiro, pode considerar-se mais um grande triunfo para os amadores tavaredenses (cerca de 40 figurantes), que, contamos, deverão voltar em breve a Sintra para mostrar, mais uma vez, as suas “milagrosas” habilidades…
         No dia seguinte, domingo, realizou-se uma brilhantíssima sesão solene, tendo os tavaredenses distinguido para a presidência da mesma o delegado da Misericórdia de Sintra, nosso dedicado colaborador e amigo sr. Eduardo Frutuoso Gaio, que ofereceu ao glorioso estandarte da SIT um laço de fitas de seda com sentida dedicatória do Hospital de Sintra – em testemunho de apreço e gratidão.
         Manuel de Matos, também em lugar de honra, ofereceu, por intermédio do “Jornal de Sintra”, seis ampliações, encaixilhadas, vivos fotográficos da inesquecível jornada dos tavaredenses a Sintra, em Setembro do ano transacto, bem como um exemplar deste semanário, igualmente encaixilhado, contendo a reportagem que então foi feita à brilhante actuação do Grupo Cénico Tavaredense.
         Diversos e ilustres oradores se referiram à abnegada acção da SIT nos seus já longos 53 anos de existência, por isso mesmo que tão primoroso acto solene constituiu uma verdadeira apoteose à coragem, à perseverança, à dedicação, à paixão de bem-servir – e ao incontestado valor de tão bondosa e humilde gente, que sacrifica o seu sagrado descanso, nas curtas horas em que abandona os campos, as oficinas e os escritórios, para se dedicar, com amor e ternura, à prática do bom Teatro…
         … mais em proveito material das pias instituições de caridade, do que da associação, que está acanhada e demasiadamente pobre para conter almas tão grandes e tão generosas…
         Foi neste sentido que o autor destas linhas, como tavaredense, sugestionou a ideia de se apelar para os admiradores e amigos da SIT, a fim de que estes lhe dessem um pouco do seu carinho, destinado a urgentes e imprescindíveis obras de ampliação e arranjo na respectiva sede associativa. Foi dentro deste principio que, por intermédio de amigos seus e das colunas do “Noticias da Figueira”, agora se começou a merecida campanha do tijolo, a favor de uma benemérita instituição que se esqueceu sempre de si – para pensar apenas nos outros…
    
A Conspiradora (Violinda Medina e João de Oliveira Júnior)

      O tenente Manuel de Matos (velho admirador e amigo da Figueira e de Tavarede), em Sintra secundou imediatamente a ideia, iniciando a campanha com mil escudos. E em Tavarede, na festa da SIT, no uso da palavra, não só entusiasmou e encorajou os outros, com ainda contribuiu com mais dois mil escudos para os fins em vista – prometendo mais e mais “tijolos” assim. “Andem, andem para a frente – e contem comigo. Agora e sempre. Uma obra tão elevadamente humanitária e cristã como esta bem merece ser acarinhada e ajudada por todos aqueles que, como eu, possuem olhos para ver, coração para sentir e cérebro para pensar. O José Ribeiro bem merece de todos os peitos bem-formados a especial admiração e respeito só devidos a homens possuidores de excelsas qualidades e virtudes como ele. Eu aqui estou, na qualidade de seu velho amigo e admirador, para lhe garantir presença e colaboração. Mão à obra, pois, e para o próximo aniversário desejo cá voltar, com o Frutuoso Gaio e o Medina, para festejarmos mais um aniversário da Sociedade, mas já na sua casa nova”.
         Assim falou, em síntese, o tenente Matos, a quem agradecemos todas as penhorantes provas de compreensão e de carinho com que se dignou interpretar a obra e as necessidades da SIT.
         À embaixada sintrense – tão penhorantemente distinguida e cumulada com as maiores e mais honrosdas atenções – foi por José Ribeiro oferecido, em sua casa, um primoroso jantar “familiar”, a que também esteve presente o ilustre professor Alberto de Lacerda, que desenhou e pintou os adereços de cena e que é um apaixonado amigo dos tavaredenses, em geral, e da SIT e de José Ribeiro, em particular.
         A senhora de Manuel de Matgos ofereceu à veneranda mãe de José Ribeiro, infelizmente privada dos órgãos visuais, a quantia de 400$00, destinada aos seus pobres, acto esse que provocou grande alegria ao coração da virtuosa senhora, que sente prazer em fazer bem sem olhar a quem…
         Na segunda-feira, o considerado industrial da Fontela, nosso velho amigo José Joaquim Guedes, impôs que a embaixada sintrense não partiria da Figueira, de regresso “à base”, sem que, primeiramente, almoçasse em sua casa. E que linda casa ela é!” Ou por outra: que primoroso “chalé” que a muito querida familia Guedes construiu na Fontela, rodeada de pinheiros, eucaliptos, pomares e vinhedos, num magnifico planalto sobranceiro ao ubérrimo e remançoso Mondego!...
         Não sabemos descrever a maneira verdadeiramente anfitriónica e cativante como o José Guedes, a sua distinta esposa e demais família nos receberam e trataram!... Não sabemos!... Por último – que tocante surpresa! -, o nosso velho amigo, que o é também do tenente Matos e do José Ribeiro, deu-nos uma carta, que ia dirigida ao presidente da SIT, na qual lhe afirmava a sua pronta solidariedade à nossa iniciativa, generosamente iniciada e fortificada pelo Matos, e, como tal, ia mandar para Tavarede, imediatamente, duas toneladas de tijolos e punha à sua ordem tonelada e meia de cal.
         Foi dentro de satisfações e alegrias como estas – que tanto sensibilizaram a nossa alma profundamente bairrista – que a embaixada retirou da Figueira para Sintra, onde chegou bem (o Matos e senhora, o E. Gaio e senhora e nós), no cómodo e amplo “De Soto” do amigo tenente Matos – aliás um “volante” cauteloso e prudente, daqueles que sabem praticar o proclamado preceito que diz: “devagar, que tenho pressa”…
         Sabemos que em Tavarede já vai engrossando o volume da campanha do tijolo para as obras da SIT. E que na Figueira e concelho o reflexo há-de ser acarinhado e secundado. E quem diz no concelho, diz nas muitas outras terras por onde os simpáticos rapazes da SIT têm andado, há 53 anos, a repartir abnegados esforços em proveito dos pobres…
         … absolutamente esquecidos de si, pois também não são ricos…
         Não nos atrevemos a pedir em Sintra, um tijolo para as obras da benemérita associação de recreio e cultura onde nascemos. Todavia, se houver alguém que queira ter essa generosidade – desde já se regista e agradece reconhecidamente.

