sexta-feira, 25 de julho de 2014

As Operetas em Tavarede - 27

         No romance, tal como no teatro, e algumas vezes na vida real, dão-se as situações mais inverosímeis. Ao ouvir a história, o Major Samora não se contém.

         Major Samora – “ Justo Deus! Pois eu tinha uma filha? Sr. José Urbano, o militar, o aventureiro, o miserável que acusou, sou eu; não ficou atravessado por uma bala no campo da batalha, mas por muito tempo o conservou num leito de doença, e quando se ergueu, foi seu primeiro pensamento a mulher que verdadeiramente amara. Disseram-lhe que tinha morrido, mas nunca ele soube que lhe ficara uma filha”...

         E pronto, acabou-se a história. Já não havia qualquer motivo para que José Urbano continuasse a recusar a mão de sua sobrinha ao Alferes Rialva. Graças a Roberta fez-se justiça, ou melhor, graças a Roberta houve “Justiça de Sua Majestade”.

            Roberta         
    Digam agora os pequenos
    Que não fui eu que os uni!
    Ao menos
    Sou a primeira daqui
   A dar-lhe os meus parabéns!

              Todos                             
    Parabéns, parabéns e parabéns!

            D. Joana   
   Tens razão,
   Roberta, tens,
   Que sem ti
   Não veríamos jamais
   Esta união!

            Rialva   
   Todos vós que nos saudais
   A convicção
   Podeis levar
   De que em nosso coração
   Tendes eterno lugar!

            José Urbano       
    E o velho... fique sozinho,
     Trate de azeite e de vinho
      Até que... Deus tenha dó...

            Todos    
    O patrão não fica só...

            José Urbano  
      Fui injusto, mil perdões.

            Todos      
     Tem criados
      Dedicados!

            Roberta  
     Que é família dos patrões.

            José Urbano 
     Fui injusto, mil perdões!

            Todos   
     Os criados
     Dedicados
     São família dos patrões.



F I M



(A seguir: Uma chávena de chá... de limonete)

O Associativismo na Terra do Limonete - 86

         E no ano de 1963, a Sociedade de Instrução participou, no Casino da Figueira e a convite da Biblioteca Pública da Figueira, nas primeiras comemorações do Dia Mundial do Teatro. Esforço colossal, ao mesmo tempo ingrato, o de Mestre José Ribeiro, ao encenar Teatro Vicentino ao correr a cortina do Peninsular para apresentar o seu grupo de amadores, dizendo e mimicando os versos do criador do Teatro Português, do Género Satírico e Causticante, por vezes Sentimental e Poético de Mestre Gil Vicente. Esforço colossal, porque dar vida a qualquer das obras Vicentinas, conseguir de amadores – embora de grande categoria – o ritmo, a dicção, a sobriedade mímica, a simplicidade ingénua – que é dificuldade ingénita – a cor, a graça e o espírito essenciais nesta classe de espectáculos, é tarefa árdua e ousada, cometimento não conseguido por muitos profissionais de teatro, não só na visão geral, como na interpretação dos textos, difíceis de destrinçar, pois que, de peça para peça, surgem novos enigmas, géneros diferentes, momentos de puro lirismo, de audaciosa fantasia, um expressões do mais puro realismo, que obrigam o realizador a um estado especial para cada peça e às vezes para cada cena. 
         Ingrato, dissemos, porque infelizmente, os grupos dramáticos são pobres, não têm qualquer auxílio e as receitas das bilheteiras raras vezes dão para satisfazer os pesados encargos da representação. Ora, para a apresentação destes espectáculos, as despesas são avultadas e... Gil Vicente não consegue afluência à bilheteira, porque, só os raros que sabem ver Gil Vicente, vão ver Gil Vicente.
         José Ribeiro é talvez o último abencerragem para cometimentos heróicos no tablado. A sua direcção e o seu saber, deram-nos um admirável espectáculo, triunfaram com mérito absoluto no teatrinho do Peninsular. Parabéns e um grande abraço.
         Não podemos nem nos atreveríamos a apreciar as obras do Grande Mestre agora representadas. Sobre Gil Vicente, os maiores investigadores e mais notáveis literatos, têm escrito milhares de páginas. Nós que andamos sempre de braço dado com a saudade, recordamos as interpretações dos nossos mais notáveis artistas. Quem viu Augusto Rosa, no “Diabo da barca do Inferno”, jamais pode esquecer, a satânica figura, estilizada a seu modo, a musicalidade cantarolante da sua voz, o jeito cénico, ondulante e felínico que dava a impressão de uma figura irreal, as pausas, ou os gestos! Notável! Grandioso, simplesmente!
         No Pranto de Maria Parda, Adelina Abranches – a Grande Adelina – encarnou a simbólica figura, com tanta inspiração e tanta verdade, deu um tão variado claro escuro ao fatigante trabalho, que, caso raro em espectáculos desta natureza, todo o público da plateia aos camarotes se pôs de pé para lhe tributar uma das mais expontâneas e formidáveis ovações, a que assistimos no nossa longa vida teatreira.
         Ainda há poucos anos, o distinto actor Assis Pacheco, no Auto do Velho da Horta, obteve um estrondoso e justificado sucesso. Dicção, mímica e composição de figura, tudo sabiamente detalhado e estudado, artisticamente realizado!
         Muito se dedicou a Gil Vicente, um grande artista há tempos afastado da cena, Joaquim de Oliveira, que publicou, e algumas vezes nos deixou ler, as suas valiosissimas encenações. E mais não diremos, pois que, se nos alongássemos, teriamos de encher tal número de linguados, que não caberiam no nosso jornal.

