sábado, 21 de novembro de 2015

O Senhor do Areeiro - 5

         No dia 16 de Janeiro de 1897, o corresponde local da "Gazeta da Figueira" informa que "está já funcionando a escola mista de Tavarede, para a qual tinha há tempos sido nomeada professora a srª. D. Maria Amália de Carvalho, inteligente filha do sr. Inácio Pereira de Carvalho. É já quase de 40 o número de crianças matriculadas na referida escola, e por esta frequência se vê a necessidade que havia ali da sua instituição".

         Funcionava esta escola numa sala da casa que a Câmara havia alugado no chamado Largo do Forno, que, actualmente, tem o nome daquela ilustre professora. Eram mínimas as condições disponíveis para a escola. "... deliberado arrendar por 20$000 reis a casa onde se acha instalada a escola de ensino de Tavarede, pertencente a João Duarte Silva, devendo principiar a contar-se o arrendamento desta a data da instalação da mesma escola.
         Em Abril de 1899, surgia a seguinte notícia: "A srª D. Maria Amália de Carvalho, digna professora da povoação de Tavarede, ofereceu na passada segunda feira – dia da merenda grande – uma soirée familiar, que decorreu animadíssima entre despretensioso convívio, até perto da uma hora da madrugada.     

         O sr. A. Rodrigues recitou o monólogo em verso “O Terrível”, entre francas gargalhadas, sendo também bastante palmeado o sr. A. Proa nas suas cartas de magia.
Durante o baile esteve tocando, sob a direcção do sr. João Proa, um quinteto que muito agradou. De tarde estivera ali executando algumas músicas a “Troupe Gounod”, sendo-lhe oferecido um abundante copo de água".

         Em Julho daquele ano " Pela licença de 30 dias que por motivo de doença foi concedida à exma. srª D. Maria Amália de Carvalho, professora da escola primária desta localidade, fica fechada esta escola até fins de Setembro próximo, pois que ao terminar aquela licença entraremos daí a poucos dias neste mês, que geralmente é feriado para os professores oficiais. Calcule-se por isso o atraso que vão sofrer os numerosos alunos frequentadores da nossa escola, sendo de mais a mais quase todos ainda crianças, e que durante este tempo em que não há aulas vão esquecer tudo o que têm aprendido à custa dos esforços que a sua hábil professora tem empregado para os ilustrar, esforços que são atestados por muitas crianças a quem temos ouvido ler desenvolvidamente. Nada mais justo do que ter-se atendido ao pedido da srª D. Amália de Carvalho, mas também nada mais justo se faria do que nomear-se outra pessoa para a substituir no seu impedimento, obstando-se assim a uma falta que todos são unânimes em apontar. A quem competir rogamos se digne interessar pelo caso"

         Mas a escola ficou fechada durante o impedimento da professora. Entretanto, na sociedade recreativa instalada na casa do Terreiro, onde o sr. João José da Costa, da Quinta dos Condados, havia mandado fazer um teatro, o seu herdeiro, João dos Santos, e o dr. Manuel Gomes Cruz, ainda estudante de Direito, em Coimbra, haviam

instalado uma escola nocturna, que passou a ser frequentada por grande número de alunos, tanto adultos como crianças. Enquanto a escola oficial esteve encerrada por quaisquer motivos, muitas das crianças recorriam à escola nocturna. A escola do Terreiro funcionou até ao ano de 1942 e, além dela, também as outras colectividades locais e a Igreja mantiveram, por vários anos, aulas nocturnas de instrução, que retiraram da ignorância muitos analfabetos que, doutra forma, não teriam possibilidades de aprenderem os princípios básicos da instrução primária. Há notícias, também, de alguns particulares que em suas casas e nos tempos isponíveis prestavam, graciosamente, ensinamento aos seus conterrâneoCortyjo     
No ano seguinte (1930), e no dia da merenda grande, novamente houve

festa das crianças. Eis a notícia. " Ontem, ao início da tarde, quis-nos parecer que os nossos vizinhos figueirenses tinham julgado ser dia de S. João cá na parvónia. Por essas estradas além viam-se ranchos e ranchos de pessoas, e aqui na povoação passavam igualmente muitos outros com cestos enfeitados de verdura e flores e recheados de saborosos petiscos, que iam manducar à sombra de árvores dispersas por aí fora. Não era porém dia de S. João, mas sim o da festejada merenda grande, tão suspirado por todos os operários que até Setembro gozam 2 horas de sesta. Tavarede oferecia-nos mais um tom de quem estava em festa, do que a sua aparência habitual de monótona pacatez. Um grande cortejo de meninas e meninos, alunos da nossa escola elementar, conduzindo cestos caprichosamente engrinaldados de flores, percorreram muitas ruas da localidade. À noite a exma. srª. D. Maria Amália de Carvalho, sua inteligente professora, reuniu em sua casa muitas meninas suas discípulas e outras das suas relações, e ali estiveram em animado convívio até perto da meia noite".


Tavarede Teatro -

O Sonho do Cavador


         Naquele sábado, 28 de Abril de 1928, teve lugar a primeira representação da peça que seria o maior êxito teatral em Tavarede, na primeira metade do século vinte. De seu nome “O Sonho do Cavador”.

         O público da terra do limonete, há muitos e muitos anos apreciador de bom teatro, mesmo durante décadas, único meio, aliás, de se cultivar espiritualmente, pois, a respeito de instrução, e como já sabemos, Tavarede só teve escolas primárias, oficial e particulares, mesmo nos finais do século dezanove, tinha apreciado imenso aquele género de teatro em que ouvia falar, no palco, da sua terra, dos seus costumes e, até, daquelas figuras que ele conhecia tão bem no seu dia a dia.

