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sábado, 21 de novembro de 2015

Tavarede Teatro -

O Sonho do Cavador


         Naquele sábado, 28 de Abril de 1928, teve lugar a primeira representação da peça que seria o maior êxito teatral em Tavarede, na primeira metade do século vinte. De seu nome “O Sonho do Cavador”.

         O público da terra do limonete, há muitos e muitos anos apreciador de bom teatro, mesmo durante décadas, único meio, aliás, de se cultivar espiritualmente, pois, a respeito de instrução, e como já sabemos, Tavarede só teve escolas primárias, oficial e particulares, mesmo nos finais do século dezanove, tinha apreciado imenso aquele género de teatro em que ouvia falar, no palco, da sua terra, dos seus costumes e, até, daquelas figuras que ele conhecia tão bem no seu dia a dia.

         As lavadeiras, ceifeiras, cavadores, as comadres, ralhando por tudo e por nada e sempre à espreita da vida alheia, numa coscuvilhice ancestral, os amigos dos copos, quantas vezes cambaleando pelas ruas esburacadas e pouco limpas... E quando ouvia falar na sua fonte, cuja água fresquinha tanto apreciava e que até da Figueira iam buscar, as inevitáveis sopeiras, sempre acompanhadas pelo seu derriço, normalmente o impedido de seu patrão, oficial da tropa, no nobre solar dos Condes de Tavarede, ali à entrada da povoação e que, tristemente abandonado, esquecera todo um passado glorioso para se tornar num curral de cabras e de bois, quando ouvia falar nisso tudo, dizia eu, o povo da terra do limonete gostava imenso. Gostava e ficava comovido e, confessemo-lo, orgulhoso da sua pequenina aldeia.

         E então aquelas músicas tão lindas, que caíam tão bem no ouvido? Logo passavam a andar na boca das mulheres, que as cantavam por todo o lado. Por tudo isto não admira que, naquelas noites em que se davam espectáculos com as revistas, fantasias ou operetas que falassem de Tavarede, a sala se enchesse “à cunha”, como sempre se refere nos comentários então feitos.

         Todos se lembravam dos enormes êxitos alcançados por “Em busca da Lúcia-Lima”, “Pátria Livre”, “O Grão-ducado de Tavarede” e “Retalhos e Fitas”. Não admira, pois, que “a primeira representação da revista-fantasia em 3 actos e 10 quadros “O Sonho do Cavador”, original de João José, com 27 números de música original e coordenada pelo distinto amador sr. António Simões, marcada para o dia 28 do corrente, esteja sendo esperada com muito interesse, estando já assegurada uma enchente completa. E podemos mesmo afirmar que a lotação do teatro não permite satisfazer todos os pedidos. Tudo se prepara para que a peça seja apresentada com brilho. Está a concluir-se o guarda-roupa, que é variado e de lindo efeito – cerca de 40 fantasias; e anda-se trabalhando na montagem do cenário em que serão representados os 10 quadros, alguns pintados expressamente”.

         Tudo correu bem. No dia 2 de Maio, “A Voz da Justiça” noticiava, pelo seu correspondente local, o acontecimento.

         “Não nos enganámos: nem a chuva impertinente que caíu durante todo o dia impediu que o teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense se enchesse no último sábado.
         O Sonho do Cavador agradou extraordinariamente. A peça é mais opereta que revista. Tem acção que caminha do 1º. ao último acto, surgindo de longe em longe, nalguns dos quadros, uma ou outra scena arrevistada, de acentuado sabor local; e tem, a dar-lhe unidade, uma intenção ideológica e de moralidade que, graças ao desempenho, foi sentida mesmo pelos espectadores que não puderam compreendê-la em todo o seu simbolismo.
         A peça encerra a história, que é apresentada com fantasia dentro da qual a verdade tem lugar, dum cavador que a ambição da riqueza leva a abandonar a aldeia, depois de atirar fora a enxada e amaldiçoar o trabalho. Como trabalha desde pequeno, julga ter conquistado o direito à felicidade – e para êle – a felicidade não se encontra fora da riqueza e esta não se alcança cavando a terra. Na própria ambição encontra o castigo do seu êrro; vê-se mais pobre do que era, e as figuras simbólicas dos três Homens Felizes mostram-lhe como os pobres, os humildes, também podem gozar a felicidade; o cavador regressa à aldeia, onde o esperam ainda a enxada leal e a noiva fiel – e a peça fecha com o elogio da vida simples e humilde do campo, na qual a saúde do corpo anda sempre junta à alegria da alma.
         O Sonho do Cavador tem música lindíssima. É uma partitura em que António Simões foi muito feliz. As adaptações são perfeitamente ajustadas às personagens e às situações, como os números originais afirmam as qualidades brilhantes dêste distinto amador musical. Completam admiravelmente a beleza do conjunto alguns lindos versos do sr. João Gaspar de Lemos: esplêndido como inspiração os do final do 2º. acto, e maravilhosos de técnica, de ritmo e de singeleza aqueles em que o Pagem Amor-Perfeito conta à Rainha das Flores a história ingénua da andorinha que morreu apaixonada pela canção do rouxinol; As Uvas, e o terceto do Milho são versos graciosos e dum belo descritivo.
         Valorizando a representação, há os scenários e um vistoso guarda-roupa, no qual se admiram cêrca de 40 interessantes e muito sugestivas fantasias.
         Em resumo: O Sonho do Cavador marca em Tavarede, que é uma pequena e bem pobre aldeia, um acontecimento de certo relêvo artístico. Não admira que no próximo sábado se repita outra enchente, tanto mais que sabemos ser elevado o número de lugares que já no sábado ficaram marcados para pessoas desta cidade que nesse dia irão aplaudir os modestos e simpáticos amadores tavaredenses”.


         Antes de passar às diversas apreciações sobre o espectáculo, transcrevo um comentário que encontrei e que me parece interessante deixar registado neste trabalho. Trata-se, pelos vistos, da opinião de um profissional da agricultura, um dos principais temas da obra.

sábado, 14 de novembro de 2015

Os Quatro Caminhos - 4

A ESCOLA PRIMÁRIA
  

         É muito curioso o facto de, sendo Tavarede sede de concelho, com sua câmara e justiças, por mais de setecentos anos, tenha sido, depois de elevada a Figueira da Foz do Mondego a vila, a última freguesia deste concelho a receber a instalação de uma escola primária oficial.

