domingo, 31 de maio de 2015

Tavarede- A terra de meus avós - 8

As nossas brincadeiras e passatempos


         Vou começar o capítulo das minhas recordações pelas brincadeiras, que ocupavam os nossos tempos livres. E digo livres, porque, mesmo antes de iniciarmos a escola primária, aos Quatro Caminhos, muitos de nós tinham obrigações a cumprir, quer ajudando nas tarefas caseiras, quer nas terras, arrancando as ervas daninhas dos canteiros ou fazendo regas, nomeadamente no encaminhamento da água. Mas, mesmo assim, os nossos tempos para brincar não faltavam.   

Eram bem escassos, no entanto, os brinquedos que naquele tempo existiam para a rapaziada brincar. Nos dias em que havia festa da Igreja, era usual aparecerem, no Largo do Rio, os feirantes que, armando tenda com panos e colchas, penduravam as flores de papel, as santinhas feitas de açúcar, os fios de pinhões e outras guloseimas e um ou outro brinquedo de lata ou de madeira, como, por exemplo, aqueles trapezistas articulados, que faziam ginástica no trapézio, quando apertávamos as bases ou os lados do brinquedo. No chão, em seiras, estavam aquelas bolas coloridas que, presas com um elástico, terão sido as antecessoras dos modernos “yo-yos”.

         Mas isto acontecia uma ou duas vezes por ano, aqueles brinquedos nem todos podíamos comprar, e nós queríamos brincadeira todos os dias, embora sem prejuízo dos trabalhos escolares e do estudo das lições que o professor Coelho, primeiro, e depois o professor Constantino Tomé marcavam para casa.

         Claro que as brincadeiras estavam condicionadas ao estado do tempo. Com bom tempo, não parávamos em casa, mas se chovia, lá tínhamos de ir para os sítios abrigados. Posso dizer que, naquela época, não havia quaisquer problemas em a rapaziada andar a brincar fora de casa. O trânsito era diminuto e nos brincávamos nos largos, praticamente desertos.

         Jogávamos muito às escondidas. Um desses jogos chamava-se, salvo erro, a “Cruz de Guerra” e consistia em que o grupo escondido, ou fugitivo, ia assinalando, de forma discreta, com uma cruz riscada no chão ou feita em ramos de árvores, a direcção que tinham tomado. Todos conhecíamos muito bem os caminhos e terrenos aqui à volta e, muitas das vezes, a busca levava-nos até para cima dos Condados, etc. Eram tardes de campo, acontecendo algumas vezes os perseguidores não conseguirem decifrar as pistas deixadas, retirando de mãos vazias. Quando, ao fim do tempo combinado, apareciam, havia sempre grande gozo com os perdedores.

         O futebol já era a principal brincadeira. A bola era feita com uma velha meia, surripiada em casa, que enchíamos de trapos muito bem apertados. No meio, e para fazer peso, colocávamos uma pequena pedra. Devidamente enrolada e arredondada, a bola era cozida e estava apta para a jogatina. Quatro ou cinco de cada lado, muda aos seis e acaba aos doze, disputava-se rija partida.

         Outros jogos tradicionais eram o pião e o berlinde. Todos conhecem estes jogos. Para o jogo do pião, escolhíamos um lugar mais ou menos plano e com o piso mais firme, fazíamos uma circunferência, cujo tamanho dependia do número de jogadores. Havia piões de vários tamanhos. Neste aspecto eu tinha relativa sorte, pois meu tio Ricardo era torneiro nas oficinas do caminho de ferro, e frequentemente me fazia alguns piões. Para o nosso jogo, cada um lançava o pião à vez. Bem enrolado o cordel a partir do bico, normalmente com “gajim”, um fio utilizado nas redes de pesca e que os pescadores nos davam grandes pedaços, escolhíamos o melhor local para o lançamento. Depois, era aguardar que o pião acabasse de rodopiar e, ao deitar-se, fosse impelido, pelo seu movimento rotativo, a sair da circunferência. Se saía, tudo bem, de contrário eram os nossos adversários que lançavam o deles apontados ao nosso, procurando acertar-lhe até ele acabar por sair da roda. Algumas vezes conseguiam acertar em cheio e, visto os bicos bem aguçados, era certa a marca que ficava.

         O berlinde, aquelas bolinhas de vidro que serviam de rolha aos pirolitos, também nos entretinha muito tempo. Recordo-me que jogávamos aos castelos, quatro circunferências em quadrado, distantes umas das outras e uma outra ao centro. Todas elas tinham uma pequena cova ao meio, onde procurávamos enfiar os berlindes. Ganhava o que primeiro conquistasse os castelos.

         Outros brinquedos eram feitos por nós. As tradicionais fisgas, para atirar aos passaritos, mas mais usadas para torneios de tiro ao alvo, as carretas de madeira velha, mais ou menos capazes de rolarem nas descidas, etc.

         No tempo das laranjas, naquele tempo só havia laranjas dos nossos pomares e isto nos primeiros meses do ano, fazíamos grandes disputas com os estoques. Junto ao ribeiro, haviam grandes salgueiros. Nós cortávamos alguns ramos de grossura média. Depois recortávamos canudos, bem direitos, com uns dez a quinze centímetros de comprido. Com muito cuidado, tirávamos a casca e o sabugo do interior. Enquanto uma das pontas ficava direita, a outra era aguçada, para cortar a casca de laranja, que fazia de bucha. O êmbolo era feito com um pau de salgueiro ou vime, que desbastávamos com cuidado para ficar à grossura do interior do canudo. A pressão de ar, provocada por uma pancada seca no êmbolo, atirava a casca de laranja direita ao alvo. Bem infantis eram as nossas brincadeiras. E antes de passar para dentro de casa, ainda vou lembrar uma outra.

         A rua Direita, como as outras, aliás, era feita de terra, pedra, saibro e barro. Se o piso não era grande coisa em tempo bom, no Inverno tornava-se um verdadeiro problema para as pessoas circularem, no meio de autêntico lamaçal.

         Para a rapaziada, o tempo de chuva era ocasião para estas brincadeiras. Dos lados das ruas, junto às casas, havia uma espécie de valetas, que mais eram carreiros que escoavam as águas para as vielas que davam para o ribeiro.

         Mesmo em frente à casa de meus avós, e numa extensão de alguns metros, havia um desses carreiros mais regulares. Fazíamos, então, uma represa, limpávamos as areias e formava-se um lago. Era a nossa pista para as corridas de barcos. E estes, de que eram feitos? De carrasca de pinheiro. Procurávamos pelos pinhais vizinhos os pedaços de carrasca que abundavam, escolhendo os maiores e os mais grossos. Depois era a nossa imaginação e habilidade. Com um pequeno canivete, íamos lentamente desbastando de um lado e outro, dando o formato ao navio. Fazíamos a quilha, aguçávamos a proa e na ré não esquecíamos o pequeno leme. Moldávamos os bancos e se o tamanho o permitisse, até fazíamos a pequenita casita do pescador. Um ou dois mastros completavam a obra.

Na represa, púnhamos um canudo de cana para ir dando escoamento á água, o que fazia com que se formasse uma ligeira corrente. Escolhidos os limites para a corrida era dada a partida. Para dar mais velocidade aos barcos, nós íamo-nos ajoelhando para assoprar o nosso. É de calcular o belo estado em que ficavam as roupas ao arrastarmo-nos pelo chão para as assopradelas…

         Um outro entretenimento muito apreciado era as corridas de bicicleta. Aliás, eram sempre tardes de festa quando se realizavam as afamadas “voltas dos campeões”, em que os ciclistas passavam por Tavarede dez vezes. Íamos em ranchada, rapazes e raparigas, para os pinhais da estrada de Mira vê-los passar. Era um delírio a bater palmas. Mas a nossa brincadeira não metia bicicletas a sério. Cada um de nós tinha vários corredores, montados na bicicleta, desenhados em cartão. Cuidadosamente recortados do mesmo tamanho, eram pintados com as corres da nossa equipa. Escolhíamos, então, um sítio onde houvesse areia e marcávamos a distância para a corrida. Alinhados os corredores, lançávamos, à vez, um dado. O número de pintas que calhava era o número de comprimentos que cada corredor avançava. E, assim, se apurava o jogador e a equipa vencedores.

         Não vale a pena falar nas bolas de sabão e nos papagaios. Ainda hoje estão muito em voga, embora muito mais sofisticados.   Os nossos eram feitos com tiras de cana secas e com papel de jornal… Haviam mais brincadeiras, como corridas de arcos e outras que agora me não ocorrem.