         A peça A conspiradora continuava a sua carreira. E em Março de 1957, depois de um espectáculo no Casino da Figueira, encontrámos a seguinte nota: Aludimos no último número deste periódico, à actual pobreza do nosso meio, quanto à prática de actividades de ordem cultural, o que merecem a inteira concordância de algumas pessoas amigas, as quais, na intenção de documentarem com factos a manifesta decadência da Figueira a tal respeito, em comparação com o que nela se verificou em tempos passados, nos forneceram curiosos pormenores sobre a vida e actuação de alguns agrupamentos artísticos locais de outrora, embora então tanto o número de habitantes como o grau de instrução destes fosse bem mais reduzidos e modestos.
         Causas e razões que motivam a presente situação, constituem sem dúvida alguma problema complexo de tentar explanar e discutir. E nem é essa agora a nossa finalidade.
         Levou-nos hoje a falar do assunto apenas a circunstância de termos assistido há dias, no Teatro do Peninsular, à representação de “A Conspiradora”, pelo grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, espectáculo a que se dignou assistir o próprio autor da peça, dr. Vasco de Mendonça Alves.
         Por ser evidente que o tempo não corre propício a cometimentos do género, e que mais profundamente nos impressionou o alto nível artístico de tal espectáculo, desde a montagem à interpretação.
         Se só as excepcionais faculdades de José Ribeiro, o seu espírito de sacrifício, a sua dedicação sem limites, o seu grande talento, tornam possível transformar modesta gente de trabalho em amadores daquela categoria e mérito, não podemos no entanto deixar também de admirar nestes, a força de vontade, a persistência, o desejo de acertar, o tenaz afinco posto em aprender a lição, embora para tanto haja que, sem desfalecimentos nem desânimos, não olhar a canseiras nem a dificuldades, numa voluntária renúncia a horas de lazer e até de merecido descanso, tendo apenas em mente e como compensação, fazer sempre melhor e mais perfeito e elevar cada vez mais alto o nome da sua terra e da sua colectividade.















Usos e Costumes na Terra do Limonete -17

         É que aquela Várzea é bem, neste dia, um altar onde as moças poisam as melhores preces de seu amor feliz, e onde fazem as preces da sua alegria venturosa. Reboam ali, naquele largo, pertinho da Fonte, cantigas desfiadas por fieiras de oiro, correndo, como veios de água cantante e fresca, cada vez mais felizes, cada vez com mais encantos.
         E quando o sol se ergue para doirar a folhagem tenra dos arbustos, a desafiar o viço e a roubar a frescura das rosas – manchas de neve, pintas de oiro ou pontos vermelhos, sensuais, de fogo aveludado -, em que a palidez da madrugada empresta às moças desaparece, para as fazer de olhar mais perturbante, mais amoroso e mais feiticeiro, a ventura, a saúde, o prazer de gosar a liberdade, de cantar e de viver, assim, à sôlta, - viver que não extenua, que não cansa, que perturba e entontece, - então os corações erguem-e mais altos, tão altos como a alegria juvenil da mocidade – tal qual como os braços espinhosos das roseiras, e contam á água fresca que os cântaros levam, a sua alegria que, por ser muita, é sempre pouca – tão curta é a hora feliz que os venturosos julgam descuidadamente viver!
         Pudessem muitos mentir, e na madrugada de amanhã, o riso a florir nos lábios, a alma, lá dentro, a brincar contente, satisfeita e feliz, ir até à Várzea, nos ranchos alados da mocidade, e dizer às rosas, no seu dia, o que sentem e o que não podem dizer!... Se assim fôsse, todos seriamos felizes, todos seriamos alegres, contentes, pelo menos, aparentemente. E as rosas, no dia do seu culto, teriam, naturalmente, mais beleza, mais frescura e mais perfume!...”.
         Como referimos ao princípio, é com verdadeira teimosia que se continua a querer recordar este costume na terra do limonete. Que o possa ser por muito tempo, embora já estejamos crentes que as flores e o limonete já serão insuficientes para ornamentar os potes. Julgamos que a melhor forma de terminar a recordação deste uso e costume tavaredense será a transcrição duma nota publicada, há cerca de cem anos, sobre a fonte da Várzea e o dia primeiro de Maio.
         “Meu amigo Carlos Dias
                   Sabes porque não te tenho escripto? Vagas perguntas as minhas, por que, certamente, já adivinhas te que tem sido por falta de dinheiro para a estampilha do correio. Desculpa, meu amigo. Não se ouvia uma voz e estava sonora...
                   Ia falar-te da Varzea sem primeiro reproduzir o que sinto. É o enthusiasmo ardente que me guia, um verdadeiro paraizo tudo o que a natureza me mostra... Vê lá tu o ceu, esse azul que é tão intenso na primavera, mesmo hoje com uma côr baça admiro-o mais do que nunca! Vejo-me hoje innundado d’uma luz tão amiga, que, tudo o que posso alcançar com a vista, se vem estampar no meu coração, exactamente como a imagem d’um anjo muito amado!
                   Olha, meu amigo, se eu não vivesse bezuntado na pobreza das letras d’este seculo; se eu soubesse claramente o tempo em que vivo, onde me encontro, retrataria, com todos os reflexos multicolores e as pedrarias que resplandecem nos contos immortaes. Contudo, como alguma coisa vês no teu amigo, dá, a esta carta, o valor que ella merece.
                   A Varzea é que eu não esqueço. Fui lá hoje, logo ao raiar do dia e notei-a deserta, sem uma habitação, nem uma arvore. Vi que foi creada n’um logar escolhido por Deus, porque, estre aquelles muros e rente á terra, dá-nos um aspecto exipcio! Era muito cedo ainda quando lá cheguei. Fiquei a contemplal-a por algum tempo. Depois, vi chegar uma moça esbelta, de uns olhos tristes e brilhantes, de uns olhos de apaixonar um principe. Encheu a bilha, e, embiocada, curvou-se ao ranger do queixume entrecortado que, devagarinho, nos mostrava a corrente da agua crystalisada. Ajudei-a em seguida a pôr a bilha á cabeça, e, dizendo-me ruborisada o seu “muito obrigadinho”, tomou de novo o seu caminho. Era morena e tinha uns braços rijos e mui redondinhos, vi-lhos nús até ao cotovello!
                   Não esqueço, por largo tempo, a Varzea, crê, meu amigo. Quasi que não sahia de lá, preso por um bruxedo guloso, e, o que mais me apressou a retirar, foram as fitinhas de agua que cahiam do ceu semelhantes a chumbo derretido. Se não fosse isto, havia de esperar por mais bilhas trazidas por mãosinhas de riquissimas donzelas!
                   Tudo me falou com docilidade: o brando vento que vinha de Tavarede, o chilrear dos passarinhos que saltitavam nas sebes, o resar do Oceano que se ia já a perder por aquellas planicies.
                   Bem sabes, meu amigo, que sempre admirei as fontes. Tantas tenho conhecido, algumas tão historicas que até uma rainha venerou em tempos!
                   Quando trago á memoria duas fontes que conheço desde o meu berço - a Portella e a Azambuja - afigura-se-me logo vêr, na Varzea e junto ao filtrar da agua, pastores e namoradas a combinar o dia do casamento. N’uma dessas fontes, na Azambuja, lavou as mãos a rainha D. Leonor.
                   Como eu saboreei e respeitei aquelle ar puro e fresco á beira da fonte da Varzea!
                   Varzea. Varzea, falta-te o musgo que reverdece na primavera; falta-te o sobreiro que ensombra nas tardes de um sol de fogo; falta-te um poço predilecto dos espiritos sublimes, onde as cachopas da terra possam mostrar-nos, descuidadas, a alvura dos seus virginaes seios... Mas nem por isso deixas de ser a Varzea tão bemdita, quer na filtradinha bebida que nos dás, quer na confiança que nos inspiras!
                   Oh! Quem tivesse conhecido a Varzea em tempos, havia de se rir agora de mim, por querer engrandecel-a... Quando aquella bicasinha brotava de entre as urzes e as giestas, decerto que a Varzea, com o seu aspecto selvagem, havia de chamar-se preciosidade! Se tu ouvisses, meu amigo, como eu ouvi, um côro de anjos tão melodioso e delicado a caminho da Varzea, n’uma noite de luar, de segredos e attitudes, já não dormias! Levantavas-te, como eu, para acompanhar o cortejo enfeitado de rosas e laranjas, seguir de perto os canticos harmoniosos, sentir o incenso de todo aquelle montão de virgens e flôres, e, por fim, beberes um copo da purissima agua offerecida pelas mãos d’uma docissima Margarida!
         Quando? - perguntas tu. - Ás virações da manhã do dia 1º. de Maio. Marcos”.