         Os distintos amadores de Tavarede, que há dez anos tanto temos apreciado, elevaram a espinhosa incumbência de José Ribeiro, a um verdadeiro caso no Teatro Português, no à vontade do desempenho, no diapasão das vozes e no ritmo dos movimentos. Velhos e novatos, mestres e discípulos, todos bem, homogéneos, sem um desfalecimento ou uma nota discordante.
         Contudo, permito-me destacar a – Amadora Grande Actriz – Violinda Medina, no seu admirável trabalho, da Maria Parda, difícil de aguentar em todo o extensíssimo monólogo, sem caír no grotesto, mas sem desfalecimentos, sem diminuir o interesse, medindo as pausas e os movimentos, com a Arte e o Saber de uma verdadeira profissional. Simplesmente notável!
         No Velho da Horta, João Medina Junior atingiu um nível superior no protagonista, secundado magistralmente por Maria Tereza de Oliveira, que foi uma figura Vicentina, perfeita nas atitudes, na dicção e nos gestos. Os outros, todos, em uma bela afinação de conjunto.
         Guarda-roupa rico de Anahory. Cenários adequados, sendo por sua sobriedade, digno de relevo, o da Maria Parda. A todos, os nossos parabéns!

         Igualmente nos despertou a atenção  uma notícia, que um jornal figueirense publicou, a qual havia sido transcrita do jornal Litoral, de Aveiro. Mal pensávamos nós que o Dia Mundial de Teatro, de 63, nos iria proporcionar a surpresa que nos proporcionou naquela noite invernosa do passado dia 27 de Março, na sala de espectáculos do Grande Casino Peninsular, na Figueira da Foz.
         Valerá a pena deslocarmo-nos de noite e a tão longe, - monologávamos nós, enquanto a chuva inclemente batia raivosa nos vidros mansos do carro veloz -, valerá a pena tudo isto para irmos ver um Mestre Gil representado por um grupo de amadores duma aldeia que nem em todos os mapas aparece?
         É certo que se sabe, nós sabemos, que dos bastidores sombrios do amadorismo, subiram para a ribalta nomes como Chaby Pinheiro, de ontem, e de Gina Santos, de hoje. É certo que se sabe, nos sabemos, que o grande Taborda foi tipógrafo, António Pedro, aprendiz de pedreiro, e Adelaide Douradinha, para não citarmos mais, mulher a dias.
         Pois apesar de tudo isto ser sabido, de tudo isto sabermos, nós, desconfiados, ainda nos perguntávamos se de Tavarede nos podia vir um Gil Vicente, como se fosse possível que melindrosa peça de porcelana nos chegasse às mãos, arrancada do fundo de velha arca de pinho carunchento, após longa viagem de muitos baldões e sem uma arranhadura.
         Não vamos esboçar sequer uma ligeira apreciação crítica do espectáculo que o grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense nos deu, sobre três textos vicentinos. Não ousamos esboçar a crítica, mas não resistimos a registar o exemplo. Em Tavarede, humilde lugarejo escondido à sombra da resplandecente Figueira, arde em olímpica chama um acendrado culto à divina arte de Talma. Famílias, de geração em geração, entregam-se devotadamente à cultura teatral. À frente de toda esta pleiade de artistas, (aquela Maria Parda há-de ficar-nos para sempre guardada na galeria das melhores interpretações por nós vistas, conquanto o Teatro não seja, para nós, apenas uma arte de bem interpretar), se encontra um nome emérito no panorama do teatro amador em Portugal. Um homem, José Ribeiro, que nem a idade, nem o trabalho, nem o destreino impediram de aprender o inglês só para saborear Shakespeare na própria língua.

         E regressamos ao primeiro de Maio e ao rancho dos potes floridos, revividos pelo Grupo. A manter uma velha tradição, brindou a nossa Terra com as suas magníficas exibições folclóricas, de cunho castiçamente regionalista, na passado dia 1 de Maio, o simpático Rancho 1º. de Maio, da ridente povoação de Tavarede.
         O excelente agrupamento folclórico constituido por gentis rapariga e garbosos rapazes, com os trajos característicos da formosa terra do limonete, percorreu em impecável marcha, algumas das principais artérias da cidade, oferecendo à nossa gente, danças e cantares de muito apreço, pelo que, mais uma vez, é digna de louvores aquela mocidade que alegremente mantém tão bela tradição de sabor popular.

