sábado, 20 de junho de 2009

Violinda Medina e Silva






Violinda Medina e Silva




Nasceu em Tavarede, em 17 de Fevereiro de 1904, filha de António Medina e de Otília Nunes.
Fez a instrução primária em Tavarede e, levada por seu pai, seu tio José e seu irmão António, iniciou muito nova a sua actividade teatral, no grupo cénico do Grupo Musical e de Instrução Tavaredense, fazendo a sua estreia em 1916. Começou, portanto, aos 12 anos de idade, uma carreira brilhantíssima, recheada de imensos triunfos, e que se prolongou até ao ano de 1979, representando, pela última vez, em Maio desse ano, o papel de Velhinha, na peça O Processo de Jesus, em espectáculo de benefício à Associação dos Bombeiros Voluntários da Figueira da Foz.
No Grupo Musical, e tendo como ensaiadores Vicente Ferreira, seu irmão António e Raul Martins, interpretou diversas peças, das quais talvez a principal tenha sido o drama Erro Judicial. Era possuidora de uma bem timbrada voz de soprano, brilhou em operetas como A herança do 103, Ninotte, Amores no Campo, Cirandeiros, Mãe Maria, Entre duas Ave-Marias e Noite de Santo António, entre outras, além de dramas e comédias diversas.
Em Janeiro de 1929 e relativamente à sua interpretação em Entre duas Ave-Marias, um crítico escreveu: “… colocamos Rosa, a aldeã, papel interpretado por D. Violinda Medina e Silva, para mim, a melhor, a mais completa amadora do nosso concelho. Quando é preciso chorar, fá-lo com sentimento, que nos comove; e quando é preciso rir, também o faz com aquela graça com que só os artistas de nome o sabem fazer. E a tudo isto alia um timbre de voz único, perfeito, que encanta e seduz uma plateia inteira”.
Entretanto, em Julho de 1925, casara com Adriano Augusto da Silva, também amador do Grupo Musical, tendo tido uma filha, Maria Luísa. Nesse mesmo ano, e a propósito da sua interpretação na opereta Ninotte, uma crítica publicada num jornal figueirense refere que “… destaca-se D. Violinda Medina, uma distinta amadora, dotada dos melhores recursos para afirmar dia a dia os seus progressos. Não temos melhor na Figueira. E as deficiências que lhe notámos cremos que facilmente lhe desapareciam, se houvesse um ensaiador de largos conhecimentos que a orientasse”.
Foram proféticas aquelas palavras. Quando acabou a secção cénica no Grupo Musical, foi dar a sua colaboração à Sociedade de Instrução, onde se estreou em Novembro de 1931, representando o papel de Gabriela, baronesa de Souto-Real, na peça Os Fidalgos da Casa Mourisca. Ali foi encontrar José Ribeiro, o tal homem de teatro, que a encaminharia para uma carreira excepcionalmente brilhante.