         As lavadeiras, ceifeiras, cavadores, as comadres, ralhando por tudo e por nada e sempre à espreita da vida alheia, numa coscuvilhice ancestral, os amigos dos copos, quantas vezes cambaleando pelas ruas esburacadas e pouco limpas... E quando ouvia falar na sua fonte, cuja água fresquinha tanto apreciava e que até da Figueira iam buscar, as inevitáveis sopeiras, sempre acompanhadas pelo seu derriço, normalmente o impedido de seu patrão, oficial da tropa, no nobre solar dos Condes de Tavarede, ali à entrada da povoação e que, tristemente abandonado, esquecera todo um passado glorioso para se tornar num curral de cabras e de bois, quando ouvia falar nisso tudo, dizia eu, o povo da terra do limonete gostava imenso. Gostava e ficava comovido e, confessemo-lo, orgulhoso da sua pequenina aldeia.

         E então aquelas músicas tão lindas, que caíam tão bem no ouvido? Logo passavam a andar na boca das mulheres, que as cantavam por todo o lado. Por tudo isto não admira que, naquelas noites em que se davam espectáculos com as revistas, fantasias ou operetas que falassem de Tavarede, a sala se enchesse “à cunha”, como sempre se refere nos comentários então feitos.

         Todos se lembravam dos enormes êxitos alcançados por “Em busca da Lúcia-Lima”, “Pátria Livre”, “O Grão-ducado de Tavarede” e “Retalhos e Fitas”. Não admira, pois, que “a primeira representação da revista-fantasia em 3 actos e 10 quadros “O Sonho do Cavador”, original de João José, com 27 números de música original e coordenada pelo distinto amador sr. António Simões, marcada para o dia 28 do corrente, esteja sendo esperada com muito interesse, estando já assegurada uma enchente completa. E podemos mesmo afirmar que a lotação do teatro não permite satisfazer todos os pedidos. Tudo se prepara para que a peça seja apresentada com brilho. Está a concluir-se o guarda-roupa, que é variado e de lindo efeito – cerca de 40 fantasias; e anda-se trabalhando na montagem do cenário em que serão representados os 10 quadros, alguns pintados expressamente”.

         Tudo correu bem. No dia 2 de Maio, “A Voz da Justiça” noticiava, pelo seu correspondente local, o acontecimento.

         “Não nos enganámos: nem a chuva impertinente que caíu durante todo o dia impediu que o teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense se enchesse no último sábado.
         O Sonho do Cavador agradou extraordinariamente. A peça é mais opereta que revista. Tem acção que caminha do 1º. ao último acto, surgindo de longe em longe, nalguns dos quadros, uma ou outra scena arrevistada, de acentuado sabor local; e tem, a dar-lhe unidade, uma intenção ideológica e de moralidade que, graças ao desempenho, foi sentida mesmo pelos espectadores que não puderam compreendê-la em todo o seu simbolismo.
         A peça encerra a história, que é apresentada com fantasia dentro da qual a verdade tem lugar, dum cavador que a ambição da riqueza leva a abandonar a aldeia, depois de atirar fora a enxada e amaldiçoar o trabalho. Como trabalha desde pequeno, julga ter conquistado o direito à felicidade – e para êle – a felicidade não se encontra fora da riqueza e esta não se alcança cavando a terra. Na própria ambição encontra o castigo do seu êrro; vê-se mais pobre do que era, e as figuras simbólicas dos três Homens Felizes mostram-lhe como os pobres, os humildes, também podem gozar a felicidade; o cavador regressa à aldeia, onde o esperam ainda a enxada leal e a noiva fiel – e a peça fecha com o elogio da vida simples e humilde do campo, na qual a saúde do corpo anda sempre junta à alegria da alma.
         O Sonho do Cavador tem música lindíssima. É uma partitura em que António Simões foi muito feliz. As adaptações são perfeitamente ajustadas às personagens e às situações, como os números originais afirmam as qualidades brilhantes dêste distinto amador musical. Completam admiravelmente a beleza do conjunto alguns lindos versos do sr. João Gaspar de Lemos: esplêndido como inspiração os do final do 2º. acto, e maravilhosos de técnica, de ritmo e de singeleza aqueles em que o Pagem Amor-Perfeito conta à Rainha das Flores a história ingénua da andorinha que morreu apaixonada pela canção do rouxinol; As Uvas, e o terceto do Milho são versos graciosos e dum belo descritivo.
         Valorizando a representação, há os scenários e um vistoso guarda-roupa, no qual se admiram cêrca de 40 interessantes e muito sugestivas fantasias.
         Em resumo: O Sonho do Cavador marca em Tavarede, que é uma pequena e bem pobre aldeia, um acontecimento de certo relêvo artístico. Não admira que no próximo sábado se repita outra enchente, tanto mais que sabemos ser elevado o número de lugares que já no sábado ficaram marcados para pessoas desta cidade que nesse dia irão aplaudir os modestos e simpáticos amadores tavaredenses”.


         Antes de passar às diversas apreciações sobre o espectáculo, transcrevo um comentário que encontrei e que me parece interessante deixar registado neste trabalho. Trata-se, pelos vistos, da opinião de um profissional da agricultura, um dos principais temas da obra.

sábado, 14 de novembro de 2015

Os Quatro Caminhos - 4

A ESCOLA PRIMÁRIA
  

         É muito curioso o facto de, sendo Tavarede sede de concelho, com sua câmara e justiças, por mais de setecentos anos, tenha sido, depois de elevada a Figueira da Foz do Mondego a vila, a última freguesia deste concelho a receber a instalação de uma escola primária oficial.

         No ano de 1892 encontrámos a seguinte notícia: "Sendo presente o processo da criação de uma escola mista de ensino primário na freguesia de Tavarede, concelho da Figueira da Foz, enviado a esta comissão pelo sr. governador civil, para os fins designados na portaria de 20 de Setembro de 1892(?), resolveu responder: 1º que não consta do mesmo processo estar satisfeito o disposto no nº 3º do ofício do ministério do reino de 7 de Abril de 1885; 2º que as circunstâncias financeiras daquele município não consentem por enquanto aumento de despesas (sessão da comissão executiva de 22 de Março)".