         A propósito, vamos transcrever a notícia da participação, no ano anterior, do tavaredense António Medina Júnior. Botem-lhe as contas: em 21 de Abril, tombam em riba das minhas lombeiras, nada menos de 65 “primaveras” de “fundação”; e em 2 de Maio – 53 anos de trabalho permanente!
         Datas inesquecíveis. Contas certíssimas... O que, traduzido, quer dizer que bem cedo comecei a esgaravatar a vida, na sempre lembrada Imprensa Lusitana, tipografia própria da saudosa “Gazeta da Figueira”, que foi abençoado alfobre de artífices gráficos e magnífica escola de jornalistas, guiados – todos – pela vigorosa inteligência e pela sábia “bússola” de um Grande Mestre e de um extraordinário carácter que se chamava Augusto Veiga – cuja memória recordo sempre com o máximo respeito, profunda saudade e inesquecível gratidão, pelo muitíssimo que lhe fiquei devendo na minha formação moral e profissional, que de tão bom proveito me tem servido pela vida fora.
         Em Sintra desde 1 de Junho de 1927 (há, portanto, 36 anos – se a matemática não é uma batata...-, e dado que os santos de ao pé da porta não fazem milagres..., para aqui me chamaram e para aqui vim; aqui soube dar conta do recado; aqui montei a minha vida; aqui criei e eduquei os meus dois filhos (tavaredenses, como eu e como a mãe); aqui nasceram os meus netinhos; aqui adquiri relações e amizades e – finalmente – aqui me estou desgastando e envelhecendo, agarrado com unhas e dentes ao “pau do leme” da honrada “barcaça” que soube arquitectar e construir, através de muitos sacrifícios, de muita persistência, de muita coragem e de muita fé, a qual continua a sulcar, com a maior dignidade, os “mares”, nem sempre isentos de procelas, da incógnita época em que estamos, de duras e enervantes incertezas, em que os homens inconsequentes e maus persistem em lançar o abalado mundo.
         É certo que a “lancha” do meu ganha-pão continua na sua faina diária. Pois continua. Felizmente. Mas as responsabilidades, incluindo nesta a da respectiva e numerosa “tripulação, apresentam-se cada vez maiores, os problemas surgem cada vez mais dificeis e o “homem do leme” vai quebrando com coragem e energias – sem poder dispor de si, sem ter tempo para estar doente, sem ter direito a férias, sem ter ócios para deglutir leituras salutares e suculentas, nem avesar “dispensas” para, sequer ao menos, se dar ao prazer de ir, uma vez por outra, matar saudades ao adorável cantinho onde nasceu e por onde andam, dispersos, os momentos mais felizes e despreocupados da sua mocidade radiante, cantinho esse – aliás sempre presente no seu impenitente coração bairrista – de onde um dia se viu obrigado a afastar-se pelo imperioso da vida, mas onde deixou e mantém, cada vez mais vinculadamente, o coração e a própria alma...
         Que analogia tem este piegas e insulso “paleio” saloio com o Rancho 1º de Maio de Tavarede? – ajuizarão os benévolos e pacientes ledores da minha despretenciosa, bamba e lassa prosa...
         ... que só à reconhecida generosidade e velha amizade dos manos Matos deve o grato privilégio de ser transformada em letra de forma, a ocupar precioso espaço nas colunas do seu “Figueirense”.
         Pois eu teimo em que esta descolorida Sinfonia de abertura – revestida da maior sinceridade -, se tornava indispensável aos fins em vista, pois traduz verdade e constitui oportuna justificação, devida a um amável conterrâneo meu que, botando entusiasmada prosa neste jornal, acerca do afamdo Rancho 1º de Maio de Tavarede, se lembrou de evocar o meu nome, envolvendo-o em carinhosa e desvanecedora prova de amistosa consideração e estima, que muito me sensibilizou, afirmando, em síntese, quanto aos músicos que hão-de acompanhar a alegre e garbosa embaixada da mocidade tavaredense, na madrugada em que desponta o próximo Maio, se contava com a presença do sempre jovem violinista (que barbaridade!...) Medina Junior, que mais uma vez se deslocaria da sua adorada Sintra para reforçar a tuna do Grupo Musical e de Instrução, desta forma indicando aos mais novos o caminho do dever, a favor da terra que o viu nascer e à qual muito quer.
         Ora, amigos, a coisa não é assim tão fácil como muitos julgam, sobretudo pelos contrariantes problemas que acima foco.
         É certo que, por esta via, muita vezes verberei – e combati – a inconcebível e acomodatícia transigência da boa, laboriosa e ordeira gente da minha terra, na medida em que ela, vencida não sei porque motivos ou razões, doentiamente se conformou, durante uns poucos de anos, com a condenável, inconcebível – e criminosa – má vontade e derrotismo de uns tantos “coveiros” das boas ideias que atentaram contra a vida de um tão inocente movimento folclórico, cultural e cívico, que outra missão não tinha que não fosse a de proclamar, entre flores e cantares alegres, as tradições de uma aldeia que continua a dar cartas, vistas as coisas pelas janelas amplas dos persistentes e salutares princípios da Devoção, da Ordem, da Disciplina...
         ... e pelos sagrados direitos que o seu bom povo tem direito em “viver” à sua maneira, amando e sentindo, em plenas cavernas do peito, mais íntima e acrisoladamente, aquela vida que sabe que lhe é precisa e lhe faz bem, precisamente porque, além do mais, consubstancia culto pela tradição e traduz fortaleza espiritual; que aproxima os homens e revigora as almas...
         ... e que impõe, prestigia e dignifica os meios.
         Não pelos meus escritos, nem pelos meus estímulos, mas pelo seu louvável “querer”, o certo é que a rapaziada da minha terra, cuja reacção mais corajosa se verificou no Grupo Musical e de Instrução – instituição de recreio e cultura popular que me orgulho de ter ajudado a fundar, em 1911, ao lado de meus saudosos e queridos Pai e Tio José Medina -, caprichou em acordar da pesada letargia, o sempre desejado, aplaudido, afamado e glorioso Rancho das Cantarinhas floridas da mocidade radiante da “pátria do limonete”.
         Deu-se este fenómeno no passado ano. Eu havia prometido, então, que iria de abalada até Tavarede – se dependesse da minha presença o “renascimento” de tão simpático, humano e tradicional movimento local. E que, se fosse necessário, formaria com a malta da música, e acompanharia a alegre e bizarra embaixada, procurando arrancar ao meu inesusado e roufenho violino, se não pelos dedos das mãos, pelos dedos da alma, as notas da linda Marcha do rancho 1º de Maio, que tem o condão de inundar de alegria e de recordações saudosas os peitos de todos aqueles que nasceram e sentem Tavarede como eu a sinto e amo...
         E lá fui cumprir a palavra dada – e desfazer a “blague”, visto que ninguém queria acreditar que tudo quanto eu havia escrito, neste capítulo, não passava de mero desabafo jornalístico...
         Ainda madrugada não era sonhada quando, após umas curtas horas mal dormidas, saltei da Figueira para Tavarede. Já no Grupo Musical havia movimento, entusiasmo, vida. Logo aí comecei a experimentar os primeiros sabores da deliciosa felicidade espiritual que me estava reservada nesse memorável dia – que não tinha igual há aproximadamente 30 anos.
         Notei – sensibilizado – que a minha presença causava satisfação e alegria nos meus conterrâneos “grupistas”, que ainda não queriam crer que eu acompanhasse o Rancho na jornada da praxe (fonte da Várzea, ruas, praças, mercado da Figueira, etc.) que - para a minha idade – representava, de facto, um grande esticão...
         Gostei do reforço, por parte de alguns “rapazes” do meu tempo, como o Manuel “Tamau”, o Zé Grilo, o meu primo João Medina, e outros, que também se dispuzeram a tomar parte na tuna.
         As lantejoulas do manto escuro da noite foram desaparecendo no céu; as flexas ignescentes do divino astro-rei começaram a inundar de luz os serros e os campos, onde o orvalho matutino fizera abrir as pétalas das flores, produzindo no espaço odorâncias embriagadores...
 ... e o Rancho, revestido daquela contagiante alegria que caracterizou sempre a mocidade, saiu para a rua...
         De violino nos queixos – espírito remoçado, tempos revividos, evocações e saudades presentes -, que me provocaram (porque não confessá-lo) uma tremenda comoção -, acompanhei a garbosa embaixada do Maio florido na sua clássica peregrinação festiva. E – coisa curiosa! – as notas da linda Marcha, que creio dever-se a uma feliz inspiração de meu irmão José, “sairam” todas, como se entre elas e os largos anos que separaram os meus dedos do violino nunca tivessem existido. O pior é que, quando cheguei ao fim da jornada, em que se calcorrearam bastantes quilómetros, quase foi necessaria uma “padiola” para me transportarem para o ponto de partida.
         Estava que nem uma passa, constituindo tal facto um primoroso “pratinho” para a minha irmã Violinda e para a minha ditadora conjugal, que me havia acompanhado de Sintra, as quais me “repassaram” de sarcasmos durante o resto do dia e o menos que me chamaram foi “velho-gaiteiro”!... “Inveja” de duas gêbas, claro – uma ainda com alguma geiteira e genica para o teatro; outra com enorme propensão para implacável carcereira da eterna jovialidade de um “marido exemplar” que persiste em não ceder à verdade de determinadas e desoladoras efemérides...
         Como o insulto é o recurso dos vencidos – vinguei-me, insultando, daquelas galhofeiras...
         ... que – ao fim e ao cabo – sentiram íntima satisfação e alegria em verem envolvido o seu “Antoninho” – já careca – em tão felizes e remoçadas andanças.
         Parar é morrer. E quem tiver pressa de morrer, que vá andando... De resto, como dos fracos não reza a história...
         ... Cumpre-me informar os rapazes e raparigas da minha terra que sinto “cócegas” em voltar de novo a Tavarede – para colaborar no tradicional e lindo Rancho do 1º de Maio.
         Desde já intimo o meu “sobrinho” Alfredo Cardoso, de Brenha, para deixar o seu violino na “Nau”, evitando-me, assim, a massada de levar daqui um dos meus...