         No ano de 1892 encontrámos a seguinte notícia: "Sendo presente o processo da criação de uma escola mista de ensino primário na freguesia de Tavarede, concelho da Figueira da Foz, enviado a esta comissão pelo sr. governador civil, para os fins designados na portaria de 20 de Setembro de 1892(?), resolveu responder: 1º que não consta do mesmo processo estar satisfeito o disposto no nº 3º do ofício do ministério do reino de 7 de Abril de 1885; 2º que as circunstâncias financeiras daquele município não consentem por enquanto aumento de despesas (sessão da comissão executiva de 22 de Março)".

         Não havia dinheiro, portanto não havia escola. Mas já havia muito tempo que se pedia a escola, pois o povo tavaredense sentia a necessidade da instrução. " Desde 1889 que por parte de alguns beneméritos vizinhos de Tavarede se fazem baldados esforços afim de alcançar para a localidade o provimento duma cadeira de instrução primária. Parece incrível que se regateiem aplausos e auxílio a tão útil tentativa. Bastará lembrar, para fazer reconhecer a urgente necessidade da criação daquela cadeira que na freguesia existem, segundo o recenseamento de 1890 e 1891, aproximadamente 600 crianças na idade escolar, e que, ou não frequentam a aula mais próxima (Figueira), ou têm de caminhar diariamente, para isso, mais dos 3 quilómetros regulamentares.
        
         Não podemos, por isso, senão elogiar a actual junta de paróquia, como merecem todas as que, directa ou indirectamente, hão contribuído no mesmo sentido, fazendo votos porque afinal se resolvam a aceder, nas regiões superiores, a de pronto deferir o que há tanto tempo se lhes pede com inegável justiça".

         Quer dizer, os tavaredenses, na sua maioria vivendo do seu árduo trabalho na agricultura, não provendo de recursos económicos que lhes permitissem mandar os seus filhos aprender a ler e a escrever na vizinha cidade, e antes necessitando deles para os trabalhos nas suas terras, eram analfabetos e analfabetos ficavam os seus filhos. Para trabalhar com a enxada não era necessário saber ler nem escrever.

         Alguns, poucos, com algumas pequenas disponibilidades financeiras lá mandavam os seus filhos à Figueira. Outros, ainda, trabalhando na cidade em qualquer emprego, como trabalhadores braçais, por exemplo, aproveitavam para frequentar a escola depois do trabalho, na escola oficial ou em escolas particulares que então haviam. Eram esses, que aprendiam as primeiras letras que melhor se apercebiam da falta de uma escola em Tavarede e que mais insistiam pela sua criação.

         Em Abril de 1895, paroquiava esta paróquia havia pouco tempo, o padre Joaquim da Costa e Silva, que dispunha de grande influência política, chegando a ser, posteriormente, vereador da Câmara Municipal, promoveu mais uma iniciativa para a criação de uma escola de instrução primária para a sua freguesia, "a qual é a única deste concelho que não tem uma escola oficial!". Que se saiba, naquele tempo não existia na terra do limonete nem escola oficial nem particular...

         O último recenseamento das crianças em idade escolar atestara que aqui havia mais de 800 crianças "que poderiam receber a benéfica luz da instrução. Nestas condições, têm direito os povos daquela freguesia à instrução dos seus filhos, e por isso é de crer que os esforços do digno pároco de Tavarede sejam coroados do melhor êxito e que o governo atenda aos legítimos interesses daqueles povos, dando-lhes a instrução necessária, sem o que não haverá cidadãos prestantes e úteis".

         Até que, em reunião camarária, foi deliberado prover e tomar a seu cargo a casa para a escola mista e de habitação do professor de Tavarede. E, em Março de 1896, "na primeira reunião do conselho superior de instrução pública deve ser aprovada a criação de uma escola mista na freguesia de Tavarede, deste concelho, há tempo requerida pela Câmara Municipal e em harmonia com o decreto de 27 de Junho de 1895", escrevia num jornal figueirense o seu correspondente na nossa terra.

         Em Abril de 1896, e depois de se noticiar a próxima publicação no Diário do Governo do decreto para a criação da escola mista em Tavarede, o jornal "O Povo da Figueira" escrevia: "Com um melhoramento importante acaba de ser dotada esta povoação devendo-se a iniciativa dele em primeiro lugar ao reverendo vigário desta freguesia, sr. Joaquim da Costa e Silva, que mostrou mais uma vez o seu interesse por tudo quanto reverte em benefício da sua paróquia; e em segundo lugar ao sr. dr. José dos Santos Pereira Jardim, deputado às cortes, por tomar na devida consideração a petição que para tal fim lhe foi apresentada pelo mesmo reverendo vigário.

      
          Refiro-me à escola mista que em breve vai ser estabelecida nesta localidade, onde as crianças podem receber gratuitamente a luz da instrução.



Maria Amália de Carvalho, a primeira professora  oficial de Tavarede. (desenho de João Nunes da Silva Proa,  exposto na biblioteca da SIT)

         Os chefes de família que avaliam bem as dificuldades que lhes têm surgido até hoje para a educação intelectual de seus filhos, devem mostrar-se reconhecidos para com aqueles que desinteressadamente pugnam pelos melhoramentos desta terra. São dignos, pois, de todos os encómios o reverendo vigário pela reconhecida boa vontade com que zela os interesses dos seus paroquianos, e o sr. dr. José Jardim pelos esforços que empregou junto ao governo, para em tão pouco espaço de tempo conseguir, lutando com bastantes dificuldades, a criação da mesma escola, instituição esta de grande importância e incontestável utilidade para Tavarede.
        
         Não é esta a nossa terra natal, mas temos aqui o nosso domicílio; por conseguinte sentimos como todos os tavaredenses verdadeiro e natural regozijo quando alguma coisa se faça em prol desta terra.


         Foi na segunda-feira passada que o reverendo vigário recebeu do sr. dr. José Jardim, directamente de Lisboa, a notícia de ter sido criada a referida escola; por este motivo, foi aquele sr. cumprimentado à noite pela “Estudantina Recreio Tavaredense”. Afinal, tinha demorado, mas até meteu música...

Tavarede no Teatro - 22

         Vem, depois, a fita do Zé Relaxado. É interessante a sua história. Tem um filho a estudar em Coimbra. A estudar leis. E porquê?

         “Preciso de ter à minha ilharga um home que saiba disto das taxas, das avenças, das décimas e dessas coisas todas que a gente tem de pagar. Bom dinheiro me custa. Mas mais do que me custa a inducação do rapaz, tenho eu gasto em custas, juros e relaxes. Volta e meia, zás! Tenho um relaxe em cima de mim; quando não estou relaxado, estou multado; quando não estou multado, estou colectado. Eu cá não me entendo com isto. Viro-me p’rá direita, tenho um relaxe da predial; volto-me p’rá esquerda, é o relaxe da indústria; são relaxes por todos os lados, estou relaxado pela direita e pela esquerda, pela frente e pela rectaguarda. Até me chamam o Zé Relaxado”.