         Mais difícil era quando o tempo estava de chuva e nos obrigava a ficar dentro de casa. Mas nem por isso deixávamos de brincar. As casas, quase todas, tinham amplas lojas ou enormes sótãos. Juntávamo-nos em casa de um ou outro. Gostávamos, por exemplo, de ler. Havia, naquele tempo, um pequeno jornal infantil, “O Mosquito”, que fazia as nossas delícias com as aventuras do “Capitão Meia-Noite”, do “Serafim e Malacuéco”, do “Cuto” e de tantos outros heróis, cujas histórias eram lidas e relidas vezes sem conta. Também um jornal diário, julgo que “O Século”, publicava às quintas-feiras o suplemento “Pim-Pam-Pum”, que, no dia seguinte, nos davam na barbearia, onde assinavam o jornal. Estes jornalinhos traziam, de quando em vez, uma folha de construções de armar. Colávamos em cartolina aqueles desenhos, a cola fazíamo-la nós com resina das cerejeiras e ameixieiras dissolvida em água, e depois de bem secos eram recortados e feitas as respectivas montagens. Tenho a ideia de um grande forte, com os índios a atacarem, a cavalo, e os soldados a defenderem-se nas trincheiras. Ao meio, na torre maior estava a bandeira. Eram vários os motivos e faziam uma colecção bastante engraçada.

         Também fazíamos montagens de casas e de grandes torres e castelos com bilhetes de caminho de ferro usados, de que tínhamos sempre grande fornecimento. Também nos serviam para jogar.

         Um outro passatempo gostaria de aqui deixar recordado. Na antiga casa da Sociedade, no lado norte, viviam o ti Manél do Casal e a Ti Maria Augusta, com sua família. Durante muitos anos ele foi o electricista da Sociedade e ela era a encarregada das limpezas.

         Quando se entrava pela porta da rua dos Condados, a que dava para esta residência, ficava, do lado esquerdo do corredor e com uma pequena janela para a rua, um quarto de arrumações de velhas coisas do teatro. Entre estas velharias havia uma máquina de projectar filmes, certamente que era a máquina que a Sociedade utilizou durante uns tempos para projecções, e que ainda funcionava. Com a parede a fazer de écran, ligávamos a máquina com uma bobine de filme que também lá havia, e tínhamos grandes sessões de cinema, embora muito repetitivas. O cinema era mudo, mas também tínhamos fundo musical, com a velha grafonola que lá havia e que, depois de darmos corda com uma manivela, arrancava música de alguns velhos discos que igualmente lá estavam. Muitas das agulhas da grafonola, algumas já bem ferrugentas, serviam para fazermos setas, com um pedaço de pau, para atirarmos a um alvo.

         A propósito de cinema, recordo uma outra das nossas brincadeiras. Numa caixa de cartão, das utilizadas para os sapatos, abríamos um rectângulo no fundo, que cobríamos com um bocado de papel de seda branco, colado à caixa. Entretanto recortávamos as figuras de jornais velhos, especialmente de animais, ou desenhávamos nós mesmos. Então, às escuras, acendíamos um pequeno couto de vela que colocávamos na caixa e íamos passando as figuras junto ao improvisado écran iluminado pela vela. Os assistentes estavam sentados no chão, frente à caixa. Era como que uma história de sombras, cuja exibição era acompanhada pela narração de uma história improvisada pelo “projectista”, de acordo com as figuras mostradas.

         Que ingenuidade a nossa! Com bem pouco nos contentávamos, Mas, na verdade, éramos felizes com as nossas brincadeiras. Algumas vezes, para termos mais assistência, anunciávamos o espectáculo com alguma antecedência. E, então, preparávamos convenientemente a sala para receber os espectadores nas melhores condições. Até chegávamos a ornamentar a “sala”! E um dos habituais adornos íamos buscá-los ao velho caminho do Robim, junto ao Selão.

         Eram bonitos e farfalhudos os penachos brancos. Bem lindos, por sinal. Mas era preciso muito cuidado para os apanhar. É que as folhas das canas, rijas e finas, cortavam como lâminas!”…

         Também eram de costume antigo realizarem-se os chamados “jogos tradicionais”. As notícias das antigas festas das festas sanjoaninas, na nossa terra, dizem que, na segunda feira seguinte, a tarde era dedicada a estes jogos e que tinham sempre farta concorrência de assistentes e participantes. Talvez o número mais apreciado fosse a rosquilhada, mas outros jogos tinham lugar, como corridas diversas, malha, pela, etc.

         Em Setembro de 1950, um tavaredense que havia regressado à nossa terra havia pouco tempo, resolveu reviver este costume. Eis a notícia:

         “TARDE DESPORTIVA - O sr. António Nunes Cruz, impenitente amigo do desporto, organizou no passado domingo, de colaboração com vários amigos, diversas provas desportivas, que constaram de “2 voltas pedestres ao Pêso”, “corridas de sacos”, de “ovos” e “rosquilhada”.
         Pelas 15,40 horas os “atletas” largaram em vertiginosa corrida. O resultado desta prova foi o seguinte: 1º. prémio, José Esteves; 2º., João Gil; 3º., José Rodrigues Gil (todos de Caceira); 4º., João Júlio, de Tavarede.
         Desistiu João da Silva Maltez, em face dum “laço de corda” que sua mãe, traiçoeiramente, lhe deitou às pernas no momento em que concluia a primeira volta.

A seguir realizou-se a prova dos ovos – percurso de 100 metros, com uma colher das de sopa na boca e um ovo -, que teve o seguinte resultado: 1º. prémio, Francisco Cardoso; 2º., Júlio Manta; 3º., José Rodrigues Dias; 4º., Júlio Rodrigues.
         Seguiu-se a “corrida de sacos”, cujo resultado foi como segue: 1º. prémio, Francisco Cardoso; 2º., António da Silva Maltez; 3º., Manuel Vitorino; 4º., o menino António Manuel de Figueiredo.
         Por fim, teve lugar a “rosquilhada”, apresentando-se os “desportistas” montados em bicicletas, com excepção de Pedro Medina que, comodamente, se fez conduzir num carro de mão.
         Nesta prova registou-se um acidente, já no final: uma queda que provocou injustificada agressão por parte de quem tinha o dever de se mostrar disciplinado e disciplinador.
         A entrega dos prémios fez-se no Grupo Musical, onde se realizou uma “matinée” dançante…”.

          Como última evocação dos jogos tradicionais que tanto se praticavam em Tavarede, recordo o jogo da pela, em que, nas tardes domingueiras e na rua Direita, se disputavam grandes desafios. Com o pequeno banco deitado no chão e uma pequena bola, raparigas e rapazes dividiam-se em dois grupos e eram os intérpretes desta engraçada diversão. Bons tempos aqueles!



O Associativismo na Terra do Limonete - 130

         Ainda no mesmo ano e em Novembro, respigámos este pequeno recorte de uma notícia divulgando a actividade no Grupo Musical e de Instrução. ... actualmente desenvolve diversas actividades: escola de música, biblioteca, equipa de futsal, jogos tradicionais, rancho O Limonete, bem como participações nas actividades do movimento associativo do concelho. A colectividade prepara o seu centenário e, brevemente, será anunciada uma comissão para o implementar e fazer que a data seja comemorada com a dignidade que o seu rico historial merece.

 
         Ao começar as notas referentes ao ano de 2007, vamos permitir-nos a fazer umas pequenas recordações, aliás, relacionadas com um facto ocorrido pelas comemorações de mais um aniversário da Sociedade de Instrução Tavaredense, festejado em Janeiro daquele ano.

         Já temos referido, em qualquer outro caderno, que Tavarede, ao tempo da nossa meninice, era uma pequena aldeia de gente de trabalho mas feliz e vivendo em alegria. Eram constantes as cantigas que se ouviam. No ribeiro, ao largo da Igreja, enquanto lavavam a roupa, ou nas leiras ao redor do casario, ao mesmo tempo que sachavam suas sementeiras ou cultivavam as tão saborosas novidades, ou ainda durante a lide nas tarefas caseiras. 

  
         Dava gosto escutar as alegres cantigas que se espalhavam pelos ares. E uma coisa era verdade. Eram cantigas bonitas que, em tempos passados, faziam parte das muitas operetas representadas nas associações locais. Escritas por inspirados poetas e musicadas com sensibilidade, versavam essas cantigas a vida das nossas gentes e o seu trabalho árduo na agricultura. Bons e ditosos tempos aqueles. Há muito tempo, porém, que a aldeia emudeceu. Já não se ouvem cantigas na terra do limonete, excepto nos teatros em que, com muito entusiasmo e teimosamente, ainda se vão ouvindo e recordando.