Em 1932, e atendendo um pedido que lhe foi feito, colaborou com o grupo dramático do Ginásio Clube Figueirense, nas peças O Rei da Lã e O Segredo da Aurora. Resolveu, entretanto, dedicar-se exclusivamente à Sociedade de Instrução.
Durante a sua longa carreira, Violinda Medina participou em cerca de 100 peças, entre dramas, comédias, operetas, etc.
Não é possível, num trabalho destes, mencionar todas as peças e personagens que encarnou. Também é difícil, senão impossível, destacar quais as suas melhores interpretações. Para ela não havia pequenos papéis ou figuras menos importantes. Em todas as suas actuações dava sempre o melhor de si.
Referimos, como exemplo, Entre Giestas, Génio Alegre, Justiça de Sua Majestade, Pé de Vento, Frei Luís de Sousa, Israel, Peraltas e Sécias, A Conspiradora, Os Velhos, As Árvores Morrem de Pé, Pranto de Maria Parda, O Fim do Caminho, Omara, Para Cada Um Sua Verdade, A Forja, etc ., etc .
Vamos só destacar uns breves apontamentos críticos, que escolhemos entre os muitos que encontrámos: “… esta senhora é uma artista na verdadeira acepção da palavra e que representa, sem exagero, como uma Amélia Rey Colaço ou como uma Palmira Bastos! É preciso vê-la para o acreditar! A sua Madalena de Vilhena arrebatou o público, fazendo-o chorar e sofrer, nos lances mais dramáticos e trágicos da peça e não sabemos se qualquer das artistas que mencionámos o fariam melhor! No final do 2º. acto e todos os 3º. e 4º. até descer o pano, arrancou-nos os nervos, torceu-os, obrigou-nos a chorar e a viver consigo toda a imensa tragédia que Garrett escreveu! Parabéns, minha senhora” (Frei Luís de Sousa).
“… Violinda Medina, na sua Marquesa de Souto dos Arcos, ofereceu-nos mais uma das suas notáveis criações. Grande amadora! Mais adequadamente: grande artista, que honraria, como profissional, qualquer companhia do nosso teatro!” (A Conspiradora).
“… Violinda foi Emília. E quando basta designar uma actriz, profissional ou amadora, por um nome só, isso significa que a sua maneira de actuar criou já… um nome. Poderemos, pois, acrescentar uma segunda parte à frase inicial deste período: Violinda continuou a ser Violinda” (Os Velhos).
“… permitimo-nos destacar a “velha” (perdão! Velha e afamada nestas lides teatrais!) Violinda Medina, que deve ter realizado a sua melhor criação no Auto da Maria Parda”.
Muitos outros recortes aqui poderiam ou deveriam ser transcritos, mas o espaço é pouco.
Foi sócia honorária do Grupo Musical e de Instrução Tavaredense e da Sociedade de Instrução Tavaredense. No dia 4 de Agosto de 1962, esta última colectividade prestou-lhe homenagem, tendo-lhe sido entregue uma expressiva mensagem assinada por todos os seus companheiros de palco e muitos amigos, além de numerosos ramos de flores.
“… Os jardins de Tavarede não chegaram para neles colher as flores com que os admiradores do formoso talento da insigne actriz, a rodearam no momento da apoteose. Vieram de toda a parte como mensageiras de glorificação e aplauso. As palmas foram vibrantes, prolongadas, sentidas, e estalaram em tempestade logo que Violinda Medina fez a sua aparição em cena”.
“… 31 anos (1931 – 1962) de assinalados êxitos artísticos. 31 anos de benemerências. 31 anos de dedicação à cultura e instrução. 31 anos de verdadeiro altruísmo. 31 anos de dedicação ao ensino e cultura do povo. A pequena estrelinha que veio a ser estrela, acaba de ser consagrada na sua terra: Tavarede vestiu galas para a festejar. O País soube e agradece a justiça que lhe fizeram. Bem hajam. Chama-se, a estrelinha, a grande estrela: Violinda Medina e Silva”.
No concurso de arte dramática, organizado pelo Secretariado Nacional de Informação, no ano de 1959, foi-lhe atribuído o prémio “Maria Matos”, como a melhor amadora na classe comédia, pelo seu desempenho na peça Os Velhos.
Morreu, em Coimbra, no dia 16 de Março de 1982, depois de uns últimos anos de vida de grande sofrimento físico e moral, especialmente devido ao falecimento de sua única filha, Maria Luísa (1926 – 1975).
“… sobre a sua campa caíram muitos orvalhos de lágrimas de gentes que a conheceram, a admiraram, a estimaram. Até o seu mestre (José Ribeiro), nas dolorosas cerimónias fúnebres, que arrebataram toda uma população daquela boa terra, não pôde conter o que lhe ia na alma, ao evocar a personalidade da sua melhor “aluna” de sempre, de toda uma escola que criou na sua terra natal, autêntica universidade de virtudes e de bem saber representar”.
Mestre José Ribeiro foi solicitado por António Medina Júnior, irmão da falecida, para escrever uma nota sobre a sua vida no teatro. Foi uma carta bem extensa, bem sentida, m
as da qual somente aqui recordamos um pequeno fragmento. “… que escreva para o teu jornal uma nota sobre a Violinda, pedes-me. Pois, meu velho companheiro da velha escola da nossa querida e inesquecível D. Amália! Tu bem sabes, e bem sentes, que a minha vida, como a tua, é já uma longa caminhada tristemente florida de muitas cruzes. Para qualquer lado que me volte – são ecos de ásperas e dolorosas lutas, algumas alegrias e tristezas com sinais de encontrões que aguentei sem que algum tivesse força bastante para me não deixar de pé. E, tu bem o sabes, está comigo, infatigavelmente permanece, o Teatro. E o Teatro de Tavarede sempre o vejo e sinto com a Violinda Medina – admirável Mulher que a paixão da filha única, brutalmente arrancada ao seu grande amor de Mãe, matou para toda a alegria, só lhe deixando alma para resignadamente desfiar o rosário das desventuras…”.
Nos dias 16 e 17 de Março de 1985, a Junta de Freguesia de Tavarede e a Sociedade de Instrução Tavaredense, com a colaboração da Câmara Municipal da Figueira da Foz e de todo o povo da freguesia, foi homenageada a sua memória, com um programa evocativo. Entre os vários eventos, foi descerrada uma placa dando o seu nome à rua que vai dos Quatro Caminhos do Senhor da Areeira ao Largo do antigo Palácio dos Condes de Tavarede.
Um pormenor não pode ser esquecido. Quando desmontavam o velho palco, em 1960, para as obras de remodelação e ampliação da sede da S.I.T., pediu que lhe guardassem algumas tábuas do proscénio, para levar consigo no seu caixão. Assim se fez, pois, cumprindo a sua vontade, o fundo do caixão foi coberto com aquelas velhas tábuas, sob as quais colocaram o seu corpo. Deve ser caso único…

A romaria ao S. Paio



Para nós era sempre um dia de festa. Chovesse ou fizesse sol, era certo e sabido que iamos sempre, no primeiro domingo de Julho, em romaria, vale acima, pelas Azenhas, até à capela do S. Paio, no Prazo.
Manhã ainda cedo, iam os homens, mota acima, caminhando e conversando, até lá acima, para preparar as coisas. Como de costume, a senhora Aurora, dos Monteiros, que tomava conta da capela, tinha tudo muito arranjadinho. A capela muito limpinha, o altar com alva toalha rendada, flores e a lamparina do azeite acesa.
Meu Pai era, como os irmãos e muitos amigos, caçador. Ou, pelo menos, um curioso pela caça. Não era, propriamente, para apanhar coelhos ou perdizes que, na respectiva época, lá ia com os amigos, espingarda ao ombro ou, como algumas vezes, sem espingarda mas com um varapau, como batedor. Para ele era um prazer o contacto com a natureza. Alguns episódios espero recordar.
Como tal, conhecia todos os recantos onde, no meio dos montes ou nas baixas férteis, havia fontes de água pura. Naquele tempo ainda as fontes corriam água e não conheciam a poluição! E no vale de S. Paio, pouco antes de chegarmos à capela, havia, e felizmente ainda existe, uma pequena bica, de água pura e fresquissima, que nos deliciava quando a bebiamos por uma folha de couve ou horto a servir de copo.