         Não havia dinheiro, portanto não havia escola. Mas já havia muito tempo que se pedia a escola, pois o povo tavaredense sentia a necessidade da instrução. " Desde 1889 que por parte de alguns beneméritos vizinhos de Tavarede se fazem baldados esforços afim de alcançar para a localidade o provimento duma cadeira de instrução primária. Parece incrível que se regateiem aplausos e auxílio a tão útil tentativa. Bastará lembrar, para fazer reconhecer a urgente necessidade da criação daquela cadeira que na freguesia existem, segundo o recenseamento de 1890 e 1891, aproximadamente 600 crianças na idade escolar, e que, ou não frequentam a aula mais próxima (Figueira), ou têm de caminhar diariamente, para isso, mais dos 3 quilómetros regulamentares.
        
         Não podemos, por isso, senão elogiar a actual junta de paróquia, como merecem todas as que, directa ou indirectamente, hão contribuído no mesmo sentido, fazendo votos porque afinal se resolvam a aceder, nas regiões superiores, a de pronto deferir o que há tanto tempo se lhes pede com inegável justiça".

         Quer dizer, os tavaredenses, na sua maioria vivendo do seu árduo trabalho na agricultura, não provendo de recursos económicos que lhes permitissem mandar os seus filhos aprender a ler e a escrever na vizinha cidade, e antes necessitando deles para os trabalhos nas suas terras, eram analfabetos e analfabetos ficavam os seus filhos. Para trabalhar com a enxada não era necessário saber ler nem escrever.

         Alguns, poucos, com algumas pequenas disponibilidades financeiras lá mandavam os seus filhos à Figueira. Outros, ainda, trabalhando na cidade em qualquer emprego, como trabalhadores braçais, por exemplo, aproveitavam para frequentar a escola depois do trabalho, na escola oficial ou em escolas particulares que então haviam. Eram esses, que aprendiam as primeiras letras que melhor se apercebiam da falta de uma escola em Tavarede e que mais insistiam pela sua criação.

         Em Abril de 1895, paroquiava esta paróquia havia pouco tempo, o padre Joaquim da Costa e Silva, que dispunha de grande influência política, chegando a ser, posteriormente, vereador da Câmara Municipal, promoveu mais uma iniciativa para a criação de uma escola de instrução primária para a sua freguesia, "a qual é a única deste concelho que não tem uma escola oficial!". Que se saiba, naquele tempo não existia na terra do limonete nem escola oficial nem particular...

         O último recenseamento das crianças em idade escolar atestara que aqui havia mais de 800 crianças "que poderiam receber a benéfica luz da instrução. Nestas condições, têm direito os povos daquela freguesia à instrução dos seus filhos, e por isso é de crer que os esforços do digno pároco de Tavarede sejam coroados do melhor êxito e que o governo atenda aos legítimos interesses daqueles povos, dando-lhes a instrução necessária, sem o que não haverá cidadãos prestantes e úteis".

         Até que, em reunião camarária, foi deliberado prover e tomar a seu cargo a casa para a escola mista e de habitação do professor de Tavarede. E, em Março de 1896, "na primeira reunião do conselho superior de instrução pública deve ser aprovada a criação de uma escola mista na freguesia de Tavarede, deste concelho, há tempo requerida pela Câmara Municipal e em harmonia com o decreto de 27 de Junho de 1895", escrevia num jornal figueirense o seu correspondente na nossa terra.

         Em Abril de 1896, e depois de se noticiar a próxima publicação no Diário do Governo do decreto para a criação da escola mista em Tavarede, o jornal "O Povo da Figueira" escrevia: "Com um melhoramento importante acaba de ser dotada esta povoação devendo-se a iniciativa dele em primeiro lugar ao reverendo vigário desta freguesia, sr. Joaquim da Costa e Silva, que mostrou mais uma vez o seu interesse por tudo quanto reverte em benefício da sua paróquia; e em segundo lugar ao sr. dr. José dos Santos Pereira Jardim, deputado às cortes, por tomar na devida consideração a petição que para tal fim lhe foi apresentada pelo mesmo reverendo vigário.

      
          Refiro-me à escola mista que em breve vai ser estabelecida nesta localidade, onde as crianças podem receber gratuitamente a luz da instrução.



Maria Amália de Carvalho, a primeira professora  oficial de Tavarede. (desenho de João Nunes da Silva Proa,  exposto na biblioteca da SIT)

         Os chefes de família que avaliam bem as dificuldades que lhes têm surgido até hoje para a educação intelectual de seus filhos, devem mostrar-se reconhecidos para com aqueles que desinteressadamente pugnam pelos melhoramentos desta terra. São dignos, pois, de todos os encómios o reverendo vigário pela reconhecida boa vontade com que zela os interesses dos seus paroquianos, e o sr. dr. José Jardim pelos esforços que empregou junto ao governo, para em tão pouco espaço de tempo conseguir, lutando com bastantes dificuldades, a criação da mesma escola, instituição esta de grande importância e incontestável utilidade para Tavarede.
        
         Não é esta a nossa terra natal, mas temos aqui o nosso domicílio; por conseguinte sentimos como todos os tavaredenses verdadeiro e natural regozijo quando alguma coisa se faça em prol desta terra.


         Foi na segunda-feira passada que o reverendo vigário recebeu do sr. dr. José Jardim, directamente de Lisboa, a notícia de ter sido criada a referida escola; por este motivo, foi aquele sr. cumprimentado à noite pela “Estudantina Recreio Tavaredense”. Afinal, tinha demorado, mas até meteu música...

Tavarede no Teatro - 22

         Vem, depois, a fita do Zé Relaxado. É interessante a sua história. Tem um filho a estudar em Coimbra. A estudar leis. E porquê?