         Esta lembrança vem a propósito de uma apresentação a que se refere a nota seguinte. A celebração do 103º aniversário da Sociedade de Instrução Tavaredense serviu para a estreia do grupo coral que interpretou composições que fizeram parte das peças musicais que a colectividade representou desde 1905. O maestro João Silva Cascão foi o responsável por dar forma coral a composições que antigamente eram utilizadas por José da Silva Ribeiro para ‘contar’ a história local. Contudo, agora duas dezenas as vozes que as entoam, através de elementos que vão desde os 20 aos 84 anos.

         Não era a primeira vez que se formava um grupo coral na nossa terra. Certamente ainda não estarão esquecidas as referências que fizemos, quando recordámos a década dos anos vinte do século passado, em que ambas as associações locais organizaram grupos corais. Com elevado número de coralistas, que chegaram a apresentar-se na Figueirsa em espectáculos ali levados a efeito. Também, muito mais recentermernte, o Grupo Musical tomou a iniciativa de organizar o seu grupo coral. No entanto, e com pena o confessamos, não vingou.

 
Aquando das comemorações do centenário da Sociedade de Instrução Tavaredense, lembrámos que o serão realizado pelo S. Martinho de 2004, terá sido o ‘embrião’ deste novo grupo coral. Porquê? Eram praticamente desconhecidas das actuais gerações, as operetas apresentadas no palco daquela colectividade nos já muito distantes anos de 1925, 1926 e 1927. E, então, foi considerado interessante promover ‘serões’ evocativos, durante os quais se resumisse os enredos das operetas, escritas expressamente para o nosso palco e baseadas na vida aldeã da terra tavaredense.

Além do texto, e porque algumas das canções destas operetas ainda eram conhecidas, devido a Mestre José Ribeiro ter usado as mesmas, noutros trabalhos seus mais recentes, com a mesma letra ou escrevendo novos versos, e, também, porque as críticas que nos deixaram diversos comentadores nos jornais da época, procurou-se fazer reviver alguns dos números que haviam causado tão belas impressões.

A amável colaboração do maestro João Gaspar da Silva Cascão, figueirense, mas com raízes bem fundas em Tavarede, o qual pacientemente, gravou as músicas escolhidas e que foram utilizadas quer nos ensaios quer no referido ‘serão’. Seguiu-se, depois, o espectáculo que comemorou a efeméride dos 20 anos da morte de José Ribeiro, no qual igualmente se reviveram diversas cantigas tão antigas e tão bonitas.

Foi, assim, que em Janeiro de 2007, durante as comemorações do 103º aniversário da Sociedade de Instrução Tavaredense, foi apresentado em público, pela primeira vez, o coral ‘Cantigas de Tavarede’, na ocasião ainda sem nome. O sucesso foi enorme, mas vejamos uma notícia sobre estas comemorações. Com o brilho que já não surpreende, a centenária e valorosa SIT festejou masis um dos seus aniversários. Este ano foi o 103º e lá vai caminhando, caminhando nos trilhos em que a colocaram e nos quais vai contribuindo para cultura da região.
O seu fiel público, e não só, não regateou aplausos em diversos momentos dos três principais eventos que integraram as comemorações. Ainda que se tenham tornado bem mais calorosos no decorrer de um deles.
No dia 20, sábado, pelas 21,45 horas, mais uma vez se evidenciou o seu cartão de visita, o seu consagrado grupo cénico, com a peça ‘Terra Fria’ de Miguel Torga, o escritor poeta transmontano cujo centenário de nascimento já Coimbra e Vila Real começaram a comemorar.
Em cena, cerca de uma dezena de amadores que se saíram a contento. Uns evidenciando o seu traquejo, outros sendo encaminhados e encaminhando-se, cheios de boa vontade, na arte querida de Tavarede.
Embora não se tenha tratado de uma peça muito exigente, os amadores tavaredenses e quem os dirige deram bem conta do recado perante uma sala cheia e atenta. No entanto, quer-nos parecer, pelo pouco que ainda ouvimos no final, que vários espectadores ficaram sem entender o que era ‘Rilhafois’ ou ‘Rilhafoles’, - local ou estabelecimento para onde o velho demente (Fernando Romeiro) – o que não nos admira e um gesto adequado daria a entender, ou o que dizia a carta que fulminou a paciente e esperançada senhora (a convincente Helena Rodrigues) que sobre o palco baqueou destemidamente, (tadinha!!) na conclusão da peça.
Na tarde de domingo, 21, as comemorações atingiram o seu ponto alto com a apresentação de um grupo coral ainda a dar os primeiros passos e por baptizar, mas que a marca de garantia que o maestro João Cascão lhe conferiu e garantirá.
‘O Grupo de Cantos de Teatro de Tavarede’ (desculpem o apadrinhamento) foi aplaudido com entusiasmo ao fazer-se ouvir em peças que, noutros tempos, foram êxitos nas diferentes revistas e operetas que tiveram o cunho de mestre José Ribeiro e outros saudosos tavaredenses. O grupo apresentou-se com cerca de trinta elementos, em trajes teatrais.
A esse agradável e animado espectáculo, que o maestro João Casção valorizou com as suas explicações, seguiu-se, já com menor assistência, a tradicional sessão solene.
A respectiva mesa foi presidida pelo vereador José Elísio, em representação do presidente da Câmara, que abriu e encerrou a sessão em que se ouviram os hinos da sociedade e do concelho.
Depois de uma informal apresentação dos novos corpos gerentes, seguiram as breves intervenções de Carlos Cardoso (convidado), Ilda Simões (responsável do grupo cénico), Azenha Gomes (representante das colectividades do concelho), e Vitor Madaleno (presidente da Junta de Freguesia de Tavarede).
Foi orador oficial o conhecido brenhense e universitário José Augusto Bernardes que dissertou, de modo breve, sobre Miguel Torga.
Talvez pelo muito que se tem dito, escrito e lido sobre o agreste mas valoroso  escritor/poeta, ficamos com dúvidas que a curta intervenção tenha correspondido às expectativas. Às nossas não correspondeu.
Pena foi, mas compreendemos as razões, que sobre aquele vulto das nossas letras, pouquíssimo se tenha falado, antes da apresentação da referida peça. Esperemos, esperançados, que na próxima representação tal se faça. 

Terminamos enviando à centenária SIT que, com 103 anos, lá vai, consciente e orgulhosamente, continuando.

         Em Março seguinte, a associação festejou mais uma efeméride, o centenário do nascimento do consagrado dramaturgo, escritor e poeta Miguel Torga. A Sociedade de Instrução Tavaredense e o Lions Clube da Figueira da Foz promoveram, recentemente, um sarau cultural que homenageou Miguel Torga, com poemas declamados por Ilda Simões e Fernando Romeiro, além de um historial acerca da vida e obra deste grande nome da literatura portuguesa.
        O espectáculo contou também com a segunda actuação do grupo ‘Cantigas de Tavarede’, que apresentou dez temas musicados que relembram parte das revistas representadas pela colectividade ao longo dos seus 103 anos de vida. Dirigidos pelo maestro João Cascão, o grupo cantou e encantou os presentes que puderam assim ‘viajar’ na história da SIT e da freguesia de Tavarede.

         A partir de então o coral ‘Cantigas de Tavarede’ tem realizado diversos espectáculos e em diversos locais. A propósito deste coral tavaredense, não podemos deixar de aqui referir um comentário, de uma pessoa conhecedora da matéria e que está inserida na imprensa figueirense. Com cerca de quatro dezenas de elementos, todos amadores, o coral da Sociedade de Instrução Tavaredense é a mais recente ‘menina dos olhos’ de Silva Cascão, sendo director musical e maestro.
         As diversas ocupações profissionais dos seus elementos tornam difíceis os ensaios participados por todos, mas não diminuem a dedicação que lhes dedicam. Os resultados têm sido positivos e muito aplaudidos. Foi o que aconteceu recentemente, quando a maestrina do ‘Academic Chois of Students Cultural Center of Universty of Nis’ grupo que esteve na Figueira da Foz para o I FigFolk Music  e actuou naquela colectividade, disse, sobre o coral da SIT que este é ‘o único deste género no Mundo’ e que foi ‘a primeira vez na vida’ que ouviu ‘cantar com o  coração’, classificando-o de ‘simplesmente fabuloso’.

         Aproveitamos para esclarecer que era nossa intenção terminar estes apontamentos com o centenário da Sociedade de Instrução Tavaredense. Era injusta esta nossa pretensão. Somente sete anos nos separavam do centenário de outra colectividade tavaredense: o Grupo Musical e de Instrução Tavaredense.