         Realmente, para acabar com esta fita, nada melhor que um homem de leis!

         E continuam a passar as fitas da aldeia. Passam as dos três Estados vizinhos: Brenha, Quiaios e Buarcos; da hortaliça, com a bela couve e o gostoso nabo do Saltadouro; a da rua Direita e a do Caminho dos Canos.

         A da rua Direita lamenta-se, e talvez com razão. É que o Caminho dos Canos, agora, estava irreconhecível, bem arranjado. “Lá porque eu era um triste caminho envergonhado, por onde só passava a gente do Praso e Azenhas, sem falar nos burros com estrume para as fazendas, não tinha direito a modernizar-me?” E não se esquecessem que o Caminho dos Canos era o Caminho do Céu, “porque ninguém vai para o céu sem ser pela mão do sr. Vigário e o sr. Vigário mora no Caminho dos Canos”.

         Bem podia reclamar a rua Direita, “eu, que chego do Paço ao Rio; que tenho de dar passagem às criancinhas quando vão a baptizar; aos noivos quando vão casar; e aos velhos quando vão a enterrar. Não querem saber de mim e continuo num estado vergonhoso, tornada lama quando chove, cheia de covas quando faz sol”. Enfim, as fitas do costume, bem pouco diferentes das de hoje.

         E cheio de curiosidade pela colecção de fitas coloridas que a Princesa promete mostrar-lhe, o Tio Joaquim acompanha-a ao seu palácio, um palácio encantado, todo feito de flores e sempre repleto de perfumes.

         O velho Joaquim, admiradíssimo, arregala os olhos à medida que as várias fitas lhe vão sendo apresentadas:

Princesa - Minhas queridas fitas. Trago-vos aqui a pessoa mais importante, mais sabedora e mais considerada nesta florida terra de Tavarede. Tenho o prazer de vos apresentar o Tio Joaquim.
Fitas - Tio Joaquim...
Tio Joaquim - Minhas meninas...
Princesa - Quis ver o nosso palácio e sobretudo, deliciar-se com a vossa beleza, deslumbrar a vista com a policromia estonteante das minhas fitas.
Tio Joaquim - E palavrinha de honra, princesinha, estou de boca aberta! Isto não é um palácio, é um jardim daqueles onde dizem que moram as fadas. E estas fitas - Ai Joaquina, ai Joaquina, ai Joaquina, para onde veio o teu Joaquim - são fitas de enfeitiçar um homem. O Mercúrio pôs-se a voar com as bruxas, se ele tem visto estas fitas coloridas, ai Nossa Senhora! que grande fita que ele fazia lá no planeta.
Princesa - Bonitas não é verdade? Repare no seu brilho. Têm a maciesa do veludo e do cetim.
Tio Joaquim - Lá que são bonitas: são-no a valer; agora se são de veludo ou de setim, isso não sei porque não apalpei. Mas... mas devem ser. Se houvesse destas fitas lá em casa, não queria doutras nas ceroulas. Lindas, lindas a acabar.
Princesa - Nem admira. São tingidas com flores, recebem delas a cor e o perfume. A fita vermelha é colorida com os cravos rubros, e chama-se Amor.
Tio Joaquim - Que lindo Amor para trazer ao peito.
Princesa - A fita verde chama-se Esperança, - faço-a com as folhas do limonete.
Tio Joaquim - Acautele-se que a podem comer. Há por aí muito quem goste do verde.
Princesa - (Apontando a fita cor de rosa) A Delicadeza - tem o colorido e a macieza da rosa. - Azul - sente-se nesta fita a súplica humilde dos miosótis. Por isso lhe chamam “Não te esqueças de mim”.
Tio Joaquim - Não me esqueço, esteja descansada. (áparte) Da minha Joaquina é que eu me esqueço se aqui me demoro muito tempo.
Princesa - (Apontando a fita lilás) Melancolia - O colorido brando da glicínia e do lilás. E aqui tem a fita branca.
Tio Joaquim - Quer dizer, a fita em que não sai nada.
Princesa - Não. Isso é na lotaria. A fita branca tem grande utilidade na minha tinturaria. Faço misturas com ela.
Tio Joaquim - Ná... misturas é que eu não quero.
Princesa - É a Pureza, por isso é que as noivas vão vestidas de branco e levam a branca flor de laranjeira.
Tio Joaquim - Às vezes não é bonito. Nalgumas noivas assentava melhor uma sardinheira encarnada.
Princesa - Faço com as minhas fitas lindíssimas combinações. Quer ver? A fita verde e a vermelha. (as fitas vão formando grupos à medida que vão sendo chamadas) A bandeira da Pátria.
Tio Joaquim - Cores lindas de Portugal. Símbolo da Pátria e da República. Foi sob estas cores gloriosas que os nossos soldados lutaram, souberam morrer e vencer na África e em França ao lado dos Aliados.
Princesa - Vermelho e azul - A Sociedade de Instrução Tavaredense, conhece?
Tio Joaquim - Quem é que não conhece a Sociedade de Instrução, que tantos benefícios tem prestado à educação dos meus patrícios? Faz hoje vinte e quatro anos. Parabéns! Parabéns!
Princesa - Verde e branco - As cores Navalistas.
Tio Joaquim - Atrás delas na Figueira segue uma multidão entusiasmada.
Princesa - E mudando o verde pelo vermelho - assim - teremos o Ginásio.
Tio Joaquim - Conheço muito bem. O seu nome levou-o o Zé Bento até muito longe.
Princesa - E aqui temos ainda o azul e branco, de que eu muito gosto.
Tio Joaquim - Ai que a princesinha é talassa...
Princesinha - Ora essa! Porque diz isso?
Tio Joaquim - Essa fita azul e branca...
Princesa - Ah! Não é o que supõe. A fita azul e branca a que alude é fita que já não passa em Portugal. Quebrou-se há dezassete anos e já não é possível colá-la de novo.
Tio Joaquim - Sim, sim, não cola.
Princesa - Isto são muito simplesmente as cores do Sporting Clube Figueirense!
Tio Joaquim - Ah! Isso é outra coisa.

         A Princesa, depois da apresentação, convida-o para jantar e passar a noite no palácio. Mas... e a Tia Joaquina? Como é que havia de a avisar? Facílimo. Lá no palácio tinham um telefone sem fios. Bastava carregar na mola e falar. Tudo o que dissesse ao aparelho seria ouvido no Largo da Igreja.