         “Preciso de ter à minha ilharga um home que saiba disto das taxas, das avenças, das décimas e dessas coisas todas que a gente tem de pagar. Bom dinheiro me custa. Mas mais do que me custa a inducação do rapaz, tenho eu gasto em custas, juros e relaxes. Volta e meia, zás! Tenho um relaxe em cima de mim; quando não estou relaxado, estou multado; quando não estou multado, estou colectado. Eu cá não me entendo com isto. Viro-me p’rá direita, tenho um relaxe da predial; volto-me p’rá esquerda, é o relaxe da indústria; são relaxes por todos os lados, estou relaxado pela direita e pela esquerda, pela frente e pela rectaguarda. Até me chamam o Zé Relaxado”.

         Realmente, para acabar com esta fita, nada melhor que um homem de leis!

         E continuam a passar as fitas da aldeia. Passam as dos três Estados vizinhos: Brenha, Quiaios e Buarcos; da hortaliça, com a bela couve e o gostoso nabo do Saltadouro; a da rua Direita e a do Caminho dos Canos.

         A da rua Direita lamenta-se, e talvez com razão. É que o Caminho dos Canos, agora, estava irreconhecível, bem arranjado. “Lá porque eu era um triste caminho envergonhado, por onde só passava a gente do Praso e Azenhas, sem falar nos burros com estrume para as fazendas, não tinha direito a modernizar-me?” E não se esquecessem que o Caminho dos Canos era o Caminho do Céu, “porque ninguém vai para o céu sem ser pela mão do sr. Vigário e o sr. Vigário mora no Caminho dos Canos”.

         Bem podia reclamar a rua Direita, “eu, que chego do Paço ao Rio; que tenho de dar passagem às criancinhas quando vão a baptizar; aos noivos quando vão casar; e aos velhos quando vão a enterrar. Não querem saber de mim e continuo num estado vergonhoso, tornada lama quando chove, cheia de covas quando faz sol”. Enfim, as fitas do costume, bem pouco diferentes das de hoje.

         E cheio de curiosidade pela colecção de fitas coloridas que a Princesa promete mostrar-lhe, o Tio Joaquim acompanha-a ao seu palácio, um palácio encantado, todo feito de flores e sempre repleto de perfumes.

         O velho Joaquim, admiradíssimo, arregala os olhos à medida que as várias fitas lhe vão sendo apresentadas:

Princesa - Minhas queridas fitas. Trago-vos aqui a pessoa mais importante, mais sabedora e mais considerada nesta florida terra de Tavarede. Tenho o prazer de vos apresentar o Tio Joaquim.
Fitas - Tio Joaquim...
Tio Joaquim - Minhas meninas...
Princesa - Quis ver o nosso palácio e sobretudo, deliciar-se com a vossa beleza, deslumbrar a vista com a policromia estonteante das minhas fitas.
Tio Joaquim - E palavrinha de honra, princesinha, estou de boca aberta! Isto não é um palácio, é um jardim daqueles onde dizem que moram as fadas. E estas fitas - Ai Joaquina, ai Joaquina, ai Joaquina, para onde veio o teu Joaquim - são fitas de enfeitiçar um homem. O Mercúrio pôs-se a voar com as bruxas, se ele tem visto estas fitas coloridas, ai Nossa Senhora! que grande fita que ele fazia lá no planeta.
Princesa - Bonitas não é verdade? Repare no seu brilho. Têm a maciesa do veludo e do cetim.
Tio Joaquim - Lá que são bonitas: são-no a valer; agora se são de veludo ou de setim, isso não sei porque não apalpei. Mas... mas devem ser. Se houvesse destas fitas lá em casa, não queria doutras nas ceroulas. Lindas, lindas a acabar.
Princesa - Nem admira. São tingidas com flores, recebem delas a cor e o perfume. A fita vermelha é colorida com os cravos rubros, e chama-se Amor.
Tio Joaquim - Que lindo Amor para trazer ao peito.
Princesa - A fita verde chama-se Esperança, - faço-a com as folhas do limonete.
Tio Joaquim - Acautele-se que a podem comer. Há por aí muito quem goste do verde.
Princesa - (Apontando a fita cor de rosa) A Delicadeza - tem o colorido e a macieza da rosa. - Azul - sente-se nesta fita a súplica humilde dos miosótis. Por isso lhe chamam “Não te esqueças de mim”.
Tio Joaquim - Não me esqueço, esteja descansada. (áparte) Da minha Joaquina é que eu me esqueço se aqui me demoro muito tempo.
Princesa - (Apontando a fita lilás) Melancolia - O colorido brando da glicínia e do lilás. E aqui tem a fita branca.
Tio Joaquim - Quer dizer, a fita em que não sai nada.
Princesa - Não. Isso é na lotaria. A fita branca tem grande utilidade na minha tinturaria. Faço misturas com ela.
Tio Joaquim - Ná... misturas é que eu não quero.
Princesa - É a Pureza, por isso é que as noivas vão vestidas de branco e levam a branca flor de laranjeira.
Tio Joaquim - Às vezes não é bonito. Nalgumas noivas assentava melhor uma sardinheira encarnada.
Princesa - Faço com as minhas fitas lindíssimas combinações. Quer ver? A fita verde e a vermelha. (as fitas vão formando grupos à medida que vão sendo chamadas) A bandeira da Pátria.
Tio Joaquim - Cores lindas de Portugal. Símbolo da Pátria e da República. Foi sob estas cores gloriosas que os nossos soldados lutaram, souberam morrer e vencer na África e em França ao lado dos Aliados.
Princesa - Vermelho e azul - A Sociedade de Instrução Tavaredense, conhece?
Tio Joaquim - Quem é que não conhece a Sociedade de Instrução, que tantos benefícios tem prestado à educação dos meus patrícios? Faz hoje vinte e quatro anos. Parabéns! Parabéns!
Princesa - Verde e branco - As cores Navalistas.
Tio Joaquim - Atrás delas na Figueira segue uma multidão entusiasmada.
Princesa - E mudando o verde pelo vermelho - assim - teremos o Ginásio.
Tio Joaquim - Conheço muito bem. O seu nome levou-o o Zé Bento até muito longe.
Princesa - E aqui temos ainda o azul e branco, de que eu muito gosto.
Tio Joaquim - Ai que a princesinha é talassa...
Princesinha - Ora essa! Porque diz isso?
Tio Joaquim - Essa fita azul e branca...
Princesa - Ah! Não é o que supõe. A fita azul e branca a que alude é fita que já não passa em Portugal. Quebrou-se há dezassete anos e já não é possível colá-la de novo.
Tio Joaquim - Sim, sim, não cola.
Princesa - Isto são muito simplesmente as cores do Sporting Clube Figueirense!
Tio Joaquim - Ah! Isso é outra coisa.