         Embora dispuséssemos de poucos elementos, resolvemos prolongar estas recordações e memórias por mais uns anos. Esclarecemos, porém, que estas notas estão muito incompletas, mas, sinceramente o confessamos, já não nos sentimos com forças e ânimo para mais pesquisas. Que nos seja perdoada a falta, mas deixamos o apelo a alguém mais jovem e que se sinta com disposição para isso, continuar estas histórias, prosseguindo  com as notas sobre o Associativismo nas Terra do Limonete.

         Ficam, especialmente, prejudicadas as restantes associações da freguesia, recordando, por exemplo, que o Grupo Musical Carritense também já está bastante aproximado dos seus primeiros cem anos de existência.


sábado, 23 de maio de 2015

Tavarede - A terra de meus avós - 7

Vida da aldeia


Se pretendo fazer uma descrição da vida em Tavarede, por volta dos anos 1940/1950, também se torna necessário recordar um pouco a maneira de viver das famílias aldeãs. Já sabemos que a nossa terra, sendo uma freguesia rural, tinha grande dependência da agricultura. No entanto, e excepto três ou quatro casos, em que tinham quintas um pouco maiores, a grande maioria da população tavaredense que vivia das terras, não eram mais do que pequenos, mesmo pequeníssimos lavradores. Tanto assim que bem cedo se aperceberam da necessidade de mandarem seus filhos trabalhar na cidade, aprender um ofício, uma forma de enfrentar a vida mais segura do que o cultivo e amanho das leiras de terra, que, tantas vezes isso acontecia, bastava uma intempérie mais fora do tempo, para dar cabo do esforço de tantos meses.

Feita a quarta classe, o que nem todos conseguiam, não por falta de capacidade intelectual mas, sim, de recursos económicos, logo procuravam emprego nas oficinas, armazéns e obras. Alguns, com enorme esforço, conseguiam continuar os seus estudos e tiravam o curso comercial ou industrial na Escola Dr. Bernardino Machado, durante o período do Estado Novo denominada Escola Industrial e Comercial Tomás Bordalo Pinheiro. A Figueira também possuía o curso liceal, até ao quinto ano, e a Academia Figueirense, na rua de Santo António, particular, mas que só davam aulas diurnas. Por isso, trabalhando de dia, somente naquela escola era possível estudar à noite.

E se muitos aprenderam e exerceram os misteres de ferreiro, serralheiro, sapateiro e tantas outras profissões, uma grande parte conseguiu, graças ao estudo nocturno, empregar-se nos escritórios da Companhia dos Caminhos de Ferro da Beira Alta, principal empregadora local, noutros escritórios e em estabelecimentos comerciais, ramo bastante florescente na época. Recordo que, já no meu tempo, muitos eram os rapazes e raparigas que prosseguiram os seus estudos na Figueira, durante o dia, e, nas férias grandes, empregavam-se como marçanos nas lojas comerciais que, durante a época balnear, abriam as suas sucursais no Bairro Novo, onde, durante o Inverno, praticamente não havia actividade comercial. Como mantinham abertos os seus estabelecimentos sede na Baixa, recorriam aos alunos para irem trabalhar durante aqueles três meses. Por mim, foram três épocas que ali trabalhei, desempenhando a tarefa de marçano na Sapataria Quaresma,  na sucursal que então abria na Rua Cândido dos Reis, frente ao antigo Hotel Portugal.

Outra profissão para a qual Tavarede sempre deu um grande contingente, foi a de tipógrafo. Havia várias tipografias na Figueira, algumas com jornais semanais ou bi-semanais, e o trabalho não faltava, pois a composição, impressão e encadernação, etc., eram tudo tarefas manuais. Meu padrinho, Manuel Nogueira, tinha uma tipografia no Pinhal, mesmo em frente ao portão do Liceu. Durante as férias do Natal e da Páscoa, era certo e sabido que lá ia eu “ajudar” nas tarefas necessárias, muito especialmente a numerar impressos e fazer intercalações. Também aprendi a “caixa” e fazia a distribuição dos tipos das chapas já utilizadas. Ainda hoje me lembro alguns dos cacifos, mas muito vagamente. O que recordo muito bem é que, como marçano, o meu primeiro ordenado foi de 120$00 por mês, e como aprendiz de tipógrafo 1$00 por dia. Isto em 1945/1946.

Regressemos a Tavarede. Algumas famílias, já o disse, tinham a agricultura como principal actividade. Mas as suas terras não eram suficientemente grandes para uma ocupação total, pelo que, sendo cavadores, trabalhavam nas quintas vizinhas ou para outros pequenos lavradores, nas sementeiras e, em especial, nas ocasiões da cava e tratamento das vinhas. Havia umas famílias tavaredenses, os Migueis e os Fadigas que, tendo bois de trabalho, além de lavrarem as terras, faziam os transportes na cidade das mercadorias que chegavam pelo caminho de ferro.

Por melhor conhecimento, e porque não haveria grandes diferenças, vou recorder, muito resumidamente, um pouco de como se vivia em Tavarede, naqueles já distantes tempos, servindo-me da lembrança de meus avós paternos. Moravam na rua Direita, um pouco abaixo do largo do Paço, numa casa igual a tantas outras. A casa tinha duas portas, uma, a principal, que, por uma escada em dois lances, conduzia ao primeiro andar, e uma outra, bastante mais larga, que era a chamada porta da adega.

Ao lado da casa ficava o quintal. Quando entrávamos o portão, tínhamos à nossa direita o poço, cuja água, muito boa, era puxada por uma bomba manual. Diziam que era o mesmo veio que fornecia a fonte. A seguir ficavam as escadas, em pedra, com corrimão em grade de ferro, por onde se subia ao primeiro andar. A escada dava para uma varanda a toda a largura da casa, donde se avistava toda a fértil zona sul da aldeia.Do outro lado do quintal, junto à entrada estava a casota do enorme cão de guarda, e encostado ao fundo, ficava um curral onde tinham os animais, duas vacas leiteiras, um burrito e o porco. À vontade, pelo curral e quintal, andavam as galinhas e galos. No curral ainda ficavam guardadas algumas alfaias agrícolas, uma carrocita e a palha, de produção própria e comprada, para sustento dos animais.

Na loja, que era transformada em adega, na devida ocasião, para a venda do vinho, como noutro local refiro, estavam os canteiros com as pipas, tendo a um dos lados um enorme balseiro, onde as uvas eram pisadas e o bagaço prensado, na velha prensa manual, montada depois de trasfegado o mosto. Por baixo da escada, estava a salgadeira, de madeira, onde se guardavam as carnes da matança do porco. Poceiros, cestos e medidas espalhavam-se pelo espaço restante. Com uma tosca divisória, ficava ao fundo o quarto do criado, o S’Tóino.

O primeiro andar era a residência, com a cozinha e sala de jantar viradas para a varanda. Mais três quartos compunham as divisões da casa. No corredor ficava a entrada para o sótão, para o qual se subia por uma estreita escada que tinha um corrimão daqueles que nós, rapazes, tanto gostávamos de descer ao escorrega.

O sótão era amplo, com duas janelas, e não tinha nada de especial. Era ali que eram guardados os cereais das colheitas e as leguminosas. Lá se viam os poceiros com milho, trigo, centeio, feijão, de várias espécies, grão de bico e chícharos, tão usuais naquela altura e que agora rarissimamente aparecem, apesar de fazerem uma sopa deliciosa. Também ali guardavam a fruta. Num canto, sobre palha, amadureciam as peras francesas ou de Inverno que, assim amadurecidas, tinham um sabor maravilhoso. Por ocasião das vindimas, estendiam diversos cordéis, onde penduravam muitos cachos de uvas brancas que ali secavam e se transformavam nas passas utilizadas, por ocasião do Natal, para as tortas doces.

Como se pode avaliar, era uma casa absolutamente idêntica a todas as outras casas de pequenos lavradores. Modesta, como todas, mas uma casa onde, felizmente, havia sempre relativa fartura.

Meu avô havia trabalhado como serralheiro ou ferreiro na Companhia do Gaz, mas sempre o conheci na situação de reforma. Minha avó tratava das lides da casa e dos gados. Manhã cedo, Verão ou Inverno, ia ela a caminho da Figueira, com o S’Tóino, fazer a venda do leite às clientes habituais. Quando tinham venda para o mercado, couves, nabos ou quaisquer novidades, levavam a carrocita puxada pelo burrico.