         Entusiasmado com as histórias das fitas, resolve-se e vai telefonar. E espera que a mulher vá na fita!

Tio Joaquim - Ora aí está. Não temos fios para o telefone, mas há telefone sem fios. Como diabo pode isto ser? Não será fita das Fitas? Vamos experimentar. (ao aparelho) Está lá? (pausa) Eh! Tanto barulho! Malcriadas! São as mulheres de Quiaios que vieram à sardinha. Línguas porcas... está lá? Olha lá? Pst! Pst! Tu não ouves? Ó rapaz!... sou eu, o Tio Joaquim! (pausa) Sim, o Tio Joaquim, pois quem? Olha: Vai dizer à minha mulher que chegue aí ao largo da Igreja para me falar. (deixando o aparelho) Ai a minha Joaquina, se ela soubesse... E o povinho de Tavarede, se soubesse que eu passava uma noite fora de casa para andar embrulhado com as fitas... E é uma boa embrulhada... (ouvindo o aparelho) Ahn! És tu? Sim, sim, sou eu. Fui, fui... (rindo) Ah! Ah! Ah! Não é nenhuma alma do outro mundo, mulher. Sou eu mesmo, o teu homem, o teu Joaquim. Isto é uma coisa nova, a telefonia sem fios. Olha, sabes? É para te dizer que não esperes por mim para a ceia! (áparte) Ai Jesus! (pausa; alto) Não, mulher, olha que disparate. Estou no Palácio da Princesa das Fitas. Ela pediu-me para eu cá vir para lhe fazer uns enxertos no jardim, e não me posso ir embora sem deixar tudo acabado. (pausa; áparte) Bonito! Que alarve que eu sou! (recordando-se) Espera que eu te digo. (alto) Cala a boca, mulher, que o que estás a dizer é uma heresia. Eu era lá homem para te fazer uma dessas? Enxertos, sim, sim senhor, são umas roseiras especiais que só se enxertam de noite que é para a flor abrir melhor. (pausa; áparte) Engoliu-a! (alto) Olha! Eu vou cedo, em sendo dez..  ou onze horas... Mas às vezes, a enxertia pode correr mal e demorar até de manhã. Em todo o caso não te esqueças de recomendar ao José Serra que vá logo de manhã buscar uma carrada de pilado para o quintal do Ferreira. Está bem. Até logo. (deixando o aparelho) E agora, visto que a minha mulher foi na fita - vamos às Fitas!

         E acaba esta pequena fantasia com a apoteose das fitas, das fitas de Tavarede!


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Operetas em Tavarede - 3

       No dia 11 de Abril de 1925, subiu à cena a opereta “Em busca da Lúcia-Lima”. Com libreto de João Gaspar de Lemos Amorim, foi musicada por um grande músico figueirense, o saudoso professor António Maria de Oliveira Simões. Recordemos um pouco desta peça.

         Começava a acção no largo do rio, junto da Igreja. Estavam em cena as figuras importantes da aldeia, entre as quais o regedor “Zé Badaleiro”. Este havia acabado de receber um telegrama, vindo de Lisboa, no qual era informado da visita à aldeia de dois brasileiros, riquíssimos, Eduardo Leirosa e Tomás Castanho, que aqui se deslocavam à procura duma determinada pessoa.

         Enquanto esperavam os visitantes e faziam os preparativos para a recepção, as lavadeiras tavaredenses iam lavando as roupas das suas freguesas, nas águas frescas e limpas do nosso ribeiro.           

A roupa que nós lavamos
É de vária freguesia.
O sabão não chega a meio
Para tanta porcaria.

Lavamos muita fraldinha
De pintinhas salpicada...
À força d’ensaboadela
Fica sempre obra asseada.

As águas desta ribeira
Conhecem muito segredo
Das meninas que namoram
Escondidas no arvoredo.

De noivas e de casadas
Toda a roupa aqui vem ter
Por isso sabemos coisas
Que se não devem dizer.

As nódoas que traz a roupa
Nos fartamos d’esfregar.
Estas pedras se falassem
Tinham muito que contar.

         Logo de seguida aparecem os dois brasileiros, acompanhados pelo seu criado, o muleque “Dominus Técum”. Haviam aterrado o seu aeroplano na Várzea e são recebidos festivamente, no largo do rio, por toda a população local. Afinal, eles eram portugueses, naturais, um do Minho e o outro de Trás-os-Montes. Haviam emigrado para o Brasil. A vida correra-lhes bem, amealharam grossa fortuna e, agora, queriam casar.

         Num jornal desta região, que haviam recebido, encontraram o seguinte anúncio: “Senhora nova, sem fortuna mas formosa, de boa reputação e muito prendada, deseja contraír matrimónio com cavalheiro respeitável e em condições de manter o decoro e decência de família digna de toda a consideração. Quem pretender, dando referências idóneas, queira dirigir-se a Lúcia Lima, Beco das Poias, Tavarede”.

         Não hesitaram. Meteram-se dentro do seu aeroplano e aqui chegaram em busca da tal senhora. O pior é que de ninguém era conhecida. E enquanto aguardavam mais informações, foram provar um copo “do bom”, à adega do senhor regedor.

         Havia na aldeia um tal “Pinga-Amor”, amador dramático e conquistador dos “quatro costados”. Este, temeroso que algum dos brasileiros requestasse a bela Capitolina, a filha do regedor que ele pretendia para noiva, especialmente pelo dote dela, logo arquitectou um plano para os afastar daqui, fazendo constar que a tal Lúcia Lima havia ido para a China, na companhia de um irmão, capitão da tropa destacado para Macau.

         Engoliram a patranha. E logo decidiram. Se ela foi para a China, vamos nós, também, à sua procura. O aeroplano estava pronto para a viagem.

         O segundo acto é passado nos jardins do Mandarim de Tching Fou. Comemorava ele, nessa dia, as suas 59 “primaveras” e havia ordenado grandes festejos. Todavia, sua filha, Flor de Chá, estava triste. Havia-se apaixonado por um dos brasileiros. Estes, porém, ao aterrarem o seu aeroplano, fizeram-no com tal infelicidade que partiram umas pendurezas do templo e estragaram o arrozal sagrado, o que causou enorme ira ao Mandarim, que determinou a sua prisão e que, em julgamento mais que sumário, havia determinado a sua execução.

         Flor da Chá, que seu pai havia prometido em casamento ao seu valido Chi-Fan-Tu, mas que se apaixonara por um dos brasileiros, canta a sua tristeza:

 Sonhos dourados, grata alegria,
 Que em mim senti; sempre a brilhar
Mundo d’ilusões em que eu vivia...