Uma pequena gruta, interiormente recoberta de avenca, por cujas folhas se via a água a pingar para uma pequena bacia escavada na rocha e de onde corria em fio para uma vala, com uma telha a servir de cano.
Estava, um dia, meu Pai internado no hospital da Universidade de Coimbra, onde tinha sido operado ao estomago. Em Julho o calor era bastante e, não podendo beber água, a sede atermentava-o. Prometeu, então, que se corresse tudo bem, ele iria com a família, no primeiro domingo de Julho, passar o dia ao S. Paio e beber um pouco daquela fresca água que ali tanto lhe lembrava.
Foi assim que começou. Ao princípio só alguns, poucos, familiares lá iam. Depois mais familiares e amigos começaram, também, a esperar ansiosamente este dia de confraternização.
Como atrás ia dizendo, mal os homens chegavam lançavam ao ar dois ou três foguetes, que estralejavam alegremente no ar, como que querendo anunciar, á aldeia lá em baixo, que já tinham chegado.
Preparavam-se os locais para depois se estenderem as colchas e as toalhas e o sítio onde se iriam disputar as provas desportivas, normalmente partidas de malha.
Entretanto o tempo ia correndo e às tantas, começava-se a olhar, com alguma ansiedade, cá para baixo, para a mota, procurando vislumbrar a vinda das mulheres que, saindo mais tarde, depois de arranjarem o farnel, tinham que subir até à capela mais pachorrentamente, pois as cestas à cabeça ou os cestos nas mãos, iam bem carregadinhos com os comeres. Os garrafões com o vinho já os homens tinham levado mas, mesmo assim, a peso certamente era muito.
Quando chegavam junto à capela eram horas de almoço. Apetite era coisa que não faltava. Os ares puros e frescos faziam mais efeito que o melhor aperitivo! No entanto, primeiro, era sempre o tempo das orações ao Santo.


Estendidas as toalhas, onde se dispunham os tachos com a comida, os talheres, pratos, copos, etc., sentávamo-nos nas colchas e eis-nos saboreando o almoço. Havia variedade, pois um dia não são dias. Peixe frito, galinha assada no forno ou de cabidela, coelho, etc. A sobremesa é que não era muito variada, normalmente arroz doce. E fruta, que sabia muito bem.
Bem comidos e bem bebidos, havia que passar o tempo até à tarde. Uns, especialmente as mulheres, depois de arrumados os tachos e lavada a louça, cá em baixo no ribeiro, aproveitavam para uma soneca. Algumas, por embirração às formigas, não dormiam mas faziam renda. Os homens, esses, dormiam, jogavam às cartas ou à malha, bebiam um copito de vez em quando...
A partir de determinado ano já havia bailarico. Do grupo passou a fazer parte o Diamantino Rocha, o Diamantino alfaiate ou Diamantino coxo, como lhe chamavam, que não se esquecia em casa da sua sanfona, e era ouvi-lo a tocar, sentado num pequeno tronco à sombra, e a dar e dar ao fole. Havia, algumas vezes, mais músicos. Meu Pai e meu Tio José tocavam bandolim e viola, respectivamente. O Manuel Lindote tocava viola e ou pífaro. E havia mais. Parece que estou a ver dançar aquelas danças de roda (polcas e mazurcas) que eram as modas dos arraiais de então...
Pela tarde, e porque o almoço já lá ia, era tempo de vir toda a gente para baixo, para junto da azenha, perto da fonte, onde novamente se estendiam as toalhas e se atacava as sobras do almoço, numa merenda farta. Havia sempre comer com fartura e era ver os homens olharem para os farnéis dos vizinhos à procura dum petisco diferente, que lhes fizesse boca para mais um copito. Era mais fácil acabar a pinga do que o comer. Vinham sempre ainda os tachos com alguma coisa que se não estragava, pois no dia seguinte já havia o jantar feito.
Quando se começava a avizinhar a noite, embora ainda com bastante ar de dia, porque o caminho era estreito e algo acidentado, até aos Canos, eis-nos de regresso. Era sempre cantando que se efectuava a caminhada até Tavarede.
Chegados a casa, mal havia tempo de lavar. O sono, activado pelo passeio e pelos abusos dos petiscos e das pinguitas, obrigava a fechar os olhos e o corpo pedia o descanso da cama.
No dia seguinte a vida recomeçava com a rotina habitual. Trabalho e mais trabalho. E, entretanto, começava-se a contar o tempo em falta para a romaria seguinte...
Até que um dia a romaria acabou. Chegou um ano em que alguém entendeu que o que era uma romaria familiar ou de amizade, também havia de ser de negócio. Foram para lá, armaram uma tenda, e vá de vender vinho e outras bebidas às imensas pessoas que entretanto iam até lá, especialmente depois de almoçarem em casa. Pessoas estranhas. É claro que, copo atrás de copo, acaba por dar mau resultado. Tudo com estranhos, mas houve zaragata e pancadaria. Resolveu-se, de comum acordo, acabar com a romaria ao S. Paio.
No ano seguinte, somente meu Pai com os familiares mais chegados, é que foram dar cumprimento à promessa. Enquanto foi vivo e teve possibilidades físicas o fez. Foi pena!
Era um dia diferente e, se não fosse a ambição do negócio, tudo teria continuado. Talvez, até, a promessa que um dia meu Pai fez se tivesse transformado, após a sua morte, numa verdadeira romaria da aldeia. Em Tavarede não há outra.
E agora, tantos anos depois, a capela lá continua. Ainda há pouco tempo lá estive. Muito arranjadinha mas já não no meio dos pinheiros e das acácias, mas de eucaliptos que também chegaram à encosta da capela do S. Paio. (Tavarede-A terra de meus Avós - 1º. volume)