         A Princesa, depois da apresentação, convida-o para jantar e passar a noite no palácio. Mas... e a Tia Joaquina? Como é que havia de a avisar? Facílimo. Lá no palácio tinham um telefone sem fios. Bastava carregar na mola e falar. Tudo o que dissesse ao aparelho seria ouvido no Largo da Igreja.

         Entusiasmado com as histórias das fitas, resolve-se e vai telefonar. E espera que a mulher vá na fita!

Tio Joaquim - Ora aí está. Não temos fios para o telefone, mas há telefone sem fios. Como diabo pode isto ser? Não será fita das Fitas? Vamos experimentar. (ao aparelho) Está lá? (pausa) Eh! Tanto barulho! Malcriadas! São as mulheres de Quiaios que vieram à sardinha. Línguas porcas... está lá? Olha lá? Pst! Pst! Tu não ouves? Ó rapaz!... sou eu, o Tio Joaquim! (pausa) Sim, o Tio Joaquim, pois quem? Olha: Vai dizer à minha mulher que chegue aí ao largo da Igreja para me falar. (deixando o aparelho) Ai a minha Joaquina, se ela soubesse... E o povinho de Tavarede, se soubesse que eu passava uma noite fora de casa para andar embrulhado com as fitas... E é uma boa embrulhada... (ouvindo o aparelho) Ahn! És tu? Sim, sim, sou eu. Fui, fui... (rindo) Ah! Ah! Ah! Não é nenhuma alma do outro mundo, mulher. Sou eu mesmo, o teu homem, o teu Joaquim. Isto é uma coisa nova, a telefonia sem fios. Olha, sabes? É para te dizer que não esperes por mim para a ceia! (áparte) Ai Jesus! (pausa; alto) Não, mulher, olha que disparate. Estou no Palácio da Princesa das Fitas. Ela pediu-me para eu cá vir para lhe fazer uns enxertos no jardim, e não me posso ir embora sem deixar tudo acabado. (pausa; áparte) Bonito! Que alarve que eu sou! (recordando-se) Espera que eu te digo. (alto) Cala a boca, mulher, que o que estás a dizer é uma heresia. Eu era lá homem para te fazer uma dessas? Enxertos, sim, sim senhor, são umas roseiras especiais que só se enxertam de noite que é para a flor abrir melhor. (pausa; áparte) Engoliu-a! (alto) Olha! Eu vou cedo, em sendo dez..  ou onze horas... Mas às vezes, a enxertia pode correr mal e demorar até de manhã. Em todo o caso não te esqueças de recomendar ao José Serra que vá logo de manhã buscar uma carrada de pilado para o quintal do Ferreira. Está bem. Até logo. (deixando o aparelho) E agora, visto que a minha mulher foi na fita - vamos às Fitas!

         E acaba esta pequena fantasia com a apoteose das fitas, das fitas de Tavarede!


sábado, 7 de novembro de 2015

Os Quatro Caminhos - 3

A FEIRA DOS QUATRO CAMINHOS
  

         No jornal “Gazeta da Figueira”, de 17 de Abril de 1901, encontrámos a seguinte notícia: “Chega-nos aos ouvidos de que foi proibido fazer-se no Pinhal, dessa cidade, o antigo mercado de suínos que ali se efectuava todos os domingos, e cremos que se pensa agora em a continuar, mas aos quatro caminhos (Senhor da Arieira).

É boa a ideia, pois que, na verdade, a concorrência àquela feira, tanto de vendedores como de compradores, costuma ordinariamente ser feita por gente de Tavarede, Buarcos, Serra da Boa Viagem, Quiaios, Casal da Robala, etc, e por isso, estabelecendo-se naquele local o referido mercado, fica este decerto mais centralizado entre as povoações a que aludimos, e portanto mais comodidades se oferecem ao público.

         Parece-nos que isto qualquer pessoa julga e apoia, e recomendamos o caso ao nosso pároco e vereador da câmara o sr. Costa e Silva, que com certeza tratará de conseguir que a feira ali se estabeleça, mostrando assim a sua boa vontade em promover qualquer serviço a bem dos munícipes daquelas localidades”.

         Complementando a nota acima, publica dias depois, um extracto da acta da Câmara Municipal sobre a deliberação: “... deliberou a câmara, em virtude do dano que causa às árvores ultimamente plantadas no Largo do Pinhal desta cidade, a feira de gado suíno que ali costuma realizar-se, mudar o local da mesma feira um pouco mais para baixo, isto é, para os largos compreendidos entre as estradas do Casal do Mártir Santo à estrada real n° 49 e da Figueira ao Casal da Serra, mais conhecidos pelos largos do Senhor da Arieira”.

         Dias depois é publicado um aviso informando que “por resolução da Câmara Municipal pode já funcionar ao Senhor da Arieira (quatro caminhos) a feira de gado suino que se costuma realizar todos os domingos ao Pinhal e que dali foi mudada para aquele local”.

         A Junta de Paróquia de Tavarede, responsável pelo lugar onde estava a funcionar a feira, oficiou, entretanto, à Câmara Municipal “pedindo a vedação dum largo, ao Senhor da Arieira, para a realização das feiras de suínos, que se têm feito nas estradas que cruzam no mesmo local, impedindo o trânsito”. Esta petição, confirma o que já havia dito: naqueles tempos era um simples cruzamento de estradas.