Oh! voltai, voltai, e sem tardar
Que eu desfaleço nesta agonia,
Nesta tristeza d’amargurar!

Que vale ser nova, ser cortejada,
 Ser rica e filha dum mandarim,
Se a alma trago atormentada
Duma tristeza que não tem fim!

Viram meus olhos um estrangeiro;
Presos ficaram, presos d’amor,
Como no encanto dum feiticeiro.

Não sei que chama, que estranho ardor
Fez em meu peito letal braseiro,
Que é vida e morte, prazer e dor!

Buda clemente minha alma implora
Do vosso poder a protecção.
Tirar-me o fogo que me devora
D’ardor intenso meu coração.

         Mas a festa continuava. Emtretanto, Flor de Chá tinha conseguido subornar o Comandante Ferraóbico. Projectaram a fuga dos prisioneiros. Por sua vez, o Consul de Portugal, que tivera conhecimento do sucedido, vai interceder junto do Mandarim, a quem oferece algumas garrafas de vinho do Porto que ele muito apreciava.

         Mas não era só a liberdade dos brasileiros que Flor de Chá pretendia. Queria mais, queria casar com Eduardo Leirosa, que também por ela se apaixonara. A festa prosseguia, mas, antes da execução e com o auxílio do Comandante Ferraóbico, conseguem fugir para Portugal, trazendo com eles a apaixonada Flor de Chá.

 Eu tinha numa gaiola
 Uma linda cotovia,
 Era uma delícia ouvi-la
 Chilreando todo o dia.

 Não era só meu o encanto:
 O maroto dum pardal
 Vinha fazer-lhe namoro
 Debruçado no beiral.

 Desde a alvorada
 O tal tratante
 Sempre no posto
 Era constante
 A confessar
 Seu terno amor,
 E a cotovia
 Fazia ouvidos
 De mercador!
 Mas passados tempos
 O tal mariola
 Conseguiu beijá-la
 Fora da gaiola

 E fugiu.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Tavarede - Um pouco da sua história

     Ao dar uma volta por antigos apontamentos, gravados em antigas disquetes, tenho encontrado muita coisa sobre a minha antiga terra. Em 1997 fui, atendendo um pedido de pessoa amiga, conversar um pouco à escola do Senhor da Arieira. Como nunca fui capaz de falar de improviso, escrevi um bocado sobre o que sabia da história de Tavarede. Se não interessar, o que julgo mais provável, ignorem esta conversa...

  Se fossem uns anitos mais novos, começaria a nossa conversa sobre Tavarede da seguinte maneira:
         “Era uma vez uma aldeia pequenina, muito linda e perfumada, que ficava situada perto da costa do mar e que em tempos muito antigos, ainda antes de haver reis em Portugal, já era uma terra muito importante...”
         E, na verdade, a história de Tavarede presta-se bastante a ser assemelhada a um daqueles contos de fadas de que tanto gostávamos de ouvir quando eramos pequeninos. Bastará dizer que até tem uma lenda, uma linda lenda, aliás, em que aparecem cavaleiros andantes e mouras encantadas, tendo uma delas, depois de quebrado o encantamento, sido levada para uma “terra aprazível, rica de plantas aromáticas, de cheiro rústico e agradável, persistente e suave...” Era, nada mais nada menos, do que a nossa terra do limonete. (Por várias vezes já referi que esta 'lenda' foi fantasiada por Mestre José Ribeiro na sua peça 'Terra do Limonete')
         Mas isso seria para os mais pequeninos. Para vocês, a verdade da história da nossa terra já terá de ser contada de uma forma realista, tal qual ela aconteceu e como, pelo menos até agora, se conseguiu apurar desde os tempos mais antigos.
         A primeira vez que, em documento oficial, aparece o nome de Tavarede, é numa doação feita, em 1092, a um poderoso fidalgo beirão, de nome João Gondezendis, do lugar de S. Martinho de Tavarede.
         Tem muita curiosidade o facto desta doação, feita por D. Elvira e seu marido, então governador da cidade de Coimbra, falar na nossa terra dizendo: “concedemos-te na mesma já mencionada vila de S. Martinho todos os que outrora ali recebeu Cidel Paiz do Conde D. Sesnando, que Deus tenha, e estão situados no território de Montemor para o lado da praia ocidental”.
         Recordando, um pouco, a nossa história, lembremos que a península Ibérica, no ano de 711, foi invadida pelos muçulmanos ou mouros. Os cristãos refugiaram-se nas serranias do norte e do noroeste da península donde, logo que reorganizados, iniciaram lentamente a reconquista do território invadido, a qual, como sabemos, só foi totalmente conseguida já no século XIV.
         A cidade de Coimbra, importantíssima pela vasta área que dominava e pela relativa proximidade do mar, foi reconquistada aos mouros por Fernando I, o Magno, rei de Leão e Castela, no ano de 1064.
         À medida que os mouros iam recuando no terreno, iam destruindo tudo quanto eram obrigados a deixar para trás. Não sendo cristãos, as igrejas e os templos eram os principais alvos da sua fúria destruídora.
         Assim aconteceu nesta nossa região, depois da tomada de Coimbra. Nomeado governador da cidade D. Sisnando, que passou, então, a usar o título de conde, terá de imediato este fidalgo iniciado o repovoamento e reconstrução dos lugares e vilas nos territórios entretanto reconquistados.
         Para Tavarede, ou melhor dizendo, para o lugar de S. Martinho da vila de Tavarede, nomeou Cidel Paiz, de quem pouco se sabe, mas que terá sido, com toda a certeza, o repovoador e reconstrutor da nossa terra.
         Após a morte do Conde D. Sisnando, toda esta região terá passado à posse de sua filha, a já referida D. Elvira que, como vimos, a doou a João Gondezendis.