                                     O que restava da fonte da Várzea  antes de ser destruída



As Operetas em Tavarede -. 14



A Merenda Grande (de 'O Sonho do Cavador')

           A vida na aldeia continuava. Os costumes não se haviam alterado. As tesouras, como sempre, iam cortando nas casacas alheias; o amola-facas-tesouras dava-lhes umas ajudas. Afinal, nem o relógio ainda conseguira fazer-se ouvir badalar na torre da igreja! O Manuel da Fonte chega à aldeia. Saudoso, enche os olhos com a alegria da paisagem da terra. Anoitece. Ouve-se, então, o sino da torre da igreja tocando as trindades.

         Trindades – “Trindades na aldeia, são horas de ceia... Há tanto tempo que o povo não nos ouve. Não há quem queira badalar-nos no sino da torre. E fazemos falta. Trindades!... De manhã, dizemos ao cavador que é a hora de erguer a enxada para a labuta do pão; à tarde, anunciamos-lhes o fim da tarefa e chamamo-lo a casa. Trindades na aldeia, são horas de ceia...”.

 É sol posto, finda o dia,
 Tocam trindades na aldeia.
 O cavador volta a casa
 Pois que são horas da ceia.

 Todo o dia a sua enxada
 Trabalhou sem descansar,
 Ganhou o pão da família,
 É noite, vai repousar.

         Manuel da Fonte resolve-se. Procura Rosa, a sua noiva. Ainda o esperaria ela? Ainda o quereria?

Rosa
O meu amor,
O meu amor!
Meu peito estremece,
Bate o coração,
Com mais vigor.
Minha alma entontece
Embriagada de comoção.

O meu amor!
O meu amor!
Embriagada de comoção
Minha alma entontece,
Meu peito estremece,
Bate o coração
Com mais vigor.

Manuel
Rosita, minha vida!
Meu casto e puro anelo!

Rosa
Manuel, meu bom Manuel,
Oh! meu primeiro amor!

 Manuel
A minha alma dorida
Teve enfim guarida
No teu olhar tão belo.

Rosa
Meu pobre, meu pobre coração
Bate com mais paixão
Ouvindo o meu amor.

Ambos
No campo onde a alvorada
É luz, perfume e cor
Perfume, luz e cor!
A alma enamorada
De alegria, de alegria
Não sonhada
Só nos fala de amor.
E que outro pensamento
Ali teria mais dura
Mais dura!
Se nesse encantamento
A vida toma alento,
Paz, conforto e ventura!
 Se falam dele a planta,
A terra, a rocha, a flor,
 Se entre beleza tanta
Tudo ri, tudo canta
O seu eterno amor!
Vem pois, ó minha bela,
Ouve a prece meiga e singela
De quem vive a sonhar
A sonhar
Num casto e doce enleio!
 Vem viver!
 Vem amar!
 O céu será capela
 E farei meu altar
 Bem junto do teu seio
 Para dormir, sonhar...

Perdoou-lhe. Vinha mais pobre? Não interessava. Nunca tinha tido a ideia da riqueza e quanto à enxada, essa guardara-a o Ti João da Quinta. Ali estava ela à sua espera. E quando Manuel da Fonte abraça Rosa, sob a benção de seu pai, entra um rancho de cavadores e ceifeiras que saudam, alegremente, o seu regresso. Voltavam a casa, depois de mais um dia nas sachas. E, como sempre, sem tristezas nas suas almas de gente simples, mas puras, honrados com a fortuna do trabalho, que, ao final, era toda a sua grande riqueza.

 Coro
 Desde manhã ao sol posto,
Arado ou foice na mão,
Seja Inverno ou seja Agosto,
Ceifamos a loira espiga
 Ou pomos à terra o grão.

 Cavadores
Vamos todos sem cansaço
Na terra dura
Cavar, cavar.
A força do nosso braço
Traz a fartura
 Do nosso lar.

 Ceifeiras
 Somos as ledas ceifeiras
 Que vão as messes trigueiras
 Segar, ceifar,
 Sempre ligeiras,
 Sempre a cantar,
 A cantar.

Coro
 Cavar, Ceifar,
Ceifar, cavar,
Sem descansar.



I N T E R V A L O

sábado, 19 de abril de 2014

Operetas em Tavarede - 13

         Tudo perde. Os dez contos de reis, que era toda a sua fortuna, perdeu-os ao jogo. Ficou mais pobre, sem nada. E agora? Chegou a pensar em ir atirar-se ao rio. Pois como é que agora havia de ir para o Brasil, sem dinheiro para a passagem? Como ir buscar a riqueza? Como encontrar a felicidade?

         É, então, que encontra três homens, que diziam ser homens felizes. Contam-lhe a sua história.

         Primeiro homem feliz – “Todos me chamam um homem feliz. Se a felicidade estivesse na riqueza, eu era o mais feliz dos homens. Sou riquíssimo. Tenho propriedades enormes que nem conheço; tenho palácios; tenho libras os milhões. Todos os caprichos, todos os prazeres que dependem do dinheiro, ninguém melhor do que eu pode satisfazê-los. E, todavia, sou um desgraçado. Ninguém é mais infeliz do que eu! A minha vida é feita de luto e lágrimas. Perdi a esposa que era toda a minha ventura. Ficou-me uma filha, linda como os amores, que era a minha consolação – e também essa ma levou a morte. Dava, para salvá-la, toda a minha riqueza. Quereria ser o mais pobre de todos os pobres, e seria, assim, feliz, tendo-a junto de mim. Mas a morte levou-ma! Sou rico, sim, mas sou um desgraçado”.

         Segundo homem feliz – “Também o mundo diz que eu sou feliz. Também assim o julguei eu. Fui pobre, e sentia-me infeliz com a pobreza. Julguei que não poderia ser feliz sem ser rico, e então, não pensei noutra coisa senão em enriquecer, fosse de que maneira fosse. E ao fim de algum tempo eu era rico. Tenho hoje uma fortuna grande; fundei asilos; mandei fazer escolas; sustento hospitais; vejo-me rodeado de considerações e homenagens, toda a gente me respeita. Mas, a felicidade? Oh! essa não a conheço! Alcancei a riqueza, mas a felicidade cada vez a vejo mais longe de mim. Porque – queres saber?... – a ambição do dinheiro fez de mim um criminoso; para ser rico, matei, roubei, falsifiquei. Em meio da minha grande riqueza, eu não tenho um momento de sossego. A todo o instante oiço dentro de mim uma voz que me acusa, que me lembra os meus crimes. Acompanha-me por toda a parte, seguindo-me os passos, uma sombra negra, implacável e ameaçadora: é o remorso. Lá está ela!... Lá está ela!... Não a queiras ver, cavador!”.