domingo, 14 de junho de 2009

José da Silva Ribeiro






Nasceu em Tavarede, no dia 18 de Novembro de 1894, filho de Gentil da Silva Ribeiro e de Emília Coelho de Oliveira. Faleceu em 13 de Setembro de 1986, quase com 92 anos de idade.
Motivado por seus pais, muito cedo se começou a dedicar ao associativismo e à cultura popular, devotando-se ao teatro. Ele mesmo dizia que, aos seis anos, já acompanhava seu pai à “Figueirense”, onde assistia aos ensaios e representações do Presépio. Também muito jovem se deixou atrair pelo jornalismo.
“Não sou, nem me considero um homem de teatro, no amplo sentido da expressão. Tenho, é verdade, a paixão do teatro. Aos dez anos estreava-me no teatrito do senhor Conde de Tavarede. Fui amador entusiasta e em 1908 já me atrevera ao jornalismo. Guardo o número 7 do jornalzito “O Poeta”, no qual se lêem estas indicações: jornal republicano da juventude figueirense – director José da Silva Ribeiro”. Foi um dos fundadores do Grupo da Juventude Republicana Dr. Bernardino Machado.
Fez a instrução primária, até à terceira classe, em Tavarede, com a professora D. Maria Amália de Carvalho. Completou-a, na Figueira, com a professora D. Guilhermina Jardim. Começou, então, a trabalhar como aprendiz de tipógrafo na Tipografia Popular e à noite frequentou a Escola Dr. Bernardino Machado.
“Desde muito novo sentiu dentro de si a necessidade de lutar por um dos seus grandes amores: a Liberdade. Republicano e democrata convicto, ardente defensor da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, logo aos 14 anos, agora seria uma criança mas, naquele tempo, já homem feito e com responsabilidades na vida, se dedicou, de alma e coração, aos seus Ideais”.
Integrou-se no grupo cénico da Sociedade de Instrução Tavaredense, para o qual escreveu, em inícios de 1911, “um pequeno drama, no qual é feita a apologia da Instrução em contraste com a taberna, local de vício e de miséria”.
Tendo como ensaiador Vicente Ferreira, protagonizou algumas peças, como O Judeu, A Mãe dos Escravos, Amor de Perdição, Os Amores de Mariana, etc.
No ano de 1915, substituindo Vicente Ferreira que pedira a demissão, assumiu o cargo de ensaiador e director do grupo cénico. A primeira peça ensaiada por ele foi a opereta Entre duas Ave-Marias, representada em Janeiro de 1916.
Entretanto, José Ribeiro que assentara praça no Regimento de Infantaria 28, na Figueira, é mobilizado para a guerra, sendo integrado, com o posto de sargento, no batalhão expedicionário para Moçambique, onde permaneceu até ao final da guerra, regressando em 1919. O seu amor à colectividade era tal que, no momento em que se despedia para ir para África, gritou aos amigos: “É preciso que não esmoreçam. Levem a nossa Sociedade como até aqui a temos levado, que eu vou cumprir o meu dever”.
A propósito da sua estada em Moçambique, contava, muita vez, esta engraçada historieta. Tinham um cozinheiro, negro, que lhes confeccionava as refeições. Sabia cozinhar bem, mas havia uns croquetes de carne que ele preparava, que eram uma verdadeira delicia. Pediam-lhe, frequentemente, para fazer este prato. Não sabiam explicar o seu sabor, mas adoravam aquele petisco. Bem perguntaram ao cozinheiro o segredo, quais os condimentos que usava, mas ele nunca lhes disse e enquanto preparava os croquetes não permitia que alguém estivesse perto dele a ver. Tudo aquilo lhes aguçou a curiosidade e quiseram saber o segredo. E conseguiram, um dia. O negro era um homenzarrão e, enquanto trabalhava na cozinha, estava sempre de tronco nu. Junto ao lume onde frigia os croquetes, o suor corria-lhe abundante pelo tronco. E então viram que, antes de pôr os croquetes na sertã, ele os passava pelo peito, embebendo-os no suor! O tal gosto especial era, nada mais nada menos, do que o gosto que lhes dava o suor do cozinheiro! Claro que nunca mais quiseram os tais saborosos e deliciosos croquetes!
Voltou à sua Sociedade e ao teatro. Ingressou, como amanuense, na Escola Dr. Bernardino Machado. Com a alteração do regime político, em 1926, foi transferido compulsivamente para a Câmara de Cantanhede, mas não tomou posse, aceitando o convite do seu conterrâneo Manuel Jorge Cruz, para ir secretariar o jornal “A Voz da Justiça”.
Continuou a ser defensor intransigente da República e da Liberdade, foi preso em 1933, sendo deportado para Angra do Heroísmo, onde esteve cerca de um ano em regime de incomunicabilidade. Em 1937 o jornal “A Voz da Justiça” é suspenso pela censura.
Na tentativa de dar trabalho aos seus companheiros, funda “O Jornal da Figueira”, que teve curta existência. A Tipografia Popular, de que ele era sócio e onde era feito o jornal, foi saqueada pela polícia política, que dali levou todo o seu recheio. Entretanto é novamente preso, mantendo-se, assim, alguns meses.
Jornalista brilhante, além de comentários políticos, dedicou-se à crítica teatral, sendo temido por muitas companhias dramáticas, que então visitavam a Figueira. Foi grande amigo e admirador das maiores figuras da cena portuguesa da época. Teve, até, um caso interessante. Num espectáculo promovido a favor da Santa Casa da Misericórdia, representou-se no Parque Cine a peça O Amigo Fritz, encenada pela actriz Ilda Stichini e interpretada por ela e por amadores figueirenses. A José Ribeiro foi confiado o papel de Fritz.