         ... que “ensurdeceram” – enquanto que o dele sabe “falar” e “cantar”...

sexta-feira, 18 de julho de 2014

O Associativismo na Terra do Limonete - 85

         Foi mais um dia magnífico. Tavarede, mais uma vez e de forma encantadora deu lustre e trouxe a nota lírica e poética às comemorações populares de O Primeiro de Maio, outrora tão luzida e espontaneamente celebradas entre nós.
         Tavarede, mais uma vez, a das frescas várzeas e ubérrimas veigas esteve presente...
         Aguerrido grupo de raparigas – bem bonitotas algumas delas! – ostentando os potes floridos à cabeça, irrompeu às primeiras horas da manhã, pelas ruas da cidade espreguiçante, derramando nela, com a melodia dos seus descantes, a sua beleza vitoriosa e sádia, a efervescência do seu nervosismo e a sua alegria explosiva e boa.
         Nos seus lábios vermelhos, a lembrar os cravos rubros, incendiados de aromas, a inspirada lírica popular, era como o cântico azevieiro das cigarras cantadeiras no estio...
         No mercado, na Praça Nova, perante a Câmara, a Associação Naval e o Comando da PSP o bando desenvolto exibiu com muita agilidade e acerto, as espectaculares danças de roda, que a Figueira aprendeu no passado, a dançar com o restolho do vento, nos ímpetos da Inverneira...
         O Jornalista António Medina, veio das edénicas paragens de Sintra, enfileirar entre os que deram o seu concurso e a comunhão da sua juventude à festa da mocidade.
         E ei-lo, à frente da Tuna, como um romeiro da Saudade, a desprender os harpejos do seu violino – ai dele! – talvez de acordes menos enfónicos... 
E fazia-o identificado com os companheiros, contagiando-os da sua vivacidade. Fazia-o com alma, com entusiasmo, com ardor, consumido na labareda dos seus transportes, num comovido, num desesperado apelo à sua rumorosa mocidade bailariqueira, que evocou comovidamente, quando ele, mai-la a rabeca, era o grande e estrídulo festeiro destas ingénuas rapioqueiras, destas páginas flagrantes e coloridas e tão formosas da formosa Figueira desse tempo!
         Se não havia orvalho cá fora, havia-o – tenho a certeza! – no fundo dos seus olhos, conturbados pela Saudade.
         As perfumadas manhãs do Primeiro de Maio, precederam as do festivo S. João de algum dia e foram os arautos de uma quadra ingénua em que a verdura das mocidades de tantos, estreitadas no mesmo amplexo primaveril, sorria confiadamente à alegria de viver, ao amor, ao desejo, à poesia, à mocidade e ao sonho...