         Terceiro homem feliz – “Eu não digo que sou rico, digo que sou feliz. E os pobres também podem ser felizes. Tenho saúde, tenho alegria, tenho uma mulher que me enfeitiçou em solteiro e que me deu duas lindezas de dois filhos que até o sol lhe tem inveja. Que mais quero? E trabalho. De sol a sol, na labuta da enxada. A terra dá-me a fartura da minha casa. O pão até parece mais saboroso quando é a gente que o amanha. E rio, e canto, e se me deito à noite cansado da faina, ergo-me no dia seguinte com a alma cheia de alegria e os braços com novas forças para recomeçar a tarefa. Dizem que o trabalho é castigo. Engano!... O trabalho é a saúde do corpo e alegria da alma. Eu trabalho e sou feliz. É por isso que eu canto! É por isso que eu rio!”.
          Manuel da Fonte – “A riqueza! A felicidade! Onde está a riqueza? Sei lá... Como eu agora entendo as palavras do Ti João da Quinta na hora da despedida! Não seria rico lá na aldeia? Mas podia ser feliz! (com decisão) Ainda é tempo. Perdi no jogo a herança de meus pais! Deixá-lo. Voltarei à enxada, tornarei a cavar a terra, buscarei no trabalho a alegria da vida e darei a esta alma entristecida que sinto dentro de mim, arrefecida de saudades, o calor do sol que eu via a boiar nos olhos lindos da Rosa”.

 Manuel da Fonte
A minha louca ambição
De desmedida riqueza
Desfez-se como ilusão
Sonho mau, deslumbrador.
Serei feliz na pobreza
Torno a ser cavador.

Coro
Vida d’aldeia
Abençoada,
D’encantos cheia,
Sempre invejada.
Mal rompe a aurora
Trinam canções;
 E a dor não mora
 Nos corações.

 Manuel da Fonte
Ir em cata da ventura
Sozinho, por longes terras,
É rematada loucura.

 Mulheres
Nos nossos campos e serras
Não há vida d’amargura,
Não há contendas nem guerras.

Coro
Vi da aldeia,  etc. etc.

Manuel 
Quanto eu tinha está perdido...
Como eu andava iludido
Sonhando só com dinheiro!
Prende-me oculta cadeia
E é nela, na minha aldeia,
Meu destino verdadeiro.

Coro
Que valem sonhos
Ambiciosos,
Se aqui nós temos
Todos os gozos
No dia inteiro,
D’inverno ou v’rão
Reina a alegria
No coração.
Há nos valados
Moitas de flores
E em seios virgens
Castos amores.

Não há no mundo
Mais doce vida...
Em nós as mágoas

Não têm guarida.

Usos e Costumes na Terra do Limonete - 16


 vós, ó belas, sabeis cantar!       
Vossas gargantas trinando enfim
Ao longe, ao longe vão imitar
As lindas notas do bandolim...

Alegres vossas canções,
Enquanto a orquestra entoa o canto
Para alegrar os nossos corações.

Viva o Maio! Viva o Maio!
Viva o Maio, trema o chão.
Vivam os quatro rapazes
Na manhã de S. João.

Viva a bela mocidade
Que festeja este dia!
Sede unidos p'ró futuro
P'ra gozar com alegria!

                                 
         “Sim, minha amiga, póde chamar-lh’o, é um costume feliz da minha terra. Sempre assim foi acolhido aqui o primeiro dia de Maio, entre risos e cantares, na folga d’umas danças vermelhas, junto á fonte d’agua clara da varzea de Tavarede.
         ...Este uso lindo que tanto a maravilhou e tanto a seduziu, é um velho uso que vem de muito longe. Teria, a minha deliciosa amiga, de volver os olhos para os luminosos tempos do paganismo, se a sua curiosidade irrequieta e nervosa lhe quizesse conhecer a origem. Era-lhe preciso evocar um quieto e calmo  canto do socegado Lacio. Seria n’uma azulada paysagem d’ecloga. D’entre arvoredos longos, ver-se-ia surgir a cabeça velha de Pan, seguida da montada madraça de Silêno. Rondas de Nimphas, ligeiras como azas, bailariam dançares de belleza e graça n’algum tranquillo valle. Por bosques de loureiros, em florestas de platanos, por rentes de araucarias e romanzeiras em flôr, olhos vivos de Satyros espreitariam cubiçosos, carnes perfeitas de Deusas confiadas. Faunos, caprinos, hirsutos, cornicabros, pulariam pela macieza dôce dos pomares. E Venus, coroada de rosas, á frente d’uma procissão lasciva e devota da sua côrte suprema viria, ao som lento de citharas d’oiro, proclamar a chegada do Amor e da Primavera...
         ...Deve ter sido assim o inicial começo d’este costume feliz da minha terra...
         E pela conta dos annos, sempre que chegado é o feliz dia d’hontem, se formam n’aquella estrada calma, junto á fonte d’agua clara da varzea, por entre os campos ferteis e humidos de Tavarede, as rodas largas de namorados que a minha excellente amiga encantadamente viu...
         N’uma viola, em violões floridos e afestoados de fitas, alguem faz vibrar, zangarrear as notas vermelhas e fortes do Vira. Vozes limpidas de raparigas, atiram ao alto, ao vasto ar perfumado a cravos, limpidas cantigas de Amor e Desvario. E no sacudido, no lesto farandoral da dança rubra, enquanto no ar volteiam petalas de rosas e tilintam sonoras risadas de crystal, corpos juntam-se, mãos enclavinham-se, boccas approximam-se, e é assim, - como os seus lindos olhos deslumbrados viram, - que a gente moça da minha terra festeja e acolhe a primeira alvorada de Maio florido, o mez das Rosas e do Amor!”.
         Teve muita fama o rancho dos potes floridos de Tavarede, que na manhã do dia primeiro de Maio, ia em alegre desfile, à fonte da Várzea, após o que seguia até à Figueira levar a alegria, as cantigas e o perfume das nossas flores, que artisticamente enfeitavam os potes levados à cabeça pelas raparigas, acompanhadas pelos seus pares.
  
          “É amanhã o 1º. de Maio.  E então as raparigas correm os quintais, vão às leiras ajardinadas, e de toda a parte trazem flores!
         Deixando o seu pote enfeitado, a cachopinha foi deitar-se; mas passou a noite em claro, a pensar na alegria da manhã que vai nascer... Ainda escuro, salta da cama, veste a saia ramalhuda e a blusa de rendas, põe na cabeça o cachené lavrado, e pega no cântaro florido, que cheira que consola! Ainda vem longe o dia, mas são horas de ir chamar as mais: - Ó Rosa! Ó Maria José! Ó Joaquina! Vá depressa, raparigas! Daqui a pouco nasce o Maio, e se ele dá com vocês na cama, já sabeis o que vos faz: deixa-vos amarelas todo o ano! Olha, ali vai o Manuel c’o violão... Avia-te, rapaz, que já lá estão os outros... Eia! Aí vem a Laura, mais a Anita, e a Augusta e a Teresa...
         Já a música afinou os instrumentos. Potes floridos riem e bailam nas cabeças das raparigas. O ar está cheio de cor e de perfumes. Formou-se o cortejo. Tudo pronto!... Vamos! Vamos! Siga o rancho até à fonte, a cantar e a dançar e a dar a volta à Figueira!... Lá vai! Lá vai o rancho do 1º. de Maio, lá vão os potes floridos da terra do limonete!...”.
     Era com uma alegria contagiante quando o cortejo, com a tuna na frente, passava pela rua da aldeia a caminho da Várzea. Ali chegados, depois de beberem da fresquinha água da fonte, reuniam-se aos outros ranchos, que iam chegando. E enquanto uns descansavam sentados nos valados circundantes do vasto largo, então ali existente, com muitos a procurarem a sombra do enorme pinheiro manso, outros dançavam animadamente, soltando aos ares as canções alusivas ao dia, sempre acompanhados pela tuna afinada.
           Depois era a partida para a cidade vizinha. Sempre cantando, aplaudidos pelas gentes que acorriam à sua passagem, iam ao mercado, onde eram sempre ansiosamente aguardados. E ali dançavam e cantavam a sua linda marcha, entoada pela tuna. O ar ficava perfumado pelas flores que enfeitavam artisticamente os potes, onde se destacava sempre o delicado limonete.
         Nem todos os anos os potes floridos festejaram a data, como aconteceu em 1917, certamente devido às ida de diversos tavaredenses para a guerra. “O primeiro dia dos mez de maio não foi festejado pela nossa mocidade como o tem sido nos annos anteriores. Aquella visita á fonte pelos ranchos de raparigas que, conduzindo cantaros ornamentados de flôres e verdura, não appareceram este anno com as suas cantigas a accordar a povoação e a chamal-a para a poesia e para a alegria. Qualquer coisa de triste teem as nossas irrequietas moças: - “lá longe o namorado se sacrifica...”.
         É certo... Tavarede não recebeu a visita do mez dos poetas e dos passarinhos com aquelle enthusiasmo como tradiccionalmente o tem feito, porque a sua alma, o seu coração sente a dôr de vêr os seus filhos queridos na lucta dos barbaros e dos maus. Apenas grupos de pessoas d’essa cidade, aproveitando o dia alegre de maio, devoraram sob a sombra fresca das arvores appetitosos farneis e ali, n’uma pittoresca vivenda d’um amigo nosso, se reuniu uma colecção de caras unhacas, para solemnisar com uma santa pandega, que foi obrigada a dois cozinheiros milicianos e a um ajudante reformado, e ao melhor champagne do sifão... E assim entrámos na quadra do aroma e da belleza”.