No jornal “A Voz da Justiça”, apareceu, dias depois, uma crítica sobre a representação, onde, a par dos maiores elogios a Ilda Stichini e restantes amadores, o crítico refere-se azedamente à interpretação de José Ribeiro. Ele defendeu-se, como lhe foi possível, no número seguinte. Contava ele, anos mais tarde, que tinha sido ele o autor da crítica. “Quando não tinha de que ou de quem dizer mal, inventava…”.
Dedicou-se inteiramente à família, à Sociedade de Instrução e a Tavarede, além, naturalmente, do seu trabalho profissional em escritórios figueirenses. Sem dúvida que José Ribeiro foi a maior figura cultural da nossa terra. Foi ele o responsável pela educação, instrução e cultura de algumas gerações de conterrâneos seus. A actividade que desenvolveu, através do teatro, é inigualável. O seu busto, colocado no Largo frente à sua colectividade, recordá-lo-á para sempre.
Mas não foi só em Tavarede. Praticamente todas as colectividades do concelho solicitaram e tiveram a sua presença. Nunca dizia que não, e nas sessões solenes as salas enchiam-se para o ouvirem falar. Com a sua palavra, fácil e fluente, encantava toda a assistência. Igualmente foi conferencista sempre elogiado. Levou o grupo cénico a inúmeros palcos portugueses. Era ele quem fazia a apresentação do grupo. Sempre brilhante e entusiasticamente aplaudido.
Contra sua vontade, o grupo cénico participou, em 1959, no 1º. Concurso do Teatro Amador. Foi o grupo dramático mais premiado. Deram-lhe os prémios de encenação, primeiro lugar, na peça Os Velhos, e menção honrosa em Frei Luís de Sousa. Mais tarde, certamente devido a pressões políticas, dividiram o prémio. Não aceitou a nova situação e o prémio por lá ficou.
Por ocasião das comemorações dos seus 50 anos à frente do grupo cénico, a Direcção prestou-lhe uma significativa homenagem. “… E nessa caminhada gloriosa, não isenta de espinhos, ao longo de 50 anos, trabalhando na valorização do elemento humano através do Teatro e pelo Teatro, quantas arrelias e quantas canseiras, mas também quanto saber e quanto carinho, dispendidos em benefício da elevação moral, cultural e educativa da gente da nossa terra. …Trabalho árduo, feito sem um desfalecimento, muitas vezes com prejuízo da própria saúde e desprezando, até, os seus interesses pessoais, tudo sacrificou em prol do seu sonho de criar um Teatro digno em Tavarede, um Teatro desempenhado com arte pelo povo humilde, para a nossa gente”.
Teve várias condecorações e homenagens, como a “Ordem da Liberdade”, que lhe foi imposta pelo General Ramalho Eanes, presidente da República, e a “Medalha de Mérito – Ouro – da Figueira”, que recebeu das mãos do secretário de Estado da Cultura, Prof. Dr. David Mourão Ferreira, que veio presidir à sessão solene das Bodas de Diamante da Sociedade de Instrução. Tavarede também o perpetuou, atribuindo o seu nome a uma rua.
Muito e muito haveria a escrever sobre a sua vida, especialmente no campo teatral em que foi considerado Mestre, e elevou o grupo de Tavarede ao nível mais alto do teatro amador em Portugal. É extraordinária a lista das peças que encenou e fez representar. Com a colaboração de amigos, começou a escrever para os seus amadores, com a opereta Grão-Ducado de Tavarede. Seguiu-se O Sonho do Cavador, A Cigarra e a Formiga, A Morgadinha dos Canaviais, Justiça de Sua Majestade, Histórias da Roberta, Noite de Teatro Português, Chá de Limonete, Terra de Limonete, Ana Maria, História… e histórias de Tavarede, Camões e os Lusíadas, Mesa Redonda, Cântico da Aldeia, Ontem, Hoje e Amanhã, Ecos da Terra do Limonete, Viagem na Nossa Terra e Manta de Retalhos, além de outras pequenas peças, algumas de carácter didáctico, e adaptações de obras célebres.
São de sua autoria os livros “50 Anos ao Serviço do Povo” e “75 Anos e… Caminhando”, publicados por ocasião das Bodas de Ouro e Bodas de Diamante da Sociedade de Instrução Tavaredense.
Reproduzimos, somente, mais uns pequenos retalhos de noticias publicadas por ocasião da sua morte.
“… interessa somente recordar a incrível riqueza que lhe foi proporcionada pelos vários, mas breves momentos, em que lidou com esse Homem: pelas indicações e conselhos que solicitou e lhe foram dados “de cabeça”, sem consultar nenhum canhenho; e pela incrível personalidade interessada, objectiva e lúcida, que oferecia de bandeja, aos seus interlocutores. Deixando-os espantados, ia buscar coisas que não lembram nem “àquela pessoa bem informada”. Galardoado com alguns prémios e distinções várias de âmbito nacional, era considerado um dos expoentes máximos do teatro amador em Portugal”.
“No nosso concelho não houve associação que não tivesse ouvido as suas lições de ensinamento de progresso moral e persistência de trabalho dedicado ao bem da massa associativa e do povo em geral. No teatro foi mestre. Pelo seu mérito próprio conseguiu ser um teatrólogo de muito valor. Conhecia os melhores autores e com muitos tinha relações amistosas. As dezenas de peças que ensaiou tinham perfeição de dicção e movimento. As suas encenações eram cuidadas, tornando-se distintas”.
“… foi um homem simples, humilde, sociável, vivo de espírito, com inteligência acutilante e sagaz pelo trabalho. Levou uma vida atribulada de sacrifícios pela família e por si próprio. Foi um perseguido político, no tempo da ditadura salazarista, resistindo sempre com estoicismo e fé em melhores dias para o povo. Finou-se, deixando um nome limpo e um historial talentoso. Tavarede, sua terra natal, perdeu um filho dilecto. Portugal vê apagar-se um farol de filantropia!”.