Em Agosto de 1962, a Sociedade de Instrução prestou nova homenagem à sua amadora  Violinda Medina e Silva. Sem exageros supérfluos podemos afirmar que a noite de sábado último ficará assinalada nos anais da história da filantrópica Sociedade de Instrução Tavaredense, como verdadeira noite de glória.
Violinda Medina e Silva sentiu à sua roda, no momento em que aquela colectividade pela sua Direcção e grupo cénico lhe prestavam a justa e merecida homenagem consagradora dos seus altos méritos artísticos, não só os aplausos vibrantes dos seus companheiros de palco, como também as palmas calorosas, entusiásticas e prolongadas do público, que enchia completamente a sala de espectáculos e que em manifestação expontânea quis vir associar-se a tão simpática e justa cerimónia, dando-lhe brilho e realce deslumbrantes. 
Desde o brilhantismo da representação da célebre peça do ilustre dramaturgo Vasco Mendonça Alves, "A Conspiradora", em que Violinda Medina tem actuação magnífica, ao acto de Homenagem durante o qual desfilaram as personagens que a distinta amadora — que, na autorizada palavra de mestre José Ribeiro, já nasceu artista — interpretou no decorrer da sua notável carreira de mais de 40 anos, e que culminou com a oferta de diversas e valiosas prendas vindas de Lisboa, Tomar, Coimbra, Figueira e da sua terra natal, e de flores, muitas flores, que juncaram o palco, aos discursos proferidos pelo presidente da Direcção e do ilustre orientador do grupo dramático, sr. José da Silva Ribeiro, tudo esteve à altura da consagração da talentosa artista, que o público admira e acarinha.
Ao surgir no palco a nobre figura da "Marquesa de Souto dos Arcos", a numerosa assistência, entre a qual viamos distintas senhoras da melhor sociedade figueirense, dispensou-lhe saudação vibrante, entusiástica, inesquecível.
Nos finais dos 4 actos e no decurso das principais cenas, algumas de autêntico "suspense" em que a distinta fidalga, contracenando com o "Conde de Riba d'Alva", que João de Oliveira Júnior encarnou com absoluta propriedade, dá magistrais lições de patriotismo, amor da Pátria, tolerância e generosidade, o público tributou-lhe e aos restantes amadores justos e inequívocos aplausos.
Findo o Acto de Homenagem, Manuel Gaspar Lontro, secretário da Direcção, entregou a Violinda Medina uma artística e bem expressiva mensagem, em pergaminho, de saudação e reconhecimento pelos inapreciáveis serviços prestados pela distinta amadora à SIT, a qual era subscrita pelos elementos do palco e da Direcção, tendo o seu presidente, sr. António de Oliveira Lopes, feito entrega duma valiosa salva de prata.
José Ribeiro, depois de fazer o panegírico de Violinda Medina, recordou com merecido louvor o concurso de alguns distintos amadores da SIT, entre os quais salientou, pela sua já respeitável idade e precário estado de saúde,  a srª D. Helena de Figueiredo Medina pelo nobilíssimo exemplo que ainda hoje oferece às jovens do seu grande amor pelo Teatro.
Das lembranças oferecidas, tomámos nota: uma salva de prata, oferta da Direcção da SIT, primorosamente gravada com artístico desenho de Moreira Júnior alegórico à terra do limonete, figurando nela um antigo brazão de Tavarede e um raminho de limonete; um artístico serviço de chá, dos elementos do grupo cénico e directores; uma salva de prata de sua filha, srª D. Maria Luísa Medina e Silva Pinto, seu genro Carlos da Silva Pinto e sua querida netinha; uma boneca vestida com o trajo de Morgadinha de Val Flor, de seus primos, Gracinda, João e José Medina; uma lindíssima boneca, oferecida por Alberto Anahory que é uma reprodução do riquíssimo trajo executado pelo distinto artista para a peça "Terra do Limonete"; um bolo monumental, oferecido pelos amigos tomarenses, sr. Jacinto de Carvalho e de sua esposa, figurando um livro encadernado com o título "Os Velhos" e as datas de 1959 e 1962.
Entre os muitos e bonitos ramos de flores, destacava-se uma monumental corbelha, de Alberto Anahory.
Na residência da homenageada e na sede da  SIT foram recebidos inúmeros telegramas de saudações, procedentes de várias localidades, sendo um da Figueira da Foz, do sr. Presidente da Câmara Municipal, que tem pela talentosa amadora a maior simpatia e admiração.