As fazendas da Sinceira, na Chã, e a Matioa, eram cuidadosamente tratadas por meu avô e pelo criado, recorrendo, quando das lavras, ao serviço de fora. Os filhos também ajudavam, nas suas horas vagas. Não vou descrever nada da vida agrícola naquelas fazendas. Era tudo normal. O que melhor me recorda são os figos negritos de uma enorme figueira que lá havia e que, quando bem maduros, muitas vezes foram a minha merenda, com uma fatia de broa. Também me não esquecem os enormes morangos que se criavam nas valas, no meio da altas ervas. Eram todos para os netos e netas.

Eu passava muito tempo em casa de meus avós, por isso me recordo muito bem das diversas tarefas, como as vindimas, a venda do vinho e a matança do porco. Noutro local procurarei evocar estas cenas.

Uma coisa, entre outras, nunca me esqueceu. A minha merenda era habitualmente uma grossa fatia de broa, com uma espessa camada de manteiga, feita por minha avó, e um púcaro de leite. Outras vezes era um valente prato de papas de farinha cobertas por açúcar e uma boa dose de leite. Simplesmente, uma pequena maravilha.

“Tavarede, pequena mas interessante aldeia, a dois quilómetros e meio da Figueira, é a terra natal do nosso director e onde vive a sua família. Foi lá, num alegre convívio, cheios de atenções, que passámos a tarde. Sentíamo-nos ali verdadeiramente felizes. Naquela aldeia pequenina, fóra do bulício da grande urbe, entre aquela gente simples, de coração puro, reside o verdadeiro bem-estar, aquele optimismo que varre do cérebro a atmosfera pesada das nossas quotidianas preocupações”, escreveu-se no “Jornal de Sintra, por ocasião da excursão de sintrenses já citada.

Mas, embora tenham sido proferidas uns anos mais tarde, não posso deixar de aqui transcrever, pois se enquadra perfeitamente neste capítulo, um pequeno extracto de um discurso feito pelo nosso Amigo Padre António Matos, numa sessão solene local:
“…….E queria lembrar, à maneira de uma vivência pessoal deste pouco tempo em que estou aqui em Tavarede, queria lembrar alguma coisa desta gente. Queria lembrar que é gente simples, trabalhadora, que não vem aqui para o palco tecer um hino trabalho apenas de uma maneira teórica, mas porque o sente bem nas suas mãos, nos seus campos, na sua casa, nas oficinas, nos escritórios, sente o peso do trabalho, mas porque não encara o trabalho como um peso, tece um hino ao trabalho, esse trabalho que pode transformar o Mundo e que tem de ser, ele, o único a transformar este Portugal em que nós estamos. É gente bem educada, gente correcta, gente delicada, atenciosa. E eu digo isto tudo, não é para que eles depois digam que eu estive a dizer bem deles, não é por uma questão de emulação, mas é numa atitude de sinceridade, porque no convívio com eles em cada um tenho um amigo, por isso posso testemunhar todos estes predicados da boa gente de Tavarede.
         Gente com um certo nível de cultura. Que ultrapassou um pouco aquele tempo da instrução primária, nós já sabemos porquê e já diremos porquê.
         Gente polida nas suas maneiras, é gente que sabe viver em grupo, em comunidade. Eu considero este ponto importantíssimo para uma comunidade em que as pessoas se isolam, em que cada uma não pensa única e simplesmente nas suas coisas, na sua casa. Tantas vezes à noite eu os vejo passar para esta casa, deixando as suas coisas. Mas é uma sociedade, é um grupo, é uma comunidade, é uma família. E até ainda neste aspecto de família, eu queria dar um testemunho muito grande. Quando há trabalho na Igreja, e independentemente das suas profissões religiosas, independentemente dos seus credos políticos, damo-nos as mãos mutuamente e tantas vezes eu tenho vindo aqui e eles me perguntam: - Então, Senhor Padre, quando é trabalho, tal coisa? Veja lá, marquemos com tempo, para depois podermos ser todos a trabalhar.
         Isto é importantíssimo numa terra, e é consolador para mim que sou o Pároco desta terra que é a minha.

         Gente que trabalha em comum. Eu não tenho dúvidas nenhumas em dizer que todos estes valores humanos se devem a uma espécie de pequena Universidade que temos cá na terra, e a um magnífico Reitor. Eu refiro-me à Sociedade de Instrução Tavaredense e ao meu grande amigo José Ribeiro…”.

(Avô António Medina)





O Associativismo na Terra do Limonete - 129

G.M.I.T. – Cem anos


         Cumprido o programa das festas comemorativas do centenário da Sociedade de Instrução Tavaredense que, embora os nossos apontamentos tenham uma forma muito resumida, tiveram enorme brilhantismo, vamos continuar a história do associativismo na terra do  limonete, tanto mais que outro centenário se avizinhava: o do Grupo Musical e de Instrução Tavaredense.

         No ano de 2004, em Março e sob o título de ’25 anos ao serviço da população do Saltadouro’, um semanário figueirense publicou uma notícia sobre esta colectividade, da qual recortamos as seguintes notas. ... nos últimos oito anos sucedem-se as obras. Há dois anos fizemos as casas de banho para os camarins, a cozinha e agora concluímos o piso do salão e do palco. Faltam apenas o pano de boca e os acessórios do palco. Não podíamos fazer mais do que fizemos. As restantes obras serão feitas pela direcção a eleger no final do ano. Depois da vistoria das obras, vamos requerer o Estatuto de Utilidade Pública, disse a presidente da colectividade na sessão comemorativa do 25º aniversário...
         ... Atletismo, música, Rancho são algumas das actividades. O teatro desenvolveu-se graças aos Carolas... A escola de alfabetização de adultos, graças ao apoio da Câmara Municipal e da Comissão Social de Tavarede, 8 alunos dos 26 aos 76 anos frequentam as aulas três vezes por semana e os professores são contratados pelo município...

         No mês seguinte, um outro facto de muita relevância, foi a inauguração dos melhoramentos realizados na colectividade da Chã. Foi de festa o Dia Mundial do Teatro no Grupo Desportivo e Recreativo da Chã com a inauguração formal da sede e de uma sala museu onde a colectividade tem exposto o espólio arrecadado ao longo dos anos. Um espaço em que o nome de António Cardoso Ferreira fica perpetuado numa placa colocada como forma de lhe agradecer as milhares de horas dedicadas à colectividade.
 ... Na sede da colectividade foram investidos ao longo de 17 anos, além de muitas horas de trabalho, cerca de 250 mil euros, bem visiveis nas instalações, particularmente na nova sala de espectáculos. Paralelamente, no reaproveitamento da sala da entrada, a sala museu, foram investidos cerca de 10 mil euros, num espaço onde estão expostos trofeus, trajes, fotografias, medalhas, entre outro material.

         O Grupo Musical e de Instrução Tavaredense comemorou mais um aniversário da sua fundação e, durante a habitual sessão solene, foi demonstrada a sua actividade. ... a constituição da escola de música e do rancho O Limonete. Como projecto de trabalho, a criação de uma secção de teatro de revista, melhorar o palco, incentivar a escola de música e o recem criado rancho. Anunciou, também, a criação de uma secção destinada ao fomento do desporto. A nível de obras a prioridade é construir duas salas, uma para a biblioteca e outra para disponibilizar a internet aos jovens que frequentam a colectividade, foram algumas das palavras do presidente da direcção na sessão solene comemorativa dos 93 anos.

         No ano seguinte, 2005, atendendo a um convite que lhe foi feito pelo Casino figueirense, o grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense foi ali apresentar um espectáculo propositadamente ensaiado para o efeito, e ao qual deu o título de Momentos de TeatroEntretanto, também o grupo de teatro da SIT actuou esta semana no salão café do Casino da Figueira no âmbito da iniciativa ‘Cine Teatro Casino’. ‘Momentos de Teatro’ – título genérico dado a este serão cultural – foi um espectáculo concebido com o intuito de dar a conhecer as várias facetas do teatro que se faz em Tavarede.
         Da comédia ao drama, passando pelo teatro musicado, reviveram-se textos representados na SIT, uns já longínquos no tempo, como ‘O Processo de Jesus’ e a ‘Terra do Limonete’ e outros mais recentes como a ‘Marcha do Centenário’ e ‘O Leque de Lady Windermere’. Depois de semanas a produzir o que de melhor se faz em teatro na região, a Sociedade de Instrução Tavaredense, que outrora mestre José da Silva Ribeiro preparou para o futuro, voltou com o seu elenco ao palco do Casino da Figueira para mostrar a arte de Talma.