Por lapso, não indiquei nas condecorações recebidas a "Medalha de Mérito Cultural", atribuida pela Secretaria de Estado da Cultura, a titulo póstumo, e que foi entregue a sua irmã D. Guilhermina Ribeiro, numa sessão realizada no Salão de Festas do Casino, em Março de 1987. Na ocasião, o presidente do município disse que "não se tratava de uma homenagem póstuma, mas sim a maneira de publicitar um nome honrado, cuja vida teve no Teatro a sua grande paixão".

Manuel Lindote


Um semanário local, desta semana, publicou uma notícia informando que, numa reunião dos antigos remadores da Naval, a filha mais velha de Manuel Fernandes Pinto, popularmente conhecido por Manuel Lindote, fez a entrega de uma fotografia de seu Pai, equipado com a camisola da Associação Naval, ladeada pelas medalhas conquistadas por este saudoso atleta tavaredense. Bonito gesto, que merece saudar e uma recordação valiosa para a Naval.

Homem simples, de condição humilde, Manuel Lindote era ferreiro nas oficinas do Caminho de Ferro e, para aumentar os parcos rendimentos, trabalhava aos serões na sua forja sita junto à sua residência, no Largo do Terreiro.

Faleceu no dia 5 de Setembro de 1959, com 52 anos de idade, vitimado por doença que, naquela época, ainda não perdoava ninguém.

Recorto este pequeno apontamento, que retirei de um jornal daquele tempo: "Mais um amigo que desaparece. Era um bondoso chefe de família e deixa bastantes saudades pelo excelente carácter de que era dotado. Nos últimos momentos de sua vida, teve ainda estas palavras: 'quero que a camisola da minha associação Naval me acompanhe'". Cumpriram o seu desejo.

Além da sua profissão também era músico, tendo feito parte da Tuna do Grupo Musical Instrução Tavaredense e do célebre conjunto Lúcia-Lima-Jazz. Tocava pífaro e viola. Fazia parelha com Alexandre Simões, do Casal da Robala, chegando a acompanhar, no Casino Peninsular, alguns artistas amadores e profissionais.

Era uma excelente pessoa, como o esforço físico na sua profissão e no remo era enorme, tinha sempre um excelente apetite, sendo considerado um excelente garfo. A este propósito, e porque era grande amigo de meu Pai, sei algumas histórias suas, que qualquer dia contarei. Por hoje, limito-me a salientar o facto acima citado.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

As festas ao S. João de Tavarede


Estamos a chegar ao S. João. As festas sanjoaninas em Tavarede chegaram a ser muito famosas. Normalmente tinham lugar na segunda semana de Julho, no domingo imediato às festas realizadas em Buarcos. Vem, a propósito, recordar as célebres cavalhadas. As de Tavarede eram der uma fama enorme. Acabaram em 1927. O seu final teve uma história muito interessante que prometo contar daqui por uns tempos. Hoje é só para recordar.
Já não são do meu tempo as grandes festas populares em Tavarede. No primeiro caderno, e com base nas notícias colhidas na imprensa figueirense, recordei as principais. E, segundo os elementos disponíveis, em lugar bem destacado, encontravam-se as festas ao S. João. Destas, o número que tinha mais fama eram as cavalhadas. Na terceira parte deste caderno, entre as diversas histórias que conto, volto a recordar estas festividades, especialmente para dar a conhecer como e quando acabaram.
Mas as cavalhadas foram recordadas num dos primeiros anos de 1940. Lembro-me muito bem de ver desfilar o cortejo frente a minha casa, com a bandeira à frente, a caminho da Figueira e Buarcos, para dar a antiga volta. E, assim, também aqui vou recordar as festas ao Santo Precursor, como o farei a outras que, de alguma forma, ainda se efectuavam ou foram evocadas nos meus tempos.
Das festas sanjoaninas, vou transcrever uma nota escrita por Mestre José Ribeiro.
Cortejo S. João - 1948