         Tavarede e o seu amor ao teatro não podiam passar despercebidos. Mereceu, por isso, uma extensa reportagem no ‘Jornal de Notícias’.             São dois passos desde a cidade até Tavarede… Mas dois passos que nos levam a recuar séculos de existência, no incomensurável mundo das recordações: que a história da Figueira começa depois da história dessa nomeada freguesia do seu concelho!
         De tão verdadeira noticia, aliás, nos alerta, logo que aí se chega, a central “Rua da Câmara de Tavarede”. Sim! – é certo: por doação do segundo rei de Portugal foi a Sé de Coimbra donatária do Couto de Tavarede, a que pertenciam os terrenos (e o mar!) onde mais tarde se criou e floresceu a cidade-praia da Figueira da Foz. Era então Tavarede cabeça de concelho – tinha a sua câmara, os seus fidalgos e a sua casa nobre, que António Fernandes de Quadros ali fundara…
         Mas nunca foram amistosas as relações dos fidalgos da Casa de Tavarede “com os manhosos cónegos do Cabido de Coimbra”. Oito gerações de lutas entre as duas partes se sucederam – até que se deu a inevitável derrota de uma delas! Perderam os fidalgos, que se diziam defensores dos direitos do povo; ganhou o Cabido, que mandou o Deão visitar esse mesmo povo, com pão e vinho em fartura… E assim em 1771, a Câmara de Tavarede era transferida para a Figueira – restando dela, hoje, a recordação que inspira a leitura numa lápida, à esquina de certa rua!
         Resta acrescentar que esse acto político-administrativo não teve no meio social tavaredense as repercussões sérias que seriam de esperar como consequência natural. E não teve, porque os tavaredenses não se haviam deixado enlouquecer pelas honrarias e direitos que lhes tinham pertencido ao longo dos muitos séculos em que a sua terra fora cabeça de concelho! Nem se haviam deixado enlouquecer, nem mesmo terão chegado alguma vez a usufruir dos correspondentes benefícios…
         Tendo nascido pobres e sob o imperativo do trabalho, quando ainda vinha longe a aurora da Nacionalidade, assim quiseram viver sempre, mesmo depois dela… Modestos e laboriosos, tanto nas horas boas como nas más; fiéis às suas melhores tradições e conscientes das suas possibilidades; esclarecidos e experimentados por tantas lições que mostram não ser o povo quem mais lucra com as conquistas político-administrativas das suas terras e dos seus maiores – os tavaredenses, em resumo, puderam pois, continuar a sua vida de sempre; modesta, pobre, e de enxada na mão a cavar de sol a sol a abençoada terra natal. Que essa nunca os traiu!
         Assim chegaram eles aos dias de hoje, ainda iguais aos seus avoengos. Iguais em tudo – até na ânsia do saber!... Uma ânsia que não teme obstáculos – antes os vence, mesmo que para tanto se imponham os mais duros sacrifícios.
         E são gratos a quem lhes leva a luz de novos conhecimentos. Deste sentimento, aliás, é também testemunho inequívoco, em plena praça pública, a “placa” em que se lêem expressivas palavras de homenagem da freguesia à professora que ali ensinou a ler, durante 20 anos consecutivos, quase todos os homens de Tavarede das horas de hoje! Palavras de homenagem, e de gratidão também à professora que jamais se deixou tentar pelos benefícios com que lhe acenavam de outras localidades mais ricas; que se afeiçoou à população pobre e modesta daquela freguesia. Mas também Tavarede não esquecerá nunca essa sua professora, a srª D. Maria Amália de Carvalho, cujo nome estava gravado tanto na lápida da praça pública, como na memória saudosa dos homens de hoje que, quando meninos, dela receberam as luzes que os guiam agora!
         Maria Amália de Carvalho – que era tia da escritora Maria Judite de Carvalho, recentemente laureada com o prémio “Camilo Castelo Branco” pelo seu livro “As palavras poupadas” – continua, pois, a viver na recordação dos tavaredenses como se fora ainda figura presente! E o facto constituirá, portanto, um outro testemunho das virtudes que desde sempre impuseram o povo da modesta freguesia à melhor consideração de quem, um dia, tenha a feliz oportunidade de a visitar – como nós tivemos agora…
         A deslocação é rápida e fácil. Dois quilómetros de estrada ligam a sede do concelho da Figueira da Foz com esta modesta freguesia dos seus domínios… Mas longe que fosse – valeria a pena a deslocação, pelas curiosas e exemplares noticias do seu passado e do carácter do seu povo – que têm por demonstrações mais expressivas essas duas lápidas a que aludimos: a que assinala a “Rua da Câmara de Tavarede”; e a que recorda o nome da professora Maria Amália de Carvalho. Por esses lisonjeiros motivos – e por outros mais!...
         É que Tavarede situa-se numa área de requintados privilégios da Natureza – que vão desde as suaves encostas cujos cumes lhe limitam o horizonte até ao vasto e fértil vale onde se cultivam a horta que alimenta a cidade e as flores que a enfeitam!... Observadas de qualquer ponto mais elevado, oferecem-nos quadros de deslumbrante paisagem as férteis e bem tratadas várzeas – dos mais variados tons esverdeados: dos arvoredos, das searas…
         Porque – como muito bem diz o “Manuel da Fonte” da inspirada revista teatral “Chá de Limonete” (Histórias de Tavarede), do ilustre autor dramático José da Silva Ribeiro: . “Tavarede é uma aldeia pobre enfeitada com flores… E cada casa, um pequeno quintal é um jardim. Em toda a volta da aldeia aconchegada e humilde, há sempre em cada leira um canteiro de flores; e são as rosas, os malmequeres, as violetas, os cravos; e o limonete a dar cheiro e nome à terra! Mesmo onde não há flores, são jardins as hortas verdejantes, as encostas de vinhedos, os pomares olorosos…”.
         E o “Manuel da Fonte” não mente, nem exagera. É assim mesmo a freguesia de Tavarede!
         Mas outras particularidades mais recomendam ainda a visita a essa tão surpreendente freguesia do concelho figueirense.
         Citaremos a do seu “clima” social, por exemplo, em que vivem e trabalham na mais surpreendente harmonia, homens de bem diferenciadas ideias políticas. Acontece até, que uma das importantes realizações artísticas e culturais do meio, se deve ao esforço conjugado e frutuoso de dois homens grandes da terra, cujos ideais políticos serão totalmente opostos – quanto aos meios e processos, pelo que se verifica, afinal…
         E a propósito, eis chegada a oportunidade de referir, finalmente, a circunstância assaz lisonjeira, de se situar igualmente em Tavarede a mais notável – ou das mais notáveis, pelo menos, das afirmações de apaixonado interesse pela arte dramática que Portugal regista. Que, de resto, a fama dessa particularidade terá chegado já tão longe, que mais por ela, do que por outra qualquer, o nome de Tavarede se popularizou – e é hoje citado com respeito e muita admiração!
         Trata-se, sem dúvida, de um caso raro de meio século de trabalho, e luta intensa em favor da causa do Teatro – sobretudo como elemento de educação e de cultura do povo. E é seu “agente”, a Sociedade de Instrução Tavaredense, que homens bons da terra criaram com esse objectivo, precisamente: o de contribuírem para mais elevados graus de educação e cultura dos seus conterrâneos.
         Não vamos, claro está, historiar aqui a vida de epopeia da Sociedade de Instrução Tavaredense. Por muito que escrevêssemos, não conseguiríamos, nunca, dar uma pálida “imagem” do que ela vale e representa!
         Limitar-nos-emos, pois, nesta pobre croniqueta, a citar os seus principais “heróis” contemporâneos; a aludir a uma ou outra das suas realizações do momento; a pedir daqui, a quem de direito, o melhor apoio e a mais efectiva colaboração à prestimosa colectividade; e, finalmente, a recomendar a todos quantos possam gozar da oportunidade de ver representar o grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, que não a desaproveitem!
         José da Silva Ribeiro, espírito esclarecido e culto, escritor de talento e apaixonado pela arte dramática – é a “alma mater” das realizações artísticas da colectividade. António de Oliveira Lopes – com 14 anos de frutuosa actividade à frente da Junta de Freguesia – é a “alma mater” do progresso material. Do trabalho conjunto desses dois excepcionais tavaredenses – é a obra! E o que ela representa, pode avaliar-se pela leitura destas palavras de José da Silva Ribeiro: - “Em certos casos, é sobre os próprios elementos que constituem os grupos de amadores que mais profundamente actua a função educativa e cultural do Teatro. No caso da Sociedade de Instrução Tavaredense, por exemplo”.
         Tenha-se presente que se trata de um grupo de amadores duma humilde e pequena aldeia, pobre entre as que mais o são. O recrutamento é dificil, porque a população é pequena. São bem poucas as famílias que não têm representação no elenco. Aqui se encontram os trabalhadores do campo e das oficinas: rapazes e raparigas da enxada que passam o dia cavando as terras e vêm à noite ao ensaio, operários carpinteiros, pedreiros, serralheiros, raparigas dos alfaiates e das modistas da cidade vizinha, um ou outro empregado de escritório também.
         Se se pretende alguma coisa mais do que mexer fantoches para divertir o público; se desejamos que os intérpretes tomem consciência das respectivas personagens, dos sentimentos que lhes são alma, das ideias que as determinam, da época em que vivem, do ambiente em que se movem, teremos de adoptar processo bem diferente do que se usará com elementos de outra cultura.
         Por isso, aqui, o grupo cénico tem uma actividade que participa da disciplina escolar e do prazer dum passatempo. Que o sistema agrada aos que o praticam, parece não haver dúvida: esta actividade dura há 30 anos!”.
         E os resultados continuam a ser surpreendentes – acrescentamos nós! E com conhecimento de causa: o que resultou de havermos assistido, por feliz acaso, a representação no Teatro do Casino Peninsular, da Figueira da Foz, da peça “A Conspiradora”, de Vasco de Mendonça Alves – pelo grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, que entre tantos dos seus valores, incluía a amadora Violinda Medina e Silva, (“Prémio Maria Matos” dos concursos de arte dramática do SNI) – que tem a dignidade de uma grande actriz!
         Mas Tavarede tem Teatro… e teatro! Um edifício do género – modelar e moderno; e que resultou de grandiosas obras de adaptação e valorização da sua antiga sala de espectáculos.
         O empreendimento valerá para cima de 1.500 contos. Mas custou apenas 950 – porque não faltou quem contribuísse com dias de trabalho e materiais… E desses 950, restam por pagar uns 200 contos apenas!...
         Trata-se de um edifício com todos os requisitos para o género. O pano de boca, por exemplo, tem 20 metros! “Plateia” e “balcões” para a assistência!
         Teremos de ficar por aqui. E contudo, não conseguimos escrever mais do que um simples esboço do muito que há a dizer de Tavarede – da sua história, da sua gente e do seu Teatro!