         Mas, normalmente, era um dia de alegria e felicidade para toda a gente tavaredense. Encontrámos diversas notas alusivas, que poeticamente cantavam o dia. “Quem não conhece, na madrugada de amanhã, a Fonte da Várzea da Figueira? Ranchos alegres que apregoam, nas cantigas repassadas de côr, a alegria salutar do amor, da vida, da felicidade!... Cântaros à cabeça, transformados em maciços de flôres, elas lá vão em busca da água fresquinha que hão de trazer no regresso, depois de bailarem a alegria que lhes vai nas almas e de folgarem tôda a mocidade que vive nos seus corações amorosos.

O Associativismo na Terra do Limonete - 72

         Para comemorar o centenário do nascimento do dramaturgo Marcelino Mesquita, o grupo tavaredense levou à cena a comédia Peraltas e Sécias. Transcrevemos, agora, uma nota que respigámos da imprensa e referente à actividade do teatro de Tavarede. Já aqui tivemos oportunidade de dizer que as associações recreativas exercem profunda influência na Instrução e Educação do Povo.
         A freguesia de Tavarede possui três colectividades no género, pelas quais temos a maior simpatia e sentimos a mais terna admiração: Sociedade de Instrução Tavaredense, Grupo Musical e de Instrução Tavaredense e Grupo Musical Carritense. Existe, ainda no limite desta freguesia com a das Alhadas, o Grupo Instrução e União Caceirense, cuja massa associativa, na sua maior parte, pertence a Tavarede, e que nunca deixou de estar presente, sempre que a sua colaboração lhe foi solicitada, o que nos apraz registar.
         É vasta a Obra levada a efeito pelas referidas associações durante a sua já longa existência, devedo salientar-se, sem contudo pretendermos ferir susceptibilidades a que, há mais de cincoenta anos, vem sendo realizada pela SIT.
         Citá-la, é tarefa que julgamos desnecessário, pois que está bem patente aos olhos de todos os que, nestas últimas décadas, têm tido o prazer de apreciar o bom Teatro e de observar o ambiente de paz e tranquilidade que se respira nesta freguesia, mercê do seu reflexo.
         Cabe aqui, uma referência especial: o produto dos espectáculos que a SIT tem dado em benefício dos cofres das mais diversas Instituições, sem atender a credos políticos ou religiosos, apenas com o objectivo de servir o BEM, anda à volta dos quinhentos contos. E se acrescentarmos que tão importante soma tem sido obtida à custa do esforço quotidiano dos humildes amadores do seu grupo dramático, considerado um dos melhores do País, na opinião abalizada de alguns críticos, e que é constituído por operários, empregados de escritório, cavadores, costureiras e raparigas que se ocupam na agricultura, sacrifício que eles fazem da melhor boa vontade, como nos tem sido dado verificar quando o edifício da sede da aludida colectividade tanto necessita de ser beneficiado por virtude do precário estado de conservação em que se encontra, temos de reconhecer que é simplesmente admirável, digna de todos os louvores, a Obra de tão prestante e benemérita colectividade, pois se abandona a si mesmo para cuidar do seu semelhante.
         A Junta de Freguesia de Tavarede, intérprete fiel dos desejos do Povo e conhecedora dos seus generosos sentimentos, pensa fazer erguer, para a posteridade, no Largo da SIT, um modesto monumento, a adquirir por subscrição pública, que simbolizando a INSTRUÇÃO, traduza, nas suas linhas singelas, esse sentimento tão nobre e tão elevado e que nos tempos materialistas, que se atravessam, tão afastado anda do coração dos Homens – Gratidão -, como testemunho do muito apreço e reconhecimento pela notável acção cultural e recreativa realizada pelas referidas colectividades, em geral.
         Cremos que a escolha do local está plenamente justificada, visto que, além de tratar-se dum recinto a que a Junta, oportunamente deu o nome da colectividade mais importante da freguesia – SIT -, será como que a maior homenagem que os Tavaredenses poderiam prestar a quem tão alto, lutando contra todas as contrariedades que se lhes apresentam, tem sabido dignificar, através do Teatro, o nome da sua querida Terra.
         Estamos convencidos de que a iniciativa, há anos já no programa de realizações da nossa Junta de Freguesia, vai ser bem acolhida pelas entidades oficiais e pelos numerosos admiradores das colectividades tavaredenses, e ainda, por todos os que, como nós vêem nas associações de recreio factor decisivo para o desenvolvimento cultural e educativo do Povo.