         Aproveitando as festas comemorativas do 102º aniversário, a Sociedade de Instrução Tavaredense homenageou a memória do saudoso amador, ponto, director e bibliotecário José Maria Cordeiro (Zé Neto), no decorrer da tradicional sessão solene, que teve a colaboração do Orfeão Académico de Coimbra.

A Sociedade de Instrução Tavaredense comemorou no passado domingo 102 anos de existência, com a apresentação de duas peças de teatro – domínio em que a colectividade desde sempre se destacou – e uma sessão solene que teve como momentos altos, a par do espectáculo musical do Orfeão Académico de Coimbra, o descerramento do retrato de José Maria Cordeiro (Neto), antigo director, ponto, actor amador e colaborador em várias áreas, como é, aliás, apanágio da vida associativa. O presidente da SIT tem para o 103º ano de vida da colectividade mais projectos do que verbas, uma das razões para a alteração dos estatutos que brevemente será apresentada aos sócios, de forma a permitir a candidatura ao Estatuto de Utilidade Pública, que por sua vez possibilitará o acesso a subsídios do Estado. Enquanto estes e outros fundos não vêm, aponta como principais prioridades as obras na sala de espectáculos e a substituição do telhado.

         Em Março de 2006 mais uma vez a colectividade do Saltadouro esteve em festa com as comemorações de mais um aniversário. A presidente da direcção, em dia de festa, reclama para o Clube Desportivo e Amizade do Saltadouro novas e mais funcionais condições técnicas respeitantes à realização de diversas actividades. Entre elas, destaca-se a necessidade de aquisição de equipamento de luz e de som, afim de ‘dar outra dignidade às nossas actividades.
         Ao longo destes quase 30 anos de vida, a pequena barraca de madeira deu lugar a uma sede grandiosa, onde agora existe espaço para um museu etnográfico onde pontuam pedaços da história não só da colectividade, mas das próprias gentes e ofícios do Saltadouro.

         Também destacamos a festa, em Agosto daquele mesmo ano, dos 95 anos da fundação do GMIT. A passagem de mais um aniversário deixa para trás um ano difícil no Grupo Musical e de Instrução Tavaredense, com alguns conflitos e desconfianças financeiras que já levaram o caso ao tribunal. Ultrapassados os momentos de celeuma ‘é altura de olhar em frente e começar a pensar no futuro’, foi dito na sessão solene.
         ... com um ano de muito trabalho na sede, a direcção apostou no alargamento do palco em mais três metros e num novo pano de boca, benefício que orçou em mais de 2.500 eutos. Mas as obras de reabilitação não acabaram por aqui, abrangendo também toda a zona do bar, que recebeu novos equipamentos e electrodomésticos, além da recuparação do bilhar de snocker, muitas pinturas. Um investimento que terá ultrapassado os dez mil euros.


E foi em Novembro de 2006, que a Sociedade de Instrução Tavaredense comemorou uma outra efeméride, os 20 anos da morte de Mestre José da Silva Ribeiro.
Com uma  romagem o cemitério, uma missa na Igreja paroquial e um espectáculo evocativo, a Sociedade de Instrução Tavaredense recordou José da Silva Ribeiro, exactamente na passagem do 20º aniversário da sua morte (13 de Setembro de 1986). Tratou-se de recordar ‘uma figura que sempre vai ficar ligada a esta casa’, segundo referiu Vitor Medina, pouco antes de terem apresentado algumas das passagens, mais significativas da vida de José da Silva Ribeiro, naquele teatro.

          O presidente da direcção da SIT acredita que ‘dificilmente haverá outro homem da cultura como ele, em Tavarede e no concelho’, focando a vida multifacetada do mestre, que depois ficaria bem presente na representação de ‘O sonho do passado, a esperança do futuro’, em que foi feita uma recolha focando-se ‘aspectos que nunca foram contados sobre a sua história no teatro da colectividade’, além de excertos de peças da sua autoria em que também representou e de outras já como encenador, entre as quais ‘a primeira e a última que ele ensaiou’.
         Apesar de não se saber com exactidão a data em que José da Silva Ribeiro entrou para a SIT (começou no ‘Teatrinho do Senhor Conde’ como amador de teatro), e em 1910 já representava na colectividade que agora o homenageou. Pouco depois já escrevia alguns textos (em 1911 a ‘Voz da Justiça’ felicita-o como autor, por fazer a apologia da ‘instrução contra os hábitos da taberna’), vindo depois a dedicar-se ao jornalismo e a dirigir ‘A Voz da Justiça’. Após o serviço militar, foi colocado como funcionário administrativo na Escola Bernardino Machado, e mais tarde, quando instado a abandonar as funções jornalísticas e recusou, acabou por perder o vínculo à função pública. Defensor da liberdade, igualdade e fraternidade, acabou por ser preso em 1933 e deportado para Angra do Heroísmo, em 1937 foi-lhe confiscado a ‘Voz da Justiça’ e em 1938 volta novamente a ser detido pela PIDE.

         Por todo este percurso e pela sua dedicação à SIT até morrer, a homenagem contou com casa completamente cheia, figurando entre os presentes, o delegado regional da Cultura Pedro Pita, que classificou José da Silva Ribeiro como ‘um homem capaz de conjugar os aspectos históricos da cultura com os aspectos vivos, mestre de teatro, que ensinou às pessoas o gosto pelo teatro, mesmo dos autores mais difíceis’. Daí que seja considerado como ‘uma referência em Tavarede, Figueira e a nível nacional’, sustentou Pedro Pita, frisando que a sua presença significava a ‘afirmação desse reconhecimento’ pelo Ministério da Cultura.



sexta-feira, 15 de maio de 2015

A Terra de meus avós - 6

         É agora ocasião para falar noutra espécie de “ruídos”, bastante mais agradáveis ao ouvido do que o dos carros de bois e que, de instante a instante, se faziam ouvir por toda a aldeia. Tavarede, por aqueles tempos, tinha uma vida difícil, aliás, a vida em Tavarede sempre foi difícil, mas, sem dúvida, muito mais alegre do que agora. Talvez, sabe-se lá, essa alegria fosse provocada para esquecer as dificuldades quotidianas, mas o que era verdade é que se cantava muito, e bem, na minha pequena aldeia.

         As costureiras, e havia bastantes em Tavarede, não paravam de cantar enquanto pedalavam nas suas máquinas, fazendo correr velozmente a agulha sobre a fazenda; as donas de casa, enquanto varriam, limpavam ou preparavam o jantar e a ceia familiar; nos quintais e hortas vizinhas, amanhando as suas hortaliças e novidades ou cuidando das suas flores, sempre se cantava. Mas era, sobretudo, no ribeiro de Tavarede, perto da Igreja, que mais se cantava, enquanto lavavam as suas roupas nas pedras bem lisas pelo continuado uso.

         Eram, normalmente, cantigas do teatro em que, todas ou quase todas, tinham participado ou participavam, pois raras eram as mulheres da terra do limonete que, tal como os homens, não haviam participado no teatro.

         Não vou relembrar nomes das cantadeiras. Tenho, no entanto, bem presente uma cena que se repetia frequentemente nas manhãs de domingo. Quase em frente à minha casa, moravam meus tios Helena e José Medina. Ela havia sido uma das principais amadoras do nosso teatro, desempenhando a protagonista em muitas operetas levadas à cena. Ele foi um excelente amador musical, como executante, compositor e regente e era o ensaiador dos coros do teatro. Mais adiante recordarei mais alguma coisa de meu tio José. Pois naquelas manhãs, frente à porta da rua, aberta, sentava-se ele, com a estante adiante, e da sua flauta arrancava as mais bonitas canções. Junto à janela, enquanto que mecanicamente costurava, a tia Helena fazia ouvir a sua linda voz nas canções que ela tão bem cantava, acompanhada pelo marido. Discretamente, eram muitos os que, verdadeiramente encantados, paravam um pouco para escutarem e apreciarem.

* * *

         Já que falei nos cabreiros e na venda de leite, entendo oportuno dar uma volta pela aldeia para recordar as actividades desenvolvidas. Tavarede era uma terra essencialmente agrícola mas, naturalmente como todas as aldeias, tinha outras actividades. Aqui havia bem poucas.

         Estabelecimentos comerciais, mercearias e vinhos, haviam quatro. No Largo do Paço era a mercearia do sr. Jordão. Da parte da frente ficava o balcão e as prateleiras com os géneros e por trás ficava a taberna. Desta, e por uma porta do lado poente, subia-se até ao quintal, que está num plano bastante superior à rua. Era ali que jogavam à malha.