         Com as obras a prosseguirem no restante edifício, a Sociedade não tinha possibilidade de festejar, como o fazia habitualmente, o aniversário da sua fundação. A data não foi esquecida, mas só teve lugar, na sala de espectáculos, uma animada confraternização do pessoal do palco, à qual deu colaboração, graciosamente, a afamada Orquestra Casino.

Operetas em Tavarede 26


                     Vai com Deus, velhinha santa,
                               Que justiça
                      Será feita e o réu há-de
                     Baixar a fronte submissa
                     Ante a minha majestade
                     Que “mais alto se alevanta!”
                     Vai com deus, velhinha santa!

                     Vai com Deus, santa velhinha,
                                Que o teu pleito
                     Depuseste em boa mão.
                     Eu o tomarei a peito
                     E vai dar-lhe solução
                     A justiça da rainha!
                     Vai com Deus, santa velhinha!

         Maria Clementina conversa com D. Joana, que fica encantada ao conhecê-la e lhe diz:

         D. Joana – “Ouça-me. Uma das minhas amigas tem um filho oficial do exército. No ano passado este rapaz, que é meu afilhado, passou algum tempo em Braga, em serviço; quando regressou a Lisboa, ia preocupado e triste. A mãe, sobressaltada, escreveu para alguém do seu conhecimento que reside aqui próximo e a carta que obteve em resposta tenho-a eu, aqui. (lendo) “Quanto ao que me perguntas a respeito do teu filho, colocas-me em sérios embaraços. Com a franqueza que sempre me conheceste, dir-te-ei que o teu filho Filipe é digno de censura. Há tempos que a sua assiduidade junto de uma menina destes lugares havia sido notada; no dia da sua partida, uma imprudência dele sacrificou a reputação daquela que inocentemente confiara nele...”:

         Sabendo que ela vinha fazer esta viagem, pedira-lhe para procurar a tal menina, que por Roberta soubera ser Maria Clementina, e assegurar-lhe que a mãe de Filipe acredita na sua pureza de mulher, que uma imprudência de seu filho assim sacrificara; que ela lhe pediu que, se pudesse encontrá-la, lhe assegurasse isso mesmo e que lhe transmitisse um beijo “que espero me não recusará”. E foi entre lágrimas que D. Joana, ao despedir-se, lhe garantiu que a todos seria feita justiça.

         Maria Clementina ainda não estava em si. Pois Roberta havia tido o atrevimento de ir falar com a Rainha?... E conhecera-a?

         Roberta – “Conheci logo. Não trazia estadão porque, como me disse o tal rapaz, ela viaja... viaja... Ora como disse ele? Era assim uma coisa como “em cólicas”, mas que vinha a dizer que viajava sem estrondo. Cheguei-me à carruagem e disse para as três senhoras que iam lá dentro: - Qual de V.Exas. é a Rainha? Eu vi logo que devia ser a mais idosa. As duas mais novas desataram a rir... como a menina ri também... não sei porquê. Lembrou-me que seria por eu não dar o tratamento que devia e emendei logo: - Qual de Vossas Majestades é a Rainha? As outras riam ainda... Eram uns galos doirados, coitadinhas, nem por estarem na presença de quem estavam. Raparigas... Mas a senhora tocou-lhes com o cotovelo e disse: - Sou eu, porquê? Eu então, chamei-a de parte e contei-lhe tudo. Era o que faltava se eu me punha com biocos. Depois de lhe ter contado como as coisas se passaram, eu disse à Rainha: - Agora veja Vossa Majestade se isto deve ficar assim, se os militares que Vossa Majestade para cá nos manda vêm para manter a paz ou para meter a desordem nas famílias e fazer a infelicidade de meninas bem educadas”.

         Pois havia sido assim mesmo e o resultado estava à vista. Sua Majestade iria fazer justiça. Eram, entretanto, horas de ceia. Patrão e trabalhadores fazem as despedidas.

            Homens e Mulheres                        
      Boas tardes, meu patrão!