         Diversas foram as deslocações realizadas, especialmente com a comédia Peraltas e Sécias. Mas, como em Setembro de 1956 houve uma nova ida a Sintra, escolhemos, para estas recordações, a reportagem dessa visita. Para se falar neste jornal – insuspeitamente – da memorável jornada dos amadores-artistas de Tavarede a Sintra, era preciso que o jornal fosse alheio à iniciativa e organização dos espectáculos no “Carlos Manuel” – e não tivesse, a dirigi-lo, um tavaredense de alma e coração que se chama António Medina Júnior.
         Como, porém, o “Jornal de Sintra” tinha o dever – íamos a escrever obrigação – de se referir a tão simpático movimento de Arte e de Humanidade, ouçamos a abalizada opinião de um ilustre jornalista, escritor e experimentado crítico teatral de Lisboa, que aqui veio, de boa mente, atraído pela fama e valor artístico do grupo cénico de Tavarede, superiormente dirigido por Mestre José Ribeiro, e que, gentilissimamente, se dignou honrar-nos com a apreciação que, sob pseudónimo, aqui se publica e agradece reconhecidamente.
         “AS RÉCITAS DO GRUPO CÉNICO DE TAVAREDE FORAM DUAS BELAS LIÇÕES DE TEATRO – Impressões de um sessentão.
         Sr. Director: Dá-me licença? Não será demasiado abuso pedir-lhe um pouco de espaço para dizer duas palavras acerca das duas récitas que o Grupo Cénico de Amadores da Sociedade de Instrução Tavaredense veio dar a Sintra? Se for abuso, há um remédio: o cesto dos papéis. Se o meu desejo merecer a aceitação, desde já o meu reconhecido agradecimento. E começo...
         Duas peças de responsabilidade, duas peças daquelas que exigem qualidades: “Frei Luís de Sousa” e “Peraltas e Sécias”. Duas realizações bem merecedoras dos quentes aplausos com que o público justamente as premiou. Porque, mesmo abstraindo da ideia de que se trata de amadores, o que houve nesses aplausos não foi apenas simpatia por eles, foi também admiração sincera pelo que valem.
         Na verdade, o Grupo conta com elementos geralmente valiosos, intuições, valores, que uma inteligente, uma competentíssima direcção artística coloca num plano a que, pelo menos no conjunto, não chegam, às vezes, honestos elencos profissionais, e dispõe de primeiras figuras capazes de vencer, como se viu, escolhos de respeito.
         João Cascão fez um Manuel de Sousa Coutinho correcto e escorreito enquanto o poema para mais não deu; brilhante aquele passo em que a emoção atinge o máximo e o seu temperamento pôde afirmar-se, caíndo aos pés da cruz, perfeitamente integrado na personalidade de Manuel, sentindo a sua tragédia, dando absolutamente o que se lhe pedia. Foi pena que o chapéu, porventura muito certo em matéria de indumentária, mas consideravelmente inestético, o chapéu que lhe puseram, quebrasse à figura a linha de imponência que devia ter.
         Violinda Medina e Silva foi uma distintíssima Madalena de Vilhena. Compreensão perfeita da psicologia da personagem, máscara cheia de expressão, um à-vontade de actriz consumda, um saber servir-se dos magníficos trajos que lhe vestiram, uma naturalidade em tudo, que não se pode manifestar quando não há verdadeiro talento de comediante. Menos exigente, o seu papel em “Peraltas e Sécias” foi igualmente perfeito.
         Fernando Reis deu um Romeiro de que nada há  dizer que não seja um merecido elogio. Não podia pedir-se mais. E, como em “Peraltas e Sécias” lhe coube um papel de feição completamente diversa, igualmente desempenhado com impecável correcção, teve ensejo, pelo contraste, de revelar o seu real merecimento.