         * * * * *

         Antes de continuarmos com a nossa história, vamos recuar um pouco no tempo.
         Sabemos que antes da conquista muçulmana Tavarede era habitado por um povo cristão, talvez lusitanos. Mas... e anteriormente?
         Ainda se não sabe qual o origem da nossa terra. Há três ou quatro séculos, foram encontrados no então edifício da Câmara de Tavarede, uns pergaminhos que se não conseguiram ler, pelos seus caracteres estranhos e bastante sumidos, e que se encontram na Torre do Tombo, em Lisboa. Talvez que, quando decifrados, se faça finalmente luz sobre as origens da povoação de Tavarede.
         Também do seu nome não há a certeza de que derive. Conhecem-se várias versões. Para nós, a mais convincente e que achamos mais lógica, é a seguinte:
         “... uma das características da região tavaredense são os numerosos outeiros que, nos tempos antigos, eram os limites naturais da posse dos terrenos, e que, em liguagem hebraica, se chamavam TAVAH. Por outro lado, sabe-se que toda estava vasta zona por onde agora se estendem as várzeas, eram regiões pantanosas e insalubres. Admitindo, como já se disse, que Tavarede tivesse sido dominada pelos lusitanos e, após a derrota destes, pelos romanos, é natural que para darem o nome a esta região tivessem conservado o radical semita TAVAH e lhe acrescentassem a desinência latina ETUM que, combinadas, teriam levado a TAVAREDE. Aquela desinência é um substantivo latino, comum, que designa grande porção de seres ou objectos idênticos, como arvoredo, vinhedo, mosquedo, etc.
         No nosso caso diremos que a palavra TAVAREDE é composta pelo radical TAVAH (outeiro ou limite) e pela desinência ETUM (mosquedo, absolutamente natural em terreno pantanoso).

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         Retomemos a nossa história.
         Os bens doados a João Gondezendis, voltariam, pela sua morte, a fazer parte integrante dos bens pertencentes ao entretanto fundado Condado Portucalense, passando, depois, para a coroa portuguesa, logo que o nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, conquistou a independência.
         Seu filho e herdeiro, D. Sancho I, a quem a história deu o nome de “Povoador”, procurou continuar a obra já anteriormente começada pelo Conde D. Sisnando, repovoando e fixando as populações nos seus vastos domínios.
         A igreja teve um papel importantíssimo nesta tarefa. As várias ordens religiosas, a quem o rei fazia grandes concessões, instalavam-se em vastas zonas e, pelos seus conhecimentos, desenvolveram variadíssimas actividades próprias à fixação das populações.
         Toda esta enorme zona do baixo Mondego foi doada à Sé de Coimbra. No nosso caso, foi aquele rei D. Sancho I e sua mulher, a rainha D. Dulce, quem fez a doação do lugar de S. Martinho de Tavarede à igreja de Santa Maria de Coimbra, ao mesmo tempo que, coutando-a, lhe dava categoria para estabalecer as suas justiças.

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         Tudo correu bem durante muitos e muitos anos.
         O Cabido da Sé de Coimbra, como donatário de Tavarede, foi vendendo ou dando de arrendamento as várias parcelas de terreno dos seus domínios, para serem cultivados e explorados.
         A agricultura sempre foi a principal actividade em Tavarede. Amanhando as suas terras, compradas e de que pagavam um fôro anual, ou arrendadas, e a renda normal era o chamado dízimo (décima parte da colheita), os lavradores tiravam das mesmas o seu sustento e de suas famílias, vendendo o excedente, normalmente nas feiras que periodicamente se realizavam.
         É claro que Tavarede sempre teve outras actividades importantes, muitas ligadas à agricultura, como, por exemplo, a pastorícia, para produção e venda de leite. A saliência, no entanto, e naqueles tempos recuados, vai para uma outra: a extracção do sal. Havia, então, muitas marinhas de sal na nossa terra.
         Toda aquela zona da Várzea, que em tempos mais recuados foi pantanosa, era banhada por um braço do rio Mondego que, em dimensão bastante superior, tinha o curso que agora segue o nosso ribeiro, desde o largo da igreja até perto da actual estação do caminho de ferro.
         Nas suas margens, até perto da actual Vila do Robim, estavam instaladas marinhas de sal. Como centro principal, os barcos (os chamados batelões) vinham até Tavarede, pois era aqui que tinham que pagar as suas licenças e tributos.
         Nos finais do século passado ainda existiam, perto do largo de igreja, enormes argolas de ferro onde os barcos eram amarrados, para cargas e descargas.
         Também toda aquela baixa das encostas da Vergieira e do Casal da Robala até Caceira era sede de muitas marinhas para produção de sal.
         A propósito das marinhas em Tavarede, recordemos dois factos reais. Nos princípios do século XIV era dona de vastas propriedades na nossa terra, entre as quais algumas marinhas, uma fidalga de nome D. Maria Mendes Petite. Esta senhora era mãe de Pero Coelho, um dos assassinos da célebre D. Inês de Castro, ao qual, anos mais tarde, o rei D. Pedro mandou justiçar, sendo-lhe arrancado o coração pelas costas, como castigo pelo seu crime.
         Esta fidalga, talvez para fugir ao mundo, fez doação dos seus bens em Tavarede a uma instituição religiosa estabelecida em Vila Nova de Gaia, acabando por lá se recolher.
         O outro facto foi o de que, na primeira metade do século XVI, o fidalgo António Fernandes de Quadros, que havia estabelecido a sua casa em Tavarede, tomou de arrendamento a ilha da Morraceira, então denominada Insua da Oveirôa, e ali, e nas marinhas de Tavarede, activou enormemente a produção de sal, que se tornou a principal fonte de receita desta casa fidalga.
         Outra actividade que também deixou nomeada em Tavarede foi a produção e exportação de laranja, especialmente para Roma, onde esta fruta foi bastante apreciada conforme documentação existente.
         Naturalmente que outras actividades eram desempenhadas pelos tavaredenses para sua subsistência. De entre elas lembremos a pesca, nomeadamente no rio Mondego.
         Para regulamentar estas actividades teria que haver leis. E se primeiramente elas tinham sido elaboradas pela Sé de Coimbra, foram definitivamente fixadas no ano de 1516 pelo foral que el-rei D. Manuel I deu a Tavarede.