Cavalhadas – Bandeira grande

“As chamadas festas de S. João em Tavarede tiveram sempre carácter religioso e profano. Com mais propriedade lhes chamaríamos – São João do Limonete.
O número de maior realce e que mais avultava nestas festas de S. João, e as tornava bem conhecidas em toda a aldeia e arredores, foram, incontestavelmente, as cavalhadas ou, como mais singelamente se designava o conjunto daqueles festejos – a Bandeira. E, já que referimos a Bandeira, melhor se dirá as bandeiras, porque de duas bandeiras se tratava. Seja-nos permitido ler o que consta da acta da sessão da Junta da Paróquia de Tavarede, de 26 de Junho de 1889:


“As bandeiras de S. João são trastes ou objectos da paróquia, tendo o padre obrigação de fazer a sua entrega aos forasteiros que se apresentarem para fazer a festa, visto que o fim principal destas funções é um divertimento de arraial com fogueiras no mês de Junho, onde se salta, canta e dança estouvadamente; iluminações nas ruas, cavalhadas em toda a qualidade de alimárias, mascaradas grotescas, com folganças e exibições fantasiosas, tudo para entreter, divertir e fazer rir”.
Antes do início das festas fazia-se a chamada pega da bandeira, às vezes com cerca de um ano de antecedência sobre a nova festa de S. João.
Na manhã do primeiro domingo da festa havia a função religiosa, com aparatosa ornamentação da igreja, missa cantada e sermão. Vinha também orquestra, e alguns cantadores de Coimbra.
As cavalhadas eram o prato forte da festa, com o grande cortejo equestre, assim formado: abrindo o cortejo, em nota cómica e com sabor carnavalesco, vinha numerosa burricada, em jeito de guarda-avançada da cavalaria que abria com dois guias, assim chamados os dois cavaleiros que iniciavam o solene cortejo hípico e exibiam cada um a sua vara de 2 metros, pintada de branco e com um lacinho de fita de cor. Seguia-se então a cavalaria, em duas filas que marginavam as ruas do percurso; nesse conjunto destacavam-se dois grupos de 3 cavaleiros: o porta-estandarte da bandeira pequena, ao centro e os dois padrinhos, um de cada lado, e grupo semelhante com a bandeira grande. Era um cortejo extenso, vistoso e imponente.
No asínino grupo da guarda-avançada já referida destacava-se o muito simpático, e sempre alegre e desejada presença, representante da famosa e estimadíssima dinastia dos Toquins de Tavarede. Este vistoso cortejo passava por Buarcos, ia dar volta à Praça Nova, na Figueira, e vinha de seguida a Tavarede, a dar as tradicionais 3 voltas à igreja, enquanto festivamente repicavam os sinos da torre.
Emudecidos os sinos, era a pausa do cortejo. Os cavaleiros abalavam por instantes largando rédeas; as mesmo tempo, ao longo da rua, desde a Igreja ao Paço, vão-se abrindo as portas e aparecem as moradoras, mulheres e raparigas, sobraçando limonete, erguendo e oferecendo, em alegria ruidosa, ramos de limonete, braçadas de limonete, numa apoteose de verdura rústica e bem cheirosa. O silêncio tristonho da rua mudou-se em animação de vozear alegre; dominava já a mocidade de Buarcos, gente moça que aproveitava o passeio e homens e mulheres que vinham à feira do limonete. Pequenos quintais de residências, leiras do Quintal Ferreira, retalhos de várzeas em redor da aldeia, eram pródigos em limonete: fosse velhos troncos que a poda impiedosamente fizesse reverdecer e enfeitar-se de novos e sempre renovados ramos, ou novos e generosos limoneteiros que já exibiam ramos vigorosos, alguns prestes a enfeitarem-se de pequeninas estrelas nas pontas dos ramos franzinos, em flores ternadas ou binadas, dispostas em espigas frouxas, formando panícula piramidal.
Nesta pausa do cortejo, intervalo obrigatório, os cavaleiros não se ficavam quedos, que o não consentiam os cavalos frenéticos, talvez já embriagados com o cheiro da lúcia-lima, a bela-luísa, a doce-lima, a erva-luísa, o pessegueiro inglês – que tudo é limonete.
Alguns dos cavaleiros vestiam fraque e chapéu alto, e era vê-los abalarem, velozes, pela rua cheia de gente, aproveitando o intervalo para uma fuga em visita-relâmpago aos arredores da aldeia.
A cerimónia religiosa, na igreja primorosamente ornamentada para o efeito, realizava-se com toda a pompa e respeito. Orquestra e cantores fizeram-se ouvir no coro. No púlpito, um sacerdote proferiu adequado sermão. A cerimónia decorria sob a invocação de São João Baptista. Não me lembro de ter ouvido referir no sermão o nome de Herodíase que no meu espírito vinha sempre ligado ao da luxuriosa Salomé e ao martírio de São João Baptista, o profeta Yokanaan. A propósito, direi que vi a cabeça degolada do puro e austero pastor que vivia no deserto e se alimentava de mel silvestre e gafanhotos. Posso garantir que vi a cabeça de S. João Baptista – moldada em barro, naturalmente... e muito bem pintada -, já colocada sobre o grande prato de cobre que servia ao sedutor bailado da Salomé, no caso interpretada pela exímia, rica e formosa bailarina Sara Sevilha, que teve luxuosa habitação na Figueira, no chalé da quinta do Pinhal, muito falada então bailarina famosa que tivemos oportunidade de apresentar aos leitores de “A Voz da Justiça”, neste nosso jornal nos dias 9, 20 e 30 de Maio de 1922.
Passaram 60 anos...
Terá envelhecido a sempre jovem, brilhante e formosa Salomé do chalé luxuoso e rico do Pinhal?”.