Peraltas e Sécias

         Coisa parecida poderá dizer-se de António Jorge da Silva, que nos deu um Telmo Pais do melhor quilate, excelente retrato da personagem, a contrastar com a caricatura que é o Fr. Tomás dos “Peraltas”, desenhada pelo intérprete com perfeita correcção.
         Maria Isabel Reis, a Maria de Noronha do “Frei Luís”, é outro valioso elemento do Grupo de Tavarede. Graciosíssima no seu papel de Carlota nos “Peraltas”, suportou com brio as dificuldades do seu papel no “Frei Luís”, talvez martelando demais as sílabas, e brilhou, brilhou intensamente, no final do drama, revelando, então, com perfeita naturalidade, a angústia da situação, provando assim o seu merecimento.
         João de Oliveira Júnior, correcto no seu Frei Jorge do drama de Garrett, papel que, salvo melhor opinião, não é bem para o seu temperamento, foi excelentemente no Miguel de Sande dos “Peraltas”, mesmo a cantar o Fado, que Mestre Marcelino meteu na peça sem se lembrar de que o Fado só apareceu meio século depois...
         Carlos Conde defendeu bem o seu papel de Padre Teodoro nos “Peraltas”, apesar de deslocado na interpretação de uma figura que não nos parece poder adaptar-se-lhe; José Maria Cordeiro no Intendente Diogo; Manuel Lontro no Desembargador Silvério; Francisco Carvalho no Pinto, ministro, devem citar-se, como João Rodrigues Medina no Marquês de Sande, pela perfeita correcção com que se houveram. Muito bem Vitor Manuel Medina e José Rodrigues Medina nos papéis de Benjamim e Narciso, que conseguiram distinguir no conjunto duma peça em que, pode dizer-se, nenhum papel dá ensejo a grandes voos.
         Com  diligente a acertada colaboração dos mais; com cenários apropriados, não falando em um outro pormenor menos feliz, que não chega a prejudicar; com excelentes adereços em que é justo destacar os quadros pintados por Alberto de Lacerda; com guarda-roupa de Alberto Anahory, bom apenas quanto aos trajos femininos no “Frei Luís”, muito bom de um modo geral, quanto aos “Peraltas”, em que só a cor do vestido da Marquesa de Sande, pela semelhança com a da sotaina de Frei Tomás, merecia ter sido substituida; com o trabalho atento e seguro de Adriano Silva como contra-regra, os espectáculos não podiam deixar de ser o que foram: duas belas afirmações de merecimento artístico.
         Mas foram, acima de tudo, duas belas lições de teatro, graças à direcção competentíssima de José da Silva Ribeiro, que ensina, explica, esclarece, resolve, com a infinita paciência de um apaixonado pela arte teatral, e que realiza com o brilho que se viu, assim provando a absoluta necessidade de uma orientação superior que descubra intuições ou vocações, que as eduque e as eleve ao máximo.
         Há por aí leitores que se lembrem das peças “Entre Giestas”, dirigida por António Pinheiro; “A Conspiradora”, dirigida por Lucinda Simões; “A Garra”, dirigida por Araújo Pereira?
         Dizer que os espectáculos do Grupo de Tavarede nos fizeram lembrar essas excepcionais realizações é dizer tudo quanto ao sincero agrado com que os vimos. Bem haja, José Ribeiro pela sua obra magnífica!”
         Assim, falou uma autoridade no assunto. Somos-lhe, pois, infinitamente gratos por tão penhorante atenção.
         CERIMÓNIA DE APRESENTAÇÃO
         O director do “Jornal de Sintra”, antes do início da representação da peça com que abria o espectáculo, surgiu no proscénio, de cortinas fechadas, saudou, na pessoa do ilustre presidente da Câmara Municipal, sr. dr. Moreira Baptista, o público de Sintra, e proferiu as seguintes palavras:
         “Por intermédio do “Jornal de Sintra”, que fundei e dirijo há 23 anos, tenho procurado constituir, desde início, um traço de união entre Sintra e a Figueira da Foz.
         Figueirense por nascimento, sintrense por adopção, dediquei-me com prazer à peregrina missão de estabelecer a ponte de passagem entre os dois maiores cartazes turísticos do nosso País, quer organizando excursões à linda cidade-canção da foz do Mondego, que Ramalho Ortigão classificou de “Rainha das Praias de Portugal”, quer provocando estímulo, coragem e decisão nos figueirenses, no sentido de que estes, através dos seus maravilhosos ranchos folclóricos, das suas excelentes bandas de música, dos seus acreditados grupos culturais e artísticos, etc., viessem de abalada até à ridente Sintra, encantadora “Sala de Visitas de Portugal”, não só por espírito de deliciarem a vista na ubérrima catedral do verde eterno, mas também – e principalmente – na mira de nos aproximarmos mais estreita e cordealmente; no desejo, profundo e sentimental, de nos conhecermos melhor uns aos outros, tornando-nos desta forma irmãos espirituais mais dedicados, mais íntimos e mais compreensivos. Com efeito, a “Sala de Visitas de Portugal” e a “Rainha das Praias Portuguesas” são, bairristicamente, os dois amores mais apaixonantes das meninas dos meus olhos… Ora, se bairrismo é sinónimo de patriotismo, eu, neste capítulo, sinto-me orgulhoso de ser patriota – e dos mais fortes e mais ferrenhos…
         Ainda dentro deste principio de intercâmbio de amizades, eu encontrei motivo para uma jornada de confraternização cordeal entre figueirenses e sintrenses, cônscio como estou de que estas aproximações regionalistas contribuem, no mais alto grau, para atear nos nossos corações a abençoada labareda do nobre ideal da paz e da união familiar na pequena mas honrada “casa lusitana”.
         Para felicidade da minha alma, temos hoje em Sintra o grupo de amadores teatrais de Tavarede – a querida e linda aldeia que me viu nascer e por onde andam, dispersos, pedaços saudosos da minha mocidade radiante. Nenhum exagero sentimental explica a sua presença hoje aqui: é, sim, a sua justificada categoria moral e artística, amplamente reconhecida e proclamada, desde há muito, por quem sabe ou pode julgar com mais objectividade e autoridade o adorável esforço de um punhado de raparigas e rapazes da minha aldeia, romântica e amorosamente posto, depois do trabalho, em sucessivas gerações, de há 50 anos a esta parte, ao serviço da cultura e da instrução popular – pelas salutares vias do teatro, da música e das letras. A categoria artística do grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense – minhas senhoras e meus senhores – aliada a uma reconhecida e dignificante índole do mais perfeito e abençoado sentimento cristão é que justifica a sua comparência, hoje, no tablado do Cine-Teatro “Carlos Manuel”. Olhos postos em Tavarede, pensamento entregue à elevada e nobre missão do Hospital de Sintra, tecto abençoado da caridade humana, resolvi estender as minhas mãos – e pedir para ele. Os meus queridos conterrâneos, por intermédio do grupo cénico da benemérita instituição de que fazem parte os meus irmãos, os meus sobrinhos, os meus primos e outros parentes, todos constituindo uma familia amorosa e disciplinada, dignaram-se ouvir a minha súplica, acorreram a ela e quizeram vir até cá, prontos, solícitos, alegres, contentes, dentro de um desinteresse material completo e absoluto, na grata missão da solidariedade e do bem-fazer. E o certo é que, pelo seu trabalho – e pelo contributo de VV.Exas., que aqui vieram para os ver, apreciar e julgar – os meus conterrâneos cometeram mais um acto de bondade na sua já longa e abnegada vida, posta ao serviço do Bem, e aqui estão, na bendita missão de dar – desta vez a favor dos pobres de Sintra.
         Bem hajam eles, que me ouviram e tão generosos quiseram ser, vindo até junto de mim. E bem hajam VV.Exas por se solidarizarem a esta intenção – que me parece não caracterizar mal os homens que a pensaram, acarinharam e puzeram em prática, os quais, investidos de outro poder, aqui hão-de vir praticar, no momento oportuno, a sagrada missão do reconhecimento e da gratidão dos sintrenses aos tavaredenses.
         Vem este prestigioso grupo equacionar a vossos olhos o problema de teatro de amadores em face do teatro profissional. Se só este é susceptível de realizar a perfeição cénica, o próprio absoluto que visa o compromete, a maior parte das vezes, num automatismo burocrático a que o teatro de amadores se mantém forçosamente alheio. Amador vem de amor e só o amor desinteressado ao teatro explica milagres como o do cinquentenário Grupo Dramático da Sociedade de Instrução Tavaredense. E a prova de exame vai fazer-se, mais uma vez, nada mais nada menos que com o “Frei Luís de Sousa”, de Almeida Garrett, hoje; e amanhã com os “Peraltas e Sécias”, de Marcelino Mesquita, cujo centenário ocorreu ontem, dia 1, e em Sintra, desta maneira, se regista e comemora – merecidamente.
         Do valor dos amadores que ides apreciar e que, neste momento, está provocando uma natural e humana espectativa em todos VV.Exas, podia eu falar – autorizadamente. Do barro de que eles são moldados; da forma como são trabalhados e postos sobre as tábuas de um palco, na encarnação dos mais diversos tipos sociais; do sacrifício dispendido e nergias consumidas na manutenção e crédito de uma obra de educação popular tão elevada, que seria impossível se não houvesse um idealista impoluto e competente que o soubesse animar e orientar com a continuidade e persistência da sua inteira dedicação à causa popular, com o seu fulgurante talento de encenador e com o fogo sagrado do seu entusiasmo pelo teatro: de todos estes pormenores podia eu também ocupar-me com inteiro conhecimento de causa.
         Porém, neste aspecto, desejo dar homem por mim, para que esse homem, a quem se deve, há mais de 30 anos consecutivos, o milagre do conjunto, valor, conceito e prestigio do grupo cénico de Tavarede, pela sua palavra fluente, vos fale da obra da Sociedade de Instrução Tavaredense, benemérito conservatório do povo da minha terra natal, aqui tão dignamente representada.