         Mesmo sem grandes condições, a comissão paroquial resolveu mandar terraplenar o local “onde aos domingos se faz o mercado de gado suíno” e arborizá-lo ao mesmo tempo. E a mesma notícia comenta que “é uma boa medida, pois evita o impedimento de trânsito nas estradas durante as horas do mercado, embelezando muito o local”.

         Mas, como a Junta de Paróquia não tinha verba para a terraplenagem, solicitou à Câmara “o serviço braçal” para a terraplenagem “do terreno que lhe foi oferecido para ser apropriado à feira de gado suíno”.

         Quem havia feito a oferta do terreno para a feira fôra a senhora D. Maria Duarte Costa, viúva de João José Costa, da Quinta dos Condados, quando teve conhecimento da mudança da feira para aquele local. Havia-o feito “há um ano!” Apesar da boa vontade em arranjar o local, uma notícia comenta que “dizem-nos que não será tão depressa terraplenado devido à Câmara se achar deveras atrapalhada com a organização do serviço braçal. Há um ano, senhores, há um ano que está organizado o serviço braçal das freguesias do concelho da Figueira... Que vergonha!...”.

         Mas, em Agosto de 1912, já estava terraplenado metade do terreno para a feira. “Custou, mas foi...”.

         Depois deste apontamento só em Janeiro de 1918 é que voltamos a ter notícia sobre o assunto. Numa descrição da freguesia de Tavarede, publicada no Anuário Figueirense, refere-se que “todos os domingos aqui se efectua um mercado de porcos”.

Até que, em Fevereiro de 1921, temos uma nova notícia: “Na sessão de quarta-feira da Comissão Executiva da Câmara Municipal foi lida uma representação assinada por vários indivíduos da freguesia de Tavarede, pedindo a criação de uma feira de gado bovino, suíno, caprino e azinino e cereais e géneros de várias espécies, a qual deverá realizar-se nos dias 1 de cada mês, no lugar do Senhor da Arieira. A mesma comissão pediu ainda que a feira semanal de gado suíno fôsse transferida para o dia 1 e terceiros domingos de cada mês. A Comissão Executiva deliberou criar a feira, atendendo es prtição”.

         Aprovada a petição, a Câmara Municipal fez publicar o seguinte edital: A Comissão Executiva da Câmara Municipal da Figueira da Foz:
        
         “Faz público que em sua sessão de 2 do corrente mês, deliberou criar uma feira mensal no lugar da Arieira, freguesia de Tavarede, deste concelho, que terá lugar nos dias 1º de cada mês, e que constará de gado bovino, vacum, suíno e asinino, além de géneros de todas as qualidades e espécies, quinquilharias, fazendas, etc. Para constar se passou o presente e outros idênticos, que vão ser afixados nos lugares públicos do costume”.

         A comissão organizadora marcou, então, o dia 1º. de Maio de 1921 para a inauguração da nova feira. “Inaugura-se no próximo dia 1º de Maio a feira mensal de gados, géneros e fazendas que ultimamente foi criada e que deve realizar-se todos os dias 1 de cada mês, no lugar do Senhor da Arieira, próximo de Tavarede.

         Sabemos que a comissão organizadora desta feira está trabalhando com vontade para que no próximo dia 1º de Maio afluam ao Senhor da Arieira avultadas quantidades de géneros alimentícios, gado bovino, caprino, azinino, suíno e outros artigos, como quinquilharias, etc., tudo deixando prever a realização de vantajosas transacções. Procura ainda conseguir que a inauguração da feira seja abrilhantada por uma banda de música”.

         Segundo informações obtidas, a feira estava a despertar o maior interesse, prevendo-se que os povos limítrofes iriam acorrer àquele novo mercado para efectuar transacções “sobretudo de cereais e gados”. Esperava-se, aliás, que a nova feira de Tavarede viesse a ser um valioso melhoramento para a freguesia e que muito beneficiaria os povos vizinhos, “pois é de há muito notada a falta de um mercado perto da sede do concelho, onde todos, sem dificuldades nos meios de transporte, façam as suas transacções”.

         E a inauguração ocorreu no dia marcado.     “Excedeu toda a expectativa a concorrência de gado de todas as espécies e géneros de todas as qualidades que no domingo inaugurou a feira do Senhor da Arieira, em Tavarede.

         Além de muito povo, que afluiu dos arredores, não faltou a nota alegre, que foi dada pela filarmónica de Quiaios.

          As transacções, como era natural, foram importantes, tendo aqueles que ali foram negociar constatado as vantagens daquele novo mercado, que poderá vir a ser um dos melhores dos arredores da Figueira.

         Felicitamos os seus promotores, que devem continuar as suas diligências para manter os créditos da feira”.

         Para a feira seguinte, 1 de Junho, uma nota escreve que “vai realizar-se ao Senhor da Arieira, Tavarede, o mercado mensal inaugurado sob os melhores auspicios o mês passado e que terá lugar sempre no dia 1 de cada mês. As transacções de gado de todas as espécies, cereais, legumes, quinquilharias, etc., então efectuadas, atingiram importância elevada, animando os feirantes a continuarem a ir ali.

         Por isso se espera que o mercado de amanhã continue a demonstrar a sua vantagem, dele beneficiando todos – vendedores e compradores”.

         Dias depois, tivémos o comentário de que “foi concorridíssimo, sobretudo de gados de todas as espécies, o mercado anteontem realizado ao Senhor da Arieira, Tavarede, avultando as transacções. Congratulamo-nos com o facto, pois achamos vantajoso o desenvolvimento daquela feira nos aros da cidade, para isso trabalhando solicitamente os seus promotores, que continuam a ser dignos de ver bem sucedidos os seus esforços”.

         Em finais de Julho surge nova notícia. “No dia 1 de Agosto, segunda-feira, realiza-se ao Senhor da Arieira, Tavarede, a feira mensal que desde Maio ali se vem efectuando com o mais lisonjeiro resultado. O mercado de segunda-feira não deixará de ser por igual concorrido, devendo por isso avultar as transacções. 

