O Sonho do Cavador
Naquele
sábado, 28 de Abril de 1928, teve lugar a primeira representação da peça que
seria o maior êxito teatral em Tavarede, na primeira metade do século vinte. De
seu nome “O Sonho do Cavador”.
O público da
terra do limonete, há muitos e muitos anos apreciador de bom teatro, mesmo
durante décadas, único meio, aliás, de se cultivar espiritualmente, pois, a
respeito de instrução, e como já sabemos, Tavarede só teve escolas primárias,
oficial e particulares, mesmo nos finais do século dezanove, tinha apreciado
imenso aquele género de teatro em que ouvia falar, no palco, da sua terra, dos
seus costumes e, até, daquelas figuras que ele conhecia tão bem no seu dia a
dia.
As
lavadeiras, ceifeiras, cavadores, as comadres, ralhando por tudo e por nada e
sempre à espreita da vida alheia, numa coscuvilhice ancestral, os amigos dos
copos, quantas vezes cambaleando pelas ruas esburacadas e pouco limpas... E
quando ouvia falar na sua fonte, cuja água fresquinha tanto apreciava e que até
da Figueira iam buscar, as inevitáveis sopeiras, sempre acompanhadas pelo seu derriço,
normalmente o impedido de seu patrão, oficial da tropa, no nobre solar dos
Condes de Tavarede, ali à entrada da povoação e que, tristemente abandonado,
esquecera todo um passado glorioso para se tornar num curral de cabras e de
bois, quando ouvia falar nisso tudo, dizia eu, o povo da terra do limonete
gostava imenso. Gostava e ficava comovido e, confessemo-lo, orgulhoso da sua
pequenina aldeia.
E então
aquelas músicas tão lindas, que caíam tão bem no ouvido? Logo passavam a andar
na boca das mulheres, que as cantavam por todo o lado. Por tudo isto não admira
que, naquelas noites em que se davam espectáculos com as revistas, fantasias ou
operetas que falassem de Tavarede, a sala se enchesse “à cunha”, como sempre se
refere nos comentários então feitos.
Todos se
lembravam dos enormes êxitos alcançados por “Em busca da Lúcia-Lima”, “Pátria
Livre”, “O Grão-ducado de Tavarede” e “Retalhos e Fitas”. Não admira, pois, que
“a primeira representação da revista-fantasia em 3 actos e 10 quadros “O Sonho
do Cavador”, original de João José, com 27 números de música original e
coordenada pelo distinto amador sr. António Simões, marcada para o dia 28 do
corrente, esteja sendo esperada com muito interesse, estando já assegurada uma
enchente completa. E podemos mesmo afirmar que a lotação do teatro não permite
satisfazer todos os pedidos. Tudo se prepara para que a peça seja apresentada
com brilho. Está a concluir-se o guarda-roupa, que é variado e de lindo efeito
– cerca de 40 fantasias; e anda-se trabalhando na montagem do cenário em que
serão representados os 10 quadros, alguns pintados expressamente”.
Tudo correu
bem. No dia 2 de Maio, “A Voz da Justiça” noticiava, pelo seu correspondente
local, o acontecimento.
“Não nos
enganámos: nem a chuva impertinente que caíu durante todo o dia impediu que o
teatro da Sociedade de Instrução Tavaredense se enchesse no último sábado.
O Sonho do Cavador agradou
extraordinariamente. A peça é mais opereta que revista. Tem acção que caminha
do 1º. ao último acto, surgindo de longe em longe, nalguns dos quadros, uma ou
outra scena arrevistada, de acentuado sabor local; e tem, a dar-lhe unidade,
uma intenção ideológica e de moralidade que, graças ao desempenho, foi sentida
mesmo pelos espectadores que não puderam compreendê-la em todo o seu
simbolismo.
A peça encerra a história, que é
apresentada com fantasia dentro da qual a verdade tem lugar, dum cavador que a
ambição da riqueza leva a abandonar a aldeia, depois de atirar fora a enxada e
amaldiçoar o trabalho. Como trabalha desde pequeno, julga ter conquistado o
direito à felicidade – e para êle – a felicidade não se encontra fora da
riqueza e esta não se alcança cavando a terra. Na própria ambição encontra o
castigo do seu êrro; vê-se mais pobre do que era, e as figuras simbólicas dos
três Homens Felizes mostram-lhe como os pobres, os humildes, também podem gozar
a felicidade; o cavador regressa à aldeia, onde o esperam ainda a enxada leal e
a noiva fiel – e a peça fecha com o elogio da vida simples e humilde do campo,
na qual a saúde do corpo anda sempre junta à alegria da alma.
O Sonho do Cavador tem música
lindíssima. É uma partitura em que António Simões foi muito feliz. As
adaptações são perfeitamente ajustadas às personagens e às situações, como os
números originais afirmam as qualidades brilhantes dêste distinto amador
musical. Completam admiravelmente a beleza do conjunto alguns lindos versos do
sr. João Gaspar de Lemos: esplêndido como inspiração os do final do 2º. acto, e
maravilhosos de técnica, de ritmo e de singeleza aqueles em que o Pagem
Amor-Perfeito conta à Rainha das Flores a história ingénua da
andorinha que morreu apaixonada pela canção do rouxinol; As Uvas, e o
terceto do Milho são versos graciosos e dum belo descritivo.
Valorizando
a representação, há os scenários e um vistoso guarda-roupa, no qual se admiram
cêrca de 40 interessantes e muito sugestivas fantasias.
Em resumo: O Sonho do Cavador
marca em Tavarede, que é uma pequena e bem pobre aldeia, um acontecimento de
certo relêvo artístico. Não admira que no próximo sábado se repita outra
enchente, tanto mais que sabemos ser elevado o número de lugares que já no
sábado ficaram marcados para pessoas desta cidade que nesse dia irão aplaudir
os modestos e simpáticos amadores tavaredenses”.
Antes de
passar às diversas apreciações sobre o espectáculo, transcrevo um comentário
que encontrei e que me parece interessante deixar registado neste trabalho.
Trata-se, pelos vistos, da opinião de um profissional da agricultura, um dos
principais temas da obra.
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