         Quero referir-me ao meu querido amigo e conterrâneo, antigo camarada dos caixotins tipográficos, autodidacta cultíssimo, jormalista primoroso, inspirado escritor, orador brilhante – José da Silva Ribeiro -, a quem peço mil perdões pela ousadia e consciente traição das minhas palavras, que sei perfeitamente quanto significam de impiedosos punhais a ferirem profundamente a reconhecida modéstia que o caracteriza e impõe mais ainda, mas que, em boa consciência, lhe são devidas – por sinceras, oportunas e justas. José Ribeiro é, de facto, a alma do “milagre” artístico que ides apreciar e julgar dentro de pouco.
         Peço-te, querido Mestre, que venhas junto de mim – para te apresentar ao povo de Sintra, aqui tão distintamente representado, afim de receberes dele – desde já solicitadas por mim -, as palmas quentes, simbolizando pétalas de flores mimosas desta enfeitiçante vila-jardim, lançadas carinhosamente sobre os garbosos pupilos que a tua sábia competência e orientação transformou num adorável cartaz do maior conceito para a nossa linda aldeia de Tavarede e para a benemérita Sociedade de Instrução Tavaredense, cuja gigantesca obra, traduzindo cultura, humanidade, disciplina, beleza e amor, reflecte e justifica o mais alto apreço e prestigio em que é tida a nossa terra, e para nós todos, que nela nascemos e a amamos até às profundezas da alma, representa dulcificante prazer e consubstancia legítimo e compreensível orgulho”.
         José da Silva Ribeiro, visivelmente contrariado – não por falsa modéstia, mas por temperamento e índole – surgiu ao público de Sintra, que o recebeu com uma quente e prolongada salva de palmas.
         E com a sua palavra fluente, falou – e de que maneira! – à distinta plateia que dentro em pouco iria apreciar os seus pupilos…
         Na facilidade de expressão que lhe é característica, brilhantemente, José Ribeiro fez uma análise dos misteres dos amadores de Tavarede, a sua dedicação à causa, à missão da benemérita Sociedade de Instrução Tavaredense, ao teatro português, etc., tecendo, por fim, um hino a Sintra e ao seu povo.
         A sua oração, constituindo um improviso felicíssimo – como sempre – calou profundamente no coração do público que enchia quase literalmente o majestoso “Carlos Manuel”, consciente de que iria de facto apreciar, em seguida, um grupo de amadores – e não de profissionais.
         O pano subiu. E o 1º acto de “Frei Luís de Sousa” decorreu…
         … logo deixando tranquilizar um pouco a natural e compreensível expectativa dos apreciadores de teatro a sério, que aplaudiram os intérpretes com frenesi, sinal de que estavam, realmente, na presença de um conjunto incapaz de envergonhar os autores das peças, a aldeia onde nasceu, a colectividade de recreio que representava – e as pessoas que se encorajaram a promover tão consoladora e feliz digressão – a bem dos pobres de Sintra.
         O decorrer da interpretação da peça provou, claramente, o valor e categoria dos amadores de Tavarede. Foi o público – selecto, de qualidade – que o classificou, não só através das suas palmas quentes, vibrantes, obrigando os amadores a vir duas e três vezes ao proscénio, como nas clamorosas chamadas a José Ribeiro, ensaiador compedtente e consciencioso, que, em vibrante apoteose de aclamações, recebeu, para si e para os seus “rapazes”, o prémio justo do povo de Sintra ali tão distintamente representado.
         No 2º dia, com “Peraltas e Sécias”, também os amadores tavaredenses lograram conquistar a simpatia geral dos seus espectadores, entre os quais se contando o escritor dr. Vasco de Mendonça Alves, autor da peça “A Conspiradora” (a representar brevemente pelos amadores de Tavarede); actor José Júlio Costa Pereira; escritor e poeta dr. José Rodrigues Tocha; prof. Alberto de Lacerda; dr. Leopoldo de Araújo, escritor teatral; engº Fontes Lima, inspector do Ensino Técnico; os actores Brunilde Júdice e Alves da Costa, que não esconderam o seu entusiasmo ante a actuação dos intérpretes da peça de Garrett, em que alguém surpreendeu aqueles artistas, em determinada passagem, a levar discretamente aos olhos o seu lenço de assoar – sinal evidente de que estavam a acompanhar e a “sentir” o trabalho dos personagens…
         No final do 2º acto, em cena aberta, Eduardo Frutuoso Gaio, activo e persistente delegado da mesa da Santa Casa da Misericórdia, de que é vice-provedor, junto da comissão organizadora dos espectáculos, surgiu no palco.
         “Venho na nobre missão da gratidão” – disse. E falando pelas vias do coração, Eduardo Gaio esplanou-se em considerações acerca do objectivo que presidiu aos instintos das pessoas que promoveram tão lindo momento espiritual e artístico, na sua terra natal, considerando de elevado e tocante exemplo a desinteressada colaboração, em beneficio do Hospital da Misericórdia, do simpático e valoroso grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense.
         Referiu-se aos amadores dramáticos de Tavarede – que classificou de admiráveis artistas – e bordou elogios, aliás merecidíssimos, ao respectivo director, José da Silva Ribeiro, a cuja inteligência e profundos conhecimentos e rara vocação para o teatro, se deve tão maravilhoso “milagre” de conjunto.
         Convidou a subir ao palco o provedor da Santa Casa, sr. capitão Américo dos Santos, e seus colegas de mesa. E este, por sua vez, convidou a subir ali, também, o presidente da Câmara Municipal, sr. dr. César Henrique Moreira Baptista. Todas estas entidades foram recebidas com uma prolongada e carinhosa salva de palmas.
         Então, Eduardo Gaio, escondendo uma natural e humana comoção (quem desconhece o seu virtuoso coração de homem bom e de alma abnegada, sempre pronta a colaborar nas boas iniciativas locais?), pediu, em nome da Misericórdia, que o mesmo é dizer, dos pobres de Sintra, a todas estas entidades, que se dignassem colocar sobre o peito dos amadores de Tavarede uma medalha, em “vermeil”, significando reconhecimento e gratidão.
         Tal insígnia, magnificamente cunhada, contendo, sobre o escudo de D. João V, uma lindíssima imagem de Nossa Senhora da Misericórdia de Sintra, instituída pela excelsa Rainha D. Leonor, fundadora em Portugal de tão adoráveis instituições de caridade pública, foi realmente colocada sobre o peito de todos os tavaredenses; de todos, inclusive dos que actuavam sem ser vistos pelos espectadores.
         Para a bandeira da gloriosa SIT foi oferecido um lindo laço de fitas de seda, com as cores heráldicas da vila de Sintra, e respectiva medalha de gratidão.
         Flores de Sintra, em profusão, para as raparigas do grupo. Abraços sinceros para todos os rapazes. E uma chamada especial para a filha do ilustre e saudoso dramaturgo Marcelino Mesquita, srª D. Inês Mesquita Ressano Garcia, presente ao espectáculo, que no palco recebeu merecido destaque através de boas palavras, de consagração ao ilustre autor de seus dias, e de flores e medalha da Misericórdia.
         Ao nosso director, promotor do movimento, e a seu filho António Pedrosa Medina, secretário da redacção e administrador do “Jornal de Sintra”, também foram feitas referências amáveis e entregues medalhas e público preito de gratidão.
         José Ribeiro, no uso da palavra, num rasgo de oratória brilhante (a enriquecer e a completar, ainda mais profundamente, a adorável “surpresa” do bom e do belo que os tavaredenses, em tão feliz hora, aqui vieram trazer), quis estabelecer ao contrário as contas do “deve” e “haver”…
         … afirmando que quem estava ali em dívida – eral eles, os tavaredenses…
         Como é natural, o “júri” dos “contabilistas”, mais sensatos e justos, não apoiaram José Ribeiro, que deve acabar por se convencer de que a verdade dos factos, no capítulo da gratidão, estava – e continua a estar – do lado dos sintrenses.
         Referindo-se às várias épocas do teatro – e a Marcelino Mesquita, em particular, cujo centenário ali se comemorava – o Mestre acabou por dar-nos uma proveitosa lição, facto que lhe valeu, no remate da sua brilhante oratória, uma quente e vibrante salva de palmas.
         D. Inês Ressano Garcia, entre carinhos, flores e lágrimas – lágrimas provocadas pela evocação devida à memória de seu ilustre e saudoso pai, ali lembrado e consagrado com a maior ternura – agradeceu a espontânea manifestação dos sintrenses e dos tavaredenses, confessando-se a todos infinitamente reconhecida.
         A menina Maria Manuela Silveira Dias, natural desta vila, por que deve particular simpatia e gratidão a D. Violinda Medina e Silva, quis oferecer-lhe um ramo de frescos gladíolos brancos. Assim, por intermédio do nosso director, irmão da distintíssima amadora, subiu ao palco e entregou-lhe essa graciosa lembrança, que foi correspondida com beijos de sentimento verdadeiramente maternal.
         E seguiu-se o espectáculo – que agradou em absoluto a todos que o presenciaram e se confessaram “vencidos” com a encantadora lição de “querer” de um humilde punhado de amadores que de tão longe desinteressadamente vieram, na missão da solidariedade, os quais, guiados pelos “dedos mágicos” de José Ribeiro, mais uma vez deram provas, “fora de casa”, do seu real valor artístico…
         … impuseram à consideração alheia a sua linda aldeia – e elevaram e prestigiaram o nome honrado da Sociedade de Instrução Tavaredense, que continua a esquecer-se completamente de si e das suas mais prementes necessidades, para se preocupar, apaixonadamente, com as necessidades e dores alheias, tão alevantados e nobres sentimentos constituindo, quanto a nós, o melhor e maior tesouro da sua razão de existência, há 50 anos devotada, amorosa e cristãmente, ao serviço da abençoada causa da cultura popular e da humanidade sofredora.
         Bem haja por isso. E bem haja por se dignar corresponder ao apelo do “Jornal de Sintra”, vindo até nós, em 2 e 3 do corrente, trabalhar – e muito bem – em proveito da pia e secular instituição de caridade pública que se chama Hospital da Misericórdia de Sintra.
         Estamos-lhe todos infinitamente reconhecidos e gratos. Todos!
         Podem gabar-se de que conquistaram o coração de Sintra!
         E nós – que lho entregámos de boa mente…

         … porque o sabemos em muito bons e dignos escrínios…