         Junto à casa existia um depósito em cimento que estava coberto por um estrado de madeira. Por aquela ocasião, havia sido organizado o agrupamento musical “Lúcia-Lima-Jazz”. Então a rapaziada, sempre imaginativa, arranjava umas imitações dos instrumentos, em cana, e fazíamos as nossas exibições musicais em cima daquele estrado, voltados para o largo. O vocalista era o Zé Marreta. Ali passávamos grandes bocados em ensaios e exibições, e a assistência por vezes aplaudia as nossas imitações musicais.

         A meio da rua Direita ficava o estabelecimento de Emilinha Cordeiro, que havia herdado de seu pai, Francisco Cordeiro. Do lado esquerdo da loja, e no patamar da escada que servia o primeiro andar, estava a cabine do telefone público. Era daqueles aparelhos em que se dava à manivela para chamar a telefonista. Entre os vários artigos, a Emilinha vendia farinha de alfarroba para alimentação do gado. Nós estávamos por ali muitas vezes e, quando o telefone tocava e era preciso ir chamar alguém, nós lá íamos em correria. De regresso já sabíamos. A Emilinha deixava-nos ir à tulha onde estava aquela farinha e escolhermos os bocadinhos maiores que, para nós, eram uma gulodice.

         A seguir à mercearia havia longa loja que estava dividida e que tinha uma passagem para o quintal. Do lado esquerdo alinhavam-se as pipas com o vinho, tinto e branco, para venda ao copo ou à medida. Do lado direito, e entre a mercearia e a cozinha, onde se preparavam os petiscos para a clientela, ficava a sala de jogo de cartas. Tinha uma mesa comprida e bancos corridos. Recordo-me muito bem de ali ver disputar acesas partidas. Normalmente jogavam o “garujo”, com a participação de seis jogadores. Quando eram quatro, uma das variantes do jogo, chamava-se “liques”; de oito, “ganipo” e de dez “zangarelho”. Dentro de cada equipa havia um mandante, a quem os outros, da forma mais discreta possível, passavam sinais do jogo que tinham. Ele, desta forma, sabia o jogo que a sua equipa tinha e mandava jogar as cartas que entendia. Eram jogos muito manhosos. Quando viam que tinham bom jogo, havia cantiga. Eram três cartas a cada um por jogo, ganhando, portanto, a equipa que fizesse duas vasas e marcava um risco (3 pontos). As cantigas eram de seis, nove e mais, algumas vezes para acabar a moca. O adversário podia desistir, só perdia um risco, aceitar ou cantar para mais. Já se sabe, duas partidas ganhas era pedida bebida paga pela equipa perdedora.         Havia vários jogadores que se auto-intitulavam “mestres”. Dos que conheci, talvez aquele que tinha mais fama fosse o Aniceto Mocho, um velho e carismático trabalhador rural.

No quintal do estabelecimento, havia no meio um engraçado pavilhão, coberto de verdura, com uma mesa e bancos, onde, especialmente nos dias de festa, se faziam grandes caldeiradas. Ao lado desse pavilhão, e a todo o comprimento até ao armazém, junto do ribeiro, estavam os tabuleiros para o tradicional jogo da malha.

         Um pouco mais abaixo ficava a “Loja do Povo”, estabelecimento de António Pedro Carvalho, alcunhado de “Lameira”, nome da terra da sua naturalidade. Seria o melhor montado, pois além de mercearias, tinha uma grande diversidade de outros produtos, sempre necessários na aldeia. Do lado poente, em loja dividida, ficava a taberna, com umas escadas que davam acesso para o quintal, onde, como nos outros, se jogava, petiscava e bebia.

         Junto ao rio Pereira, indo pelo caminho que parte do largo da Igreja para dar serventia ao quintal do Ferreira, ficava a loja de António Gato. De todas era a mais modesta e dedicava-se mais ao negócio de vinhos e petiscos, especialmente quando havia festas da Igreja, ocasiões em que tinha sempre farta concorrência de freguesia. Atravessava-se o pequeno ribeiro por uma tosca e velha ponte de madeira. Em frente à casa, e na outra margem, existiam umas enormes figueiras. Era ali que a rapaziada ia fazer pontaria com as suas fisgas. Tinham habitáculo naquelas grandes árvores as pequenitas “carriças”. Nós bem apontávamos mas os passaritos eram tão pequenos e irrequietos que nunca acertávamos.

         Mudando de ramo, no Largo do Forno estava situada a padaria de Eloi Domingues. Diariamente, e altas horas da noite, era o enorme forno aquecido a lenha. A massa, preparada à noite, estava leveda e pronta para cozer, bem cedo. Só havia dois tipos de pão: as tradicionais carcaças e o pão de segunda, os chamados casqueiros. Ainda o dia não havia rompido e já estava ao balcão a senhora Pureza a atender a clientela que vinha em busca do pão fresquinho. Com uns carros de verga com rodas de bicicleta, forrados com pano branco, impecavelmente limpo, iam o Olívio Domingues e um colega, fazer venda domiciliária, à Figueira e a Buarcos.

         Na véspera dos dias de festa, Natal, Ano Bom e Páscoa, entre outros, muitas eram as mulheres que, em enormes pingadeiras, levavam ou galo ou coelho, com batatinhas, para assar no forno, que se mantinha quente muito tempo para além da cozedura do pão. Era sempre com a melhor vontade que acediam ao pedido que lhes faziam e os pitéus, assados desta maneira, tinham sempre um paladar extraordinário. No Inverno, também era frequente aparecerem as pingadeiras para assar as peras francesas que o vento deitava ao cheio e que, de outra forma, se não podiam comer, tão rijas eram.

         No caminho da fonte, antes da entrada para o Serrado, estava localizada a forja de Assalino Cardoso. De manhã à noite, lá se ouvia o martelar vigoroso no ferro aquecido ao rubro na forja bem ateada pelo enorme fole que ele manipulava com a mão esquerda, enquanto que com a direita, aquecia o ferro, fixo a uma enorme tenaz. Todos os utensílios agrícolas ali fazia ou reparava convenientemente.

          Havia mais duas forjas na nossa terra. No Terreiro, era a de Manuel Lindote e no Largo do Forno, a de Isolino Proa. Mas como ambos trabalhavam, como ferreiros, nas oficinas do caminho de ferro,  só à noite e aos domingos estas forjas laboravam.

         Ao princípio da rua Direita, no Largo do Paço, defronte à mercearia, ficava a barbearia dos irmãos Joaquim e Manuel Medina. Era profissão herdada do pai, embora este tivesse como profissão principal a de serralheiro, que exercia nas oficinas da Figueira. O Joaquim, conhecido pela alcunha do “Jaringa”, era muito brincalhão,
fazendo mil e uma partidas aos clientes enquanto os servia. O Manuel, mais tarde, acabou por emigrar para os Estados Unidos da América, onde constituiu família. Voltou aqui há uns anos, com um filho e com a intenção de regresso definitivo mas, especialmente seu filho, não se adaptaram e optaram por regressar à América. Entretanto, também o Joaquim mudou o seu estabelecimento para a rua Direita, junto ao Largo do Forno, onde trabalhou até ao seu falecimento, continuando o negócio seu filho.

         Também numa pequena loja em frente à mercearia de Emilinha Cordeiro, existia uma outra barbearia, mas que só funcionava aos domingos, pois o seu proprietário, Faím, tinha estabelecimento na Figueira, onde trabalhava durante a semana.

         Meu pai havia aprendido o ofício de sapateiro, na Figueira, antes de cumprir o serviço militar. Empregou-se, depois, nas oficinas do caminho de ferro mas, por meados dos anos quarenta, resolveu-se a abrir uma sapataria em Tavarede, para obra nova e consertos. Para pessoal, convidou seu primo João Medina, oficial de sapateiro na Figueira, José Soares, que seguia a profissão de seu pai na Vila Robim, e Eduardo Mota, para aprendiz. Abriu o estabelecimento na loja da casa onde viveram meus avós e que, por partilhas depois da morte de minha avó, calhara a minha tia Violinda. A velha adega transformou-se em oficina, embora não tenha ali permanecido muito tempo, pois mudou-se para o réz-do-chão da casa da senhora Guia, quase defronte.