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         Referimos atrás que nos inícios do século XVI se estabeleceu em Tavarede o fidalgo António Fernandes de Quadros. Amigo e protegido do rei, possuidor de grande fortuna, casou com D. Genoveva da Fonseca, natural de Montemor e que em Tavarede era proprietária de diversas casas e terras.
         Deste casamento surgiu a chamada casa dos fidalgos de Tavarede, os Quadros. Começou, então, uma terrível luta. Este fidalgo e os seus descendentes iam adquirindo terras aos pequenos proprietários para aumentarem os seus domínios, mas, contra o estabelecido legalmente, não pagavam o respectivo tributo ao donatário, a Sé de Coimbra.
         Por sua vez, sentindo-se, e com razão, prejudicada pela perda destes valores, esta queixava-se continuamente à justiça real.
         A luta travada foi longa e dura. Chegaram a estar presos e condenados a multas e indemnizações, mas os fidalgos, considerando-se superiores a tudo, insistiam em nada pagarem.
         Acabou ingloriamente para a nossa terra esta luta. Cansado de tantas quezílias, e para acabar de vez com a situação, o poder real aproveitou a oportunidade. O célebre Marquês de Pombal, inimigo declarado do clero e da nobreza, resolveu, dum só golpe, eliminar os dois adversários. Elevou, em 1771, o lugar da Figueira da foz do Mondego a vila e para ali transferiu a câmara e justiças até então existentes em Tavarede. Perdeu a nossa terra, com esta transferência, todo o poder e grandeza que deteve durante séculos.
         Antes de concluirmos esta parte, digamos que os fidalgos de Tavarede, os Quadros, não foram todos uns tiranos ou maus para o povo da nossa terra. Alguns foram-no em demasia, é verdade. Mas, também, tiveram alguns membros ilustres, até, ironicamente, figuras motáveis na igreja que combatiam, notabilizando-se em obras e trabalhos religiosos.
         E também tiveram alguns que, na India, em África e nas nossas fronteiras da Beira, morreram em combate na defesa do nosso país. Como em tudo, tiveram o bom e o mau. O que é difícil é avaliar se a sua vida em Tavarede terá sido mais benéfica ou mais prejudicial para a nossa terra e suas gentes.
         Mas o que é muito importante é não esquecer que se a Figueira se desenvolveu e cresceu o fez à custa de Tavarede.

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         Mas não nos esqueçamos de, embora resumidamente, falar da tal lenda da moura encantada.
         O castelo de Montemor, importante praça forte em toda a zona centro, foi conquistado aos mouros no ano de 848, pelas forças do rei de Leão, Ramiro I, que depois entregou o seu governo ao abade D. João de Montemor.
         Os mouros, no entanto, não se conformaram com a perda desta praça de guerra e puzeram novo cêrco ao castelo. Quando julgavam que a vitória seria certa, obrigando os sitiados a renderem-se vencidos pela fome, eis que aquele abade, juntando as suas forças e pedindo-lhes um último esforço, saiu do castelo, rompeu o cêrco e travando batalha, derrotou os sitiantes, perseguindo-os até Seiça. Este feito é histórico, mas deu ocasião a uma outra lenda que tamb~em estamos certos de que irão gostar.
         Os cristãos de Montemor estavam absolutamente convencidos de que iriam ser derrotados pelos mouros. Não querendo deixar refens nas mãos de tais inimigos, resolveram sacrificar todas as crianças e mulheres que viviam no castelo e mataram-nas, degolando-as.
         Qual não foi o seu espanto quando, após a vitória e regressando ao castelo chorando as vítimas inocentes que haviam imolado, viram vir ao seu encontro todas aquelas mulheres e criamças não mortas mas cheias de vida.
         Um dos chefes mouros tinha consigo as suas oito filhas. Antes da batalha, com receio de que o matassem e elas caissem nas mãos do inimigo, os cristãos, lançou-lhes um feitiço.
         A uma delas, Katija, que seria a sua preferida, disse que o seu encanto somente seria quebrado quando um cavaleiro cristão se aproximasse dela e lhe dissesse, por três vezes, “sois bela como o sol”. Mais lhe disse, que quando fosse libertada, seria levada para a tal terra perfumada por uma planta rústica e delicada.
         Já sabemos que o conde D. Sisnando enviou Cidel Pais para repovoar e reconstruir Tavarede. Um dos cavaleiros que resolveu acompanhar Cidel Pais, ao passar perto de Montemor, viu á entrada duma gruta, no monte de Santa Olaia, um grupo de mouras que fugiram quando o viram aproximar-se. Ficou uma para trás, Katija. Chegado junto dela, o cavaleiro, maravilhado com sua beleza, não se conteve e disse; “sois bela como o sol”, não uma nem três, mas sete vezes. Assim se desfez o encanto e a moura encantada seguiu o seu cavaleiro andante para a nossa terra, perfumada com o cheiroso limonete.
         Sabe-se que esta planta é originária da América do Sul ou da Ásia. Certamente terá sido trazida por qualquer navegante ou soldado de uma das viagens áquelas paragens e que gostou do seu perfume.
         Numa peça de teatro, representada em Tavarede nos primeiros anos deste século, e que foi escrita pelo poeta e jornalista João Gaspar de Lemos, que aqui viver grande parte da sua vida, na sua Quinta da Mentana, agora em urbanização sob o nome de Vale do Pereiro, e a que deu o nome de “Em busca da lúcia-lima”, diz que o limonete foi trazido do Malabar, nas costas da Ásia, no ano de 1502, pelo capitão-mor D. Sancho Fagundes de Encerrabodes, que residiu em Tavarede na primeira metade do século XVI e que era aparentado com os Quadros.
         A grande verdade é que, vinda da América ou de qualquer outro ponto de mundo, o limonete, ou lúcia-lima, bela-luísa, doce-lima, verbena, etc., conquistou o coração dos tavaredenses, pois, desde sempre, em quasi todos os quintais ou terrenos ajardinados, há um ou mais pés de limonete, que, além do seu delicado perfume, também é utilizado para fazer um chá que, se não faz bem também não faz mal.

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         Vamos agora fazer um pequenino comentário à família Quadros, que já referimos e que dominou em Tavarede durante três séculos.
         O primeiro foi António Fernandes de Quadros. Foi ele que mandou construir a casa do paço, embora não lhe tivesse dado aquele aspecto gracioso dos torriões que, apesar das ruínas, se apercebem ainda. Tinha, então, uma torre de ameias, o que denota a importância desta família, pois que só era autorizada a fidalgos muito poderosos.
         Foi ele quem estabeleceu o morgadio de Tavarede. Morgadio é o conjunto de bens vinculados que se não podiam dividir nem alienar, e que por morte do titular passariam ao filho primogénito que, com os bens, também herdava o título de morgado.
         Como era preciso autorização real para o estabelecimento dos morgadios, pediu ela concessão a el-rei, D. João III. No entanto, quando a autorização chegou já tinha falecido aquele fidalgo, pelo que, em nossa opinião, a primeiro morgado de Tavarede terá sido o seu filho primogénito e herdeiro.
         O morgadio existiu até ao ano de 1804, data em que foi nomeado barão de Tavarede João d’Almada Quadros Sousa de Lencastre que, no ano de 1848, viu o seu baronato elevado a condado.
         O último conde de Tavarede faleceu em 1903 e, com ele, extinguiu-se o título, embora tenha deixado descendentes directos.
         Como curiosidade, lembremos apenas um, dos imensos privilégios de que a casa de Tavarede foi senhora. Este, além de bastante gravoso, era mesmo vexatório para o povo de Tavarede e da Figueira, pois continuou durante bastante tempo depois da elevação a vila. Era o chamado “forno da poia”.
         Em que consistia: Simplesmente nisto. Ninguém podia ter em casa um forno. Para coser pão ou broa, assar galinhas, coelhos ou qualquer carne, até para assar fruta, teriam de ir fazê-lo ao forno da poia, onde teriam que pagar o tributo estabelecido.