         Mas parece que o entusiasmo despertado estava a adormecer. Esta última feira “esteve pouco animada, fazendo-se transacções quase exclusivamente de gado suíno”.

         Não havia dúvidas. O mercado ambicionado e que tanto prometera, não vingou. Vejamos o que nos diz uma notícia de Agosto de 1923:
        
         “Realizou-se mais uma vez, no dia 1 do corrente, a feira mensal de gados, cereais, géneros alimentares, etc. (?), que funciona no Senhor da Arieira, desta localidade, a qual foi inaugurada no dia 1º. de Maio de 1921, ao som de música e foguetes, e a que acorreram todos os lavradores desta freguesia, com os seus gados, para dar mais brilhantismo à referida feira naquele primeiro dia, o que despertou algum entusiasmo nos tavaredenses, por verem naquela iniciativa um engrandecimento para a sua terra.

         Mas... como o que é bom acaba depressa, como costuma dizer-se, é certo que nos meses seguintes se transformou apenas em feira de gado suíno, aliás com pouca concorrência, desaparecendo assim quase da ideia de todos a existência da mesma.

         Em nossa opinião, diremos que o povo desta freguesia não sabe bem compreender quais os beneficios que advêem daqueles mercados, para o desenvolvimento do comércio e muito em especial da agricultura, pois que, podendo adquirir ao pé da porta o que lhe é necessário, tem de procurar em outras localidades onde também se realizam, o que representa, para ele, grande sacrificio com a sua deslocação; e que, a continuar assim, melhor seria que acabasse de vez a feira mensal, visto haver a semanal, que só consta de gado suino, ou então prestar o seu concurso de forma a dar-lhe um certo incremento, de futuro, para assim chamar farta concorrência que efectue algumas transacções importantes e ao mesmo tempo tornal-a conhecida, o que, decerto, só beneficiará e dará nome a Tavarede”.

         Entretanto havia sido decretado o descanso semanal ao domingo. Em Maio de 1929, o correspondente em Tavarede do jornal “O Figueirense” lamentava-se: “os comerciantes de Tavarede, só porque, perto daquela povoação se realiza ao domingo uma pseudo feira de porcos, mercado esse que dura duas ou três horas da manhã, goza o privilégio de se manter aberto todo o domingo, com manifesto prejuízo dos comerciantes da cidade que são obrigados a estar encerrados”. Era sempre um dia de bom negócio, pois os copos de vinho eram muito requisitados...

         E acabaram-se as notícias sobre as feiras na nossa terra, primeiro, de gado suíno, aos domingos, depois mais uma feira/mercado no dia 1 de cada mês, e para acabar, novamente semanal, só de porcos.

         As Juntas de Freguesia seguintes bem tentaram a sua continuidade. Fizeram-se alguns melhoramentos, como, por exemplo, instalaram um chafariz, com uma bacia, para os animais beberem, mas não resultou. Bem sabemos que as condições não eram as ideais, especialmente higiénicas. E a forma de comercialização e industrialização
tornaram obsoletas e impróprias estas feiras. Mas eram características...

         Mas não quero acabar este capítulo sem um comentário. Muitas eram as famílias tavaredenses, sempre de poucos rendimentos e de muito trabalho, que tinham ali o seu “mealheiro”. Compravam um ou dois bácoros acabados de desmamar, tratavam deles durante uns meses e, quando precisavam de realizar algum dinheiro, muitas vezes por causa de doenças, levavam o animal à feira, vendiam-no e voltavam para casa com um novo bácoro, a que se seguia o mesmo percurso. Além deste pecúlio, tinham também o proveito dos estrumes, que eram o adubo utilizado mas pequenas hortas que cultivavam.

         Duas recordações aqui deixo. Uma, a de que havia então em Tavarede uma sociedade protectora de gado suino (compromisso), na qual, mediante uma quota mensal, garantiam o “seguro” do animal. A outra, é uma palavra de admiração à memória de tantas mulheres tavaredenses, pela sua luta e trabalho com a criação caseira dos porcos. Por conhecimento próprio, não posso deixar de recordar minha mãe e uma vizinha, a senhora Isaura, mulher do saudoso Manuel Lindote, que, diariamente e por vezes de manhã e à tarde, iam à Figueira, com um latão à cabeça (cerca de 20/25 quilos), a casa de famílias conhecidas, que lhes guardavam os restos e sobras de comida e que elas traziam à cabeça em prodígios de equilíbrio. Cito estas duas, como disse, por conhecimento próprio. Mas outras mais faziam o mesmo. De inverno ou de verão, chovesse ou fizesse sol, tinham mesmo de o fazer, para que aquelas sobras se não estragassem.

         Que mais não fosse do que por estas singelas recordações, a feira dos Quatro Caminhos do Senhor do Arieiro tinha que fazer parte destas histórias. E não me esqueceram ainda os tremoços e as camarinhas que lá se vendiam e que tão bem nos sabiam!...


                                           A Quinta da Borlateira

Tavarede no Teatro - 21

         “Se lá no seu planeta não as há, mal sabe Vossa Senhoria do que está livre. Há lá nada pior que as bruxas! Coisas que por aí se vêem e que se não sabe quem as faz, já se sabe que é obra das bruxas. Em tomando uma pessoa à sua conta, dão cabo dela. E então fazem cada patifaria... Uma vez entraram no curral do Fadigas, montaram a cavalo num boi, e tanto lhe chuparam o sangue que o boi ficou que parecia um carneiro. Outra: O Zé Augusto foi para o Brasil e deixou cá a mulher. Voltou daí a quinze meses, e quando chegou a casa, a mulher tinha um filho. O rapaz quis divorciar-se, mas, por fim, acomodou-se porque aquilo foi... tinham sido as bruxas. As bruxas! Ui! Que praga! E ladras?!... Nas fazendas faltam batatas, aparecem roubados os couvais: e sabe quem é o ladrão? São as bruxas. Às vezes leio nos jornais: Um grande furto na ourivesaria tal: No Banco qualquer coisa verificou-se um desfalque de duzentos contos. Descobriu-se uma importante falsificação de notas. A polícia faz várias diligências sem resultado, mas espera descobrir os criminosos. Ah! Ah! Ah! Pois, sim, espera, vai esperando que hás-de descobrir boas coisas... Como há-de descobri-los se os criminosos são as bruxas? Tudo obra das bruxas, tudo bruxarias!”.