            José Urbano     
       Deus vos salve, meus rapazes,
       Ceiem com satisfação.

            Maria Clementina     
       Santas tardes!

            José Urbano 
       Francisco, vê o que fazes:
       Os enxertos não esquecer,
       Senão deixas-me à divina...

            Francisco     
      Patrão, não tem que temer,
      Não há-de
      Haver novidade.

            José Urbano  
      Novidade?! Ou haja ou não,
      Bem sei, não és tu que ardes,
      E eu é que fico a perder...

            Francisco 
     Boas tardes,
     Meu patrão.

            Trabalhadores    

     Boas tardes,
     Meu patrão.

            Maria Clementina      
     Santas tardes.

            José Urbano      
    Ceiem com satisfação.

            Trabalhadores      
     As companheiras
    Mai-los pequenos
    ‘speram os seus...

            Maria Clementina   
      Após canseiras
      Têm pelo menos
      A paz de Deus!
      Arde a candeia...

            Trabalhadores  
     Mas ninguém cega
     Com a luz dela!...

            José Urbano       
      Vá! vão à ceia.

            Trabalhadores 
     Vamos à ceia
     Que já fumega
     Lá na panela!

            Todos           
     Vá vão à ceia
    Que já fumega
    Lá na panela.

Quase se pode adivinhar o resto. A Rainha, melhor dizendo, D. Joana, acompanhada pelo Alferes Rialva, vai novamente à quinta, onde, além de Maria Clementina e Roberta, está o tio José Urbano e o Major Samora, com quem fizera amizade recentemente. Maria Clementina é, então, pedida em casamento.

            Rialva                  
  Após a noite há o dia,
  Sobre o tempo, tempo avança.
  Maria, quem me diria,
  Da tempestade à bonança
  Que tão pouco passaria.

            Maria 
   Mas agora, meu amor,
   Seja o que fôr
   Que o nosso destino teça...

            Rialva    
   Aconteça o que aconteça,
   P’ra nunca mais te deixar.

            Os dois    
       Aconteça o que aconteça,
        P’ra nunca mais te deixar.

            Maria   
       Este delírio
       Que é de prazer
       E de tortura,
       Não sei dizer
       Se é um martírio,
       Se uma ventura!

            Rialva  
     O teu amor
     Como revive
     No teu perdão!

            Maria   
      Podes supor
     No que inda vive                    (bis)
      Ressurreição?!...
      Se sempre foi
      Como é agora:
     Riso que doi,                          (bis)
     Prazer que chora...

            Rialva  
     Mas agora, meu amor,
     Seja o que fôr
     Que o nosso destino teça...

            Maria  
     Aconteça o que aconteça,
     P’ra nunca mais te deixar!

            Ambos 
   Aconteça o que aconteça,
   P’ra nunca mais te deixar!...

         Com surpresa de todos, José Urbano recusa a mão de sua sobrinha. Estupefacta, D. Joana pergunta-lhe o porquê. “Para conhecer a razão da minha negativa, diz ele, era necessário contar-lhe a minha história e a de minha irmã, que já não vive há muito, e eu não quero cansar a vossa paciência, pois a história é longa”. Nada. Querem mesmo ouvir a história e saber os motivos da recusa ao pedido. E José Urbano acede.

         José Urbano – “Seja como querem, embora vá avivar feridas que desejo cicatrizadas. Minha mãe, ao morrer, tinha eu vinte anos, deixou-me uma irmãzinha de oito anos de idade. Eu, que até ali tinha levado uma vida de rapaz, abandonei os meus companheiros de prazer e dediquei-me de coração ao trabalho. Com o hábito do trabalho criei ambições. O Brasil seduzia-me com as suas promessas de riqueza; e regulada com um comerciante meu amigo uma mesada a minha irmã, deixei-a em companhia de Roberta, que foi ama de nós dois.
         Trabalhei muito no Brasil, mas no fim de oito anos podia considerar-me rico. Por meados de 1833, quando andava tratando da liquidação dos meus negócios, recebia de Portugal uma carta tarjada de preto. Abri-a a tremer. Participava-me que minha irmã morrera no dia 23 de Julho daquele ano. Fiquei gravemente doente. Fui viajar. Dez anos depois regressei a Portugal. Que profunda comoção interior senti ao visitar a casa onde nascera e vivera com minha irmã, e agora ia encontrar vazia!
         Pensava eu nisto quando, de repente – que ilusão aquela, meu Deus! – eu vi aparecer minha irmã à mesma janela onde 18 anos antes eu a vira a dizer-me adeus. Corri como um louco e bati à porta gritando: -“Abre, Roberta. Abre... Minha irmã não morreu! Eu logo vi que não podia ser!”. Eu estava alucinado. Não posso dizer o que se passou. Lembro-me que pouco depois eu abraçava e beijava uma bonita criança de dez anos, julgando beijar minha irmã. Mas a ilusão passou. Gritei: “Quem é esta menina, Roberta?”. – “É sua sobrinha, filha de sua irmã”. Aquelas palavras atravessaram-me o coração. Ia a passar das carícias talvez a alguma crueldade, quando aquele anjo exclamou: “Ai! Pois é este o meu tio!”. E saltou-me ao pescoço, beijando-me com meiguice. Desatei a chorar e não pude deixar de a apertar ao coração.

         Minha irmã fôra enganada por um infame, causa do meu infortúnio e da sua morte. Já que eu a não soube defender, cumpria-me chorá-la e proteger-lhe a filha, que logo amei e cada vez mais. A sorte de minha irmã era muito notória para que eu pudesse viver feliz na minha terra. Vim por isso para Braga, deixando Barcelos com vivas saudades. Aqui tem V.Exa. a razão da minha recusa. Maria Clementina é filha ilegítima e eu não conheço seu pai. Não pude obter sinais dele. Roberta sempre manteve uma reserva que me pareceu ser recomendação de minha irmã. Sei apenas que era militar, um dos muitos que por aquela época cobriam o reino. Algum aventureiro que nunca mais se lembrou da vileza que cometera, nem talvez ao cair no campo varado por uma bala inimiga!”