         A sapataria passou a ser um dos pontos de encontro da aldeia, principalmente para alguns mais idosos. Entre estes, recordo o encontro diário de dois dos velhos mais castiços e simpáticos, mas, igualmente, dos mais “casmurros”, que conheci: meu avô António e o velho João da Simôa. Ambos tinham sido fundadores do Grupo Musical. Meu avô, embora também músico, destacou-se no teatro, onde, segundo notas encontradas, foi um bom amador. João Jorge da Silva, o João da Simôa, foi um excelente músico, tendo sido um dos iniciadores e regente da tuna daquela colectividade e da orquestra que abrilhantava os espectáculos teatrais, além de ministrar o ensino da música, durante muitos anos.

         Logicamente, tinham excelentes recordações dos tempos passados. Ainda não eram decorridos muitos anos sobre o fim do período áureo do Grupo Musical e, quando estavam bem dispostos, contavam, com verdadeira saudade, muitas histórias vividas naquela colectividade, à qual haviam dado tanto da sua vida. Outras vezes, as relações eram momentaneamente azedadas. É que, além de teimosos, ambos eram uns refinadíssimos mentirosos. Meu avô, então, usava e abusava dessa “virtude”. Em qualquer outro local hei-de recordar algumas das suas habituais “petas”. Contavam e recontavam essas facécias vezes sem conta, mas aí daquele que os desmentisse ou, sequer, se risse de troça! Enfim, não era por causa dessas “virtudes” que deixavam de ser estimados e considerados.

         O negócio de sapataria não era mau de todo. Rendia pouco, é verdade, mas sempre ajudava ao magro orçamento caseiro. Um dia, António Lameira também resolveu abrir uma nova sapataria e acabou por convidar meu pai para tomar conta dela, mediante uma renda. Durou pouco tempo, pois entretanto havíamos mudado de residência para o Terreiro e no quintal meu pai fez uma pequena dependência e ali instalou a sua loja, poupando o dinheiro da renda.

         Havia outros sapateiros que trabalhavam em suas casas, tendo muita clientela. Um deles havia que se distinguiu pela perfeição dos seus trabalhos. Foi o Fernando Santos, por alcunha o Fernando Xanato. Nunca foi um grande amador teatral, mas a sua boa vontade e dedicação foram inexcedíveis, no que resultava haver sempre um pequeno papel para ele, ainda que simples figurante. O seu rendimento familiar dependia exclusivamente do seu trabalho, pelo que trabalhava imenso. Muitas vezes, para acabar um conserto, chegava atrasado ao ensaio. Ao princípio perguntavam-lhe o motivo do atraso, e lá vinha a resposta “estive a acabar um xanato…”. Foi assim que pegou a alcunha, mas era uma excelente pessoa no seu trato simples.

         Recordo, além dele, mais dois sapateiros em Tavarede. Na rua Direita, mais ou menos ao meio, José Maria Severino dos Reis, mais conhecido por José Maria Terreiro. Casado com Felismina Ribeiro, teve três filhos, todos anormais. Os dois rapazes tornaram-se duas figuras características da terra, deixando muita pena quando morreram: o José e o António Reis, conhecidos pela alcunha de “Parrecos”. Nunca fizeram mal a ninguém e, especialmente o José, até eram muito prestáveis, fazendo os pequenos recados que lhes pediam. E José Vigário, no Terreiro, era o outro sapateiro que exercia a actividade em Tavarede.

         Além das muitas costureiras que haviam em Tavarede, também aqui tinha o seu “atelier” de alfaiataria mestre Diamantino Rocha. Primeiramente, esteve instalado na loja de uma casa na rua Direita, vizinha daquela onde eu morava. Tinha umas quatro a cinco costureiras e aprendizas. Depois mudou para o largo do Terreiro. Mestre Diamantino Alfaiate, como era mais conhecido, tocava concertina e era ele que abrilhantava todas as festas populares ou romarias aqui levadas a efeito. No largo do Terreiro, por ocasião dos santos populares, não faltavam as festas, com a tradicional fogueira. A orquestra era constituida por residentes naquele largo: a concertina de Diamantino Alfaiate, a viola e o pífaro, de Manuel Lindote e o bandolim de meu Pai, Pedro. Intitulavam-se como “Orquestra da Malveira”!  

Claro que muitos tavaredenses, que exerciam as suas profissões na cidade, também trabalhavam em suas casas. Pedreiros, carpinteiros, marceneiros, electricistas e outros, não desperdiçavam os seus tempos vagos, além de ainda arranjarem tempo para amanharem o seu quintal e uma ou outra leira de terra. Parece, por exemplo, que ainda estou a ver o canteiro António Marques Lontro, na loja da sua casa, também na rua Direita, a abrir as letras nas placas de mármore para o cemitério… Nesta loja, também funcionava, naquele tempo, a Sociedade Protectora de Gado Suíno, vulgarmente conhecida por “Compromisso dos Porcos”.

         Seria imperdoável não relembrar as figuras da Ti Marquitas do Pires, Clementina Simôa e Adelaide Pires, as três principais “comerciantes” de tremoços, freiras e pevides, que tinham os seus “estabelecimentos” à porta de suas residências, respectivamente no Terreiro, no Paço e rua Direita, frente ao Largo do Forno.

         Uma última recordação sobre este tema. Quase todos os tavaredenses amanhavam um bocadinho de terra e também quase todos fabricavam o seu vinhito. É que, ladeando as suas terras de cultura, plantavam videiras, fazendo corrimões. A produção era pequena e o vinho de fraca qualidade, mas era com gosto e carinho que o faziam. Havia, no entanto, uma meia dúzia que produziam vinho a sério. Com melhor conhecimento, recordo meu avô. Na Matiôa tinha ele uma vinha muito boa, pelo terreno e pela localização. Era cuidada como devia ser. Não lhe faltava com os tratamentos e só era vindimada quando a uva estava bem madura. A produção dessa vinha era tratada em separado, pois que igualmente tinha vinha e corrimões na fazenda da Chã, na Sinceira.

         Aquele vinho da Matiôa chegou a ter muita fama. Na altura própria, pelo S. Martinho, pregava uma enorme ramada de loureiro na porta da sua loja, que era transformada em adega, onde vendia o vinho a retalho e ao copo. A clientela, mais da Figueira e Buarcos, normalmente não faltava e enquanto durasse o vinho era sempre casa cheia. Muitos clientes também preferiam a deliciosa e refrescante água-pé, que ele fabricava com as uvas dos corrimões, que misturava à repisa do vinho e a que juntava uns tantos cântaros de água pura. Quando abria o pipo da água-pé, recordo que a dava a provar aos amigos por um coco, onde ela espirrava fresquinha.

         Outros haviam que procediam de igual modo e, por ocasião do vinho novo, era a nossa terra muito frequentada por grandes grupos que, acompanhando-se dos mais diversos petiscos, aqui faziam grandes patuscadas.

         E acabo esta parte com uma breve recordação. O ti César Cascão tinha em sua casa, frente ao largo do Forno, um alambique onde queimava o bagaço das uvas para fabricar aguardente. A rapaziada gostava de ir ver, além que, quando era tempo deste trabalho, fazia frio e sabia bem estar ali ao quentinho da caldeira do alambique. A aguardente caía em fino fio para uma garrafa e estava sempre a ser pesada, para ver a graduação. A partir de determinado grau deixava de ser aproveitada. De vez em quando íamos ao caminho do Peso, para roubar figos numas grandes figueiras de José Serra, e que levávamos para o alambique. Sabia muito bem comer os figos e beber uma golada daquela espécie de aguardente, praticamente água quente, que nos dava. Mesmo fraquíssima,  não se podia abusar.


A UM CERTO VINHO DE TAVAREDE

         “Entre os mimos que este abençoado torrão de Tavarede produz e manda ao mercado da Figueira, há que especializar um vinhinho palhete a quem os apreciadores rendem as suas homenagens.
         Cardoso Martha, figueirense ilustrado que vive na capital há já longos anos, é um velho amigo e frequentador da terra do limonete e conhecedor do seu precioso nectar.
         Sabendo isso, um seu amigo tavaredense, presenteou-o há tempos com um piposito desse palhete, que o inspirou para o seguinte soneto, a que deu o título “A um certo vinho de Tavarede”:

Encho o meu copo, à luz do claro dia
de um néctar precioso - o vinho amigo,
puro, sem confecções, como o bebia
o bíblico Noé, no tempo antigo.

Depois, em contra-luz, me delicia
sua cor de rubi; e enquanto sigo
na toalha o reflexo, a fantasia
me diz mais que diria quanto eu digo...

Das cepas do torrão de Tavarede,
ó vinho, sê benvindo à minha sêde,
tu, que de muitos és exemplo e espelho

Gole a gole, dou co’a língua um estalinho
e razão a quem disse que o bom vinho
tráz alegria ao moço e sangue ao velho. (Notícias da Figueira)