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         É claro que a história de Tavarede não é só isto. Mas não é ocasião de ser demasiado minucioso. Tentamos fazer um resumo e dar uma ideia do que foi e aconteceu de mais significativo na nossa terra, ao longo dos seus dez séculos conhecidos.
         Antes de descrever alguns dos principais costumes e tradições de Tavarede, vamos contar-lhes uma breve história de cada um dos três mais conhecidos santos venerados na nossa terra: S. Martinho, Santo Aleixo e S. Paio.
         Todos nós sabemos que o S. Martinho está ligado ao vinho. Diz-se: em dia de S. Martinho vai á adega e prova o vinho. Porquê? É esta a história: um dia apareceu ao santo um mendigo, cheio de fome e andrajoso, pedindo-lhe esmola. S. Martinho que nada mais tinha que a sua capa, rasgou-a ao meio e deu metade ao mendigo.
         Este entrou numa taberna e pediu de comer dando como paga a metade da capa. O taberneiro, tavez com pena do mendigo, deu-lhe de comer e agarrando na capa, atirou-a desdenhosamente para cima duma pipa. Passado tempo verificou que o vinho daquela pipa nunca acabava. Tirou-lhe de cima a capa e imediatamente o vinho parou de correr. Recolocando-a em cima, novamente op vinho voltou a jorrar pela torneira.
         Há outras histórias sobre este santo, mas esta é a que o deixou ligado ao vinho.
         O santo Aleixo terá vivido em Roma, como pedinte e com grande santidade. A sua capela, edifício bastante antigo, terá servido de hospício e acolhimento aos peregrinos.
         O terceiro santo também tem uma história curiosa na nossa terra.
         A sua pequena capela, lá em cima no prazo, na encosta da serra, foi mandada construir pelos frades de Santa Cruz, os crúzios. Com o correr do tempo caíu em ruínas. Quando, no século passado, a Igreja de Santa Cruz vendeu toda aquela propriedade impôs como condição a reconstrução da capela. Assim aconteceu. Quanto á imagem do santo ela foi encontrada na adega da casa ali existente, onde algumas vezes servia para calçar as pipas. Foi mandada restaurar e lá está na capela. Como facto intrigante, pelo menos para mim, é que S. Paio era um menino quando foi sacrificado pelos mouros e a imagem existente na capela é a figura de um homem com uma barba bem cerrada, nada condizente com os doze anos de S. Paio.
         Outras histórias sobre outros santos de que veneraram em Tavarede também seriam interessantes de contar. Ficará para outra oportunidade.

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         No século passado e princípios deste, Tavarede festejava com grandiosidade o S. João. Não deixa de ser interessante que sendo S. Martinho o orago da terra e havendo outras capelas, as únicas festas profanas e religiosas eram as de S. João.
         Nunca se realizavam no dia deste Santo, a 24 de Junho. Normalmente, tinham lugar no segundo fim de semana de Julho. Eram grandiosas, com ruas ornamentadas, ranchos, muita música e a missa religiosa. Não havia procissão. Mas faziam as chamadas cavalhadas. Arranjavam um enorme número de cavalos e burros e, com a bandeira de S. João á frente, acompanhados de muita gente a pé, iam em cortejo até á Figueira da Foz com regresso por Buarcos. Como nota curiosa diremos que nestas cavalhadas se juntavam bastantes máscaras, pois na altura, o carnaval não era festejado nas ruas.
         As ruas eram vistosamente engalanadas e cheias de balões que à noite se acendiam. Sabemos que havia danças nos largos da Paço, do Forno (actual jardim) e da Igreja.
         Mas a festa popular que mais saudades deixou a todos os tavaredenses foi a da manhã do primeiro de Maio.
         Diz a tradição que a fonte da Várzea era um local verdadeiramente aprazível, onde a água fresca e pura corria das suas bicas. A fonte agora já não existe e o local está coberto de silvas e ervas.
         Manhã muito cedo, os músicos formavam a tuna e os pares, levando as raparigas à cabeça os potes cobertos de flores, que na véspera haviam cuidadosamente enfeitado, dirigiam-se a cantar até àquela fonte. Ali, o rancho de Tavarede juntava-se a outros: da Chã, da Vila do Robim, do Casal da Robala. Dançavam, bebiam a fresca água, descançavam e prosseguiam a viagem até à Figueira onde percorriam as ruas, sempre cantando e dançando.
         Esta última parte seria, mais ou menos, como agora, em que se tenta reatar a tradição do rancho do primeiro de Maio e dos potes floridos de Tavarede.
         Não vamos ser mais maçadores. Queremos, no entanto, ainda lembrar que, verdadeiramente, havia e ainda há duas grandes tradições em Tavarede: o teatro e a música.
         Para lhes contar a história do teatro e da música em Tavarede seria preciso outro tanto tempo. Bastará dizer-vos que há notícia de teatro na nossa terra desde há cerca de duzentos anos. Antes dos colectividades agora existentes outras houveram. E, dedicando-se a estas duas artes, muito fizeram pela divulgação da cultura na terra do limonete. A título de exemplo, sempre diremos que, muitos anos antes de haver escola primária em Tavarede, já as colectividades de então mantinham escolas nocturnas, para crianças e adultos, e que foi nelas que muitos tavaredenses aprenderam a ler e a escrever.
         Muito, mas mesmo muito, haveria a contar sobre a história de Tavarede.Uma grande parte dessa história encontra-se contada nas peças de teatro , escritas pelo sr. José da Silva Ribeiro, e que foram representadas na Sociedade. Aos que quizerem saber um pouco mais sobre a nossa terra podem ler os livros “Chá de Limonete” e “Terra do Limonete” que encontram na biblioteca daquela colevctividade. Também o livro que em Março passado foi editado pela Junta e a que dei o título de “Tavarede - a terra de meus avós” se encontra bastante desenvolvida a história que resumidamente agora lhes contei.

         Se quizerem, e não estiveram muito saturados, podemos conversar um pouco mais sobre qualquer assunto. Ou guardar para outra ocasião. Se a isso estiveram dispostos digo-lhes que, pela minha parte, gosto imenso de conversar sobre a história da minha e da vossa terra.