         Pois Mercúrio quer conhecer as bruxas de Tavarede e começa a chamá-las. Não se fazem rogadas e aí estão elas, cantando:

Coro das Bruxas -      
            A nossa alegre,
            Risonha vida
            É agradável,
            É divertida:
            Sobre os telhados
            Voar, voar;
            E numa eira
            Dançar, dançar...

             Neste baile do Sabá
             De bruxas e diabitos,
             Haja risadas macabras,
             Haja uívos, haja gritos,

              Haja guinchos de vampiros,
              Do morcego e da serpente,
              Em homenagem infernal
              A Satan omnipotente.

              A nossa alegre
              Risonha vida
              É agradável,
              É divertida:
              Sobre os telhados
    Voar, voar;
              E numa eira
                   Dançar, dançar...

Mercúrio -
              Lindas bruxas,
               Lindas bruxas feiticeiras!
              Dou-vos as minhas asas
              E voareis sem mais canseiras!...

Bruxas -
              Somos as bruxas
              Sempre a girar,
              Corremos mundo
              Sempre a voar.
              Se nos apraz
              E dá na bolha,
              Vamos por cima
              De toda a folha.

         E tanto gostou delas que as levou para o seu planeta. Mas, agora, iriam fazer muita falta na terra. Quem passaria a carregar com as culpas? Estava o Tio Joaquim a pensar como se havia de resolver o problema, quando chega até ele uma linda senhora.

                                               “Mensageira do destino
                                               Sou a princesa das fitas.
                                               Espalho por toda a gente
                                               Fitas feias e bonitas.

                                               As velhorras e os caturras
                                               Nem sequer merecem fitas.
                                               Para a doida mocidade
                                               Eu reservo as mais bonitas.

                                               No colorido das fitas
                                               É que está o meu segredo.
                                               Uns apanham a taluda,
                                               Os outros, chucham no dedo”.

         As bruxas tinham ido embora? Não faziam falta. Ainda ficaram os lobisomens. E havia as fitas. Por exemplo, a dos milagres. Tudo aquilo que explicavam com as bruxas podem, a partir de agora, explicá-lo como milagre...

         Uma das fitas crónicas cá da terra era a dos “Borrachos”. Lembremo-nos do José Borrachão e do João Borracho, sempre com os copos e a reclamarem contra os falsificadores do vinho. E também reclamavam contra as falsificações de dinheiro, que estavam muito apuradas... Era cá uma fita! Falsificavam as notas grandes e as moedas pequenas: “olhe que há dez reis falsos, vintens falsos, patacos falsos, meios tostões falsos, e não falsificam três vintens porque é moeda que não existe!”. É caso para dizer: mas que grande fita!

         Mas também Tavarede tinha fitas tristes, mesmo dramáticas. Vou recordar uma. A tragédia da Maria da Chã.

Tio Joaquim - Olha, quem ela é, a pobre da Maria da Chã. É uma tragédia. (entra a Maria da Chã) Olha cá, Maria, a pequena está melhor?
Maria da Chã - Desculpe, ti Joaquim, nem tinha reparado. A minha Júlia? Isso sim. Apaga-se, coitadinha. É só a pele em cima do osso, e aquela tosse maldita! (chora)
Tio Joaquim - Tornáste ao médico?
Maria - Não, senhor, não tornei lá. P’ra quê? Da outra vez receitou um frasco que custou dezoito mil reis que tive de ir pedir emprestados ao senhor Francisquinho, e mandou dar bom tratamento, ovos, leite, uns bifesinhos. Mas eu posso com isto? (chora) Triste vida a minha! Não tenho cinco reis! Na venda já não me fiam nada. Tenho empenhado tudo, por causa desta maldita doença. Agora lá deixei o meu chaile do casamento para ver se a tia Rosa me larga um quartilho de leite. Não tenho mais nada! E a minha filha morre! (chora)
Tio Joaquim - Então o teu homem...
Maria - O meu homem, ti Joaquim?... (um sorriso de profunda amargura) Bem se importa ele com isso. (com mais veemencia) Não me dá cinco reis, A féria fica-lhe toda na taberna, derrete-a em vinho, em borgas c’os amigos. No domingo pedi-lhe que me desse alguma coisa para tratar a Júlia. (com amargor) E o malvado pôs-se a rir e disse que o dinheiro era mal empregado para gastar na botica. E foi derretê-lo na venda, com os outros, aquele desalmado!
Tio Joaquim - Malandro! Ainda agora aqui passou a caír de bêbado, o estupôr...
Maria - É todos os dias assim. Tudo quanto tem e não tem é p’rá vinhaça. Ontem chegou a casa e pediu a ceia: - “Não tenho ceia p’ra te dar! Ainda não me deixáste a féria da outra semana. Eu vou roubá-lo?”. (chora) E bateu-me, e atirou-me ao chão. Queria a ceia... Eu em todo o dia não provei uma migalha de pão, e a minha filha só comeu um caldinho de arroz que a senhora Joana me levou por esmola...
Tio Joaquim - Raios os parta! Cães! Vai a minha casa e diz à ti Joaquina que te dê de jantar, e vá à capoeira buscar um frango. Leva-o para a pequena.
Maria - Deus lhe pague, tio Joaquim. Mas a minha filhinha morre... (chora) Também, se ela há-de viver para ter a vida amargurada que tem a mãe... (numa convulsão de choro) Antes Deus Nosso Senhor ma leve.

Tio Joaquim - Deixa-te de parvoeiras rapariga. Vai lá a minha casa anda..