O primeiro de Maio e os potes floridos de Tavarede


Rancho 1º. de Maio - 1954


Quase tão desejadas quanto as festas a S. João, eram as madrugadas do primeiro de Maio, estas com a particularidade de inspirarem poetas. E se já transcrevi alguns trechos bem poéticos, muitos mais encontrei e que merecem ser recordados. O poeta e escritor figueirense António Augusto Esteves, que usou o pseudónimo de Carlos Sombrio, deixou-nos descrito a primeiro de Maio na fonte da Várzea.

“Quem não conhece, na madrugada de amanhã, a Fonte da Várzea da Figueira?
Ranchos alegres que apregoam, nas cantigas repassadas de côr, a alegria salutar do amor, da vida, da felicidade!...
Cântaros à cabeça, transformados em maciços de flôres, elas lá vão em busca da água fresquinha que hão de trazer no regresso, depois de bailarem a alegria que lhes vai nas almas e de folgarem tôda a mocidade que vive nos seus corações amorosos.
É que aquela Várzea é bem, neste dia, um altar onde as moças poisam as melhores preces de seu amor feliz, e onde fazem as preces da sua alegria venturosa.
Reboam ali, naquele largo, pertinho da Fonte, cantigas desfiadas por fieiras de oiro, correndo, como veios de água cantante e fresca, cada vez mais felizes, cada vez com mais encantos.
E quando o sol se ergue para doirar a folhagem tenra dos arbustos, a desafiar o viço e a roubar a frescura das rosas – manchas de neve, pintas de oiro ou pontos vermelhos, sensuais, de fogo aveludado -, em que a palidez da madrugada empresta às moças desaparece, para as fazer de olhar mais perturbante, mais amoroso e mais feiticeiro, a ventura, a saúde, o prazer de gosar a liberdade, de cantar e de viver, assim, à sôlta, - viver que não extenua, que não cansa, que perturba e entontece, - então os corações erguem-se mais altos, tão altos como a alegria juvenil da mocidade – tal qual como os braços espinhosos das roseiras, e contam á água fresca que os cântaros levam, a sua alegria que, por ser muita, é sempre pouca – tão curta é a hora feliz que os venturosos julgam descuidadamente viver!
Pudessem muitos mentir, e na madrugada de amanhã, o riso a florir nos lábios, a alma, lá dentro, a brincar contente, satisfeita e feliz, ir até à Várzea, nos ranchos alados da mocidade, e dizer às rosas, no seu dia, o que sentem e o que não podem dizer!...
Se assim fôsse, todos seriamos felizes, todos seriamos alegres, contentes, pelo menos, aparentemente.
E as rosas, no dia do seu culto, teriam, naturalmente, mais beleza, mais frescura e mais perfume!...”.

Finalmente, mais uma vez recorro a Mestre José Ribeiro. Aliás, foi ele quem em 1950, na sua peça “Chá de Limonete”, fez reviver o rancho dos potes floridos de Tavarede.

“Passaram agora sob a nossa janela as raparigas do rancho do Maio.
O rancho do Maio!
Todos os anos se organiza este cortejo florido. E quando passa nas ruas, deixando no ar o eco das cantigas e o perfume das rosas – é Primavera!
Quando Abril começa a despedir-se, as raparigas animam-se, combinam, organizam o rancho. E na véspera do dia ansiosamente esperado, pedem às vizinhas, correm aos jardins, vão ao mercado – e levam para casa arregaçadas de flores. Arranjam os trajos. Enfeitam os potes, que desaparecem sob os desenhos caprichosos das rosas e malmequeres. Mal pregam olho durante a noite. E quando a manhã só é adivinhada pelo seu espírito em alvoroço, erguem-se, chamam-se umas às outras, reúnem-se – e as suas vozes fazem a alvorada antes que o chiar das rabecas e o tom-tom dos violões arrepie o ar nos estremeções da afinação.
E marcham. Estrada fora, marcam em piso leve, airosas e frescas, o compasso da marcha que as suas vozes erguem no espaço, subindo alto, levada muito alto no perfume das flores, até fundir-se na atmosfera da madrugada húmida e ainda pesada dos orvalhos da noite. Sobre as cabeças inquietas levam os potes floridos. Dentro dos peitos arquejantes uma ansiedade, uma aspiração indecisa que toma forma nas suas bocas e é Amor nos seus lábios vermelhos sem pintura...
... Cantigas de amor!
... E a Vida aparece-lhes clara e transparente como a água das fontes que cai das bicas e canta com elas, luminosa e brilhante como a luz que começa a entornar oiro fluído sobre o azul do céu e o verde tenrinho, muito tenro e muito verde, da planície viçosa.
Este ano o Abril foi de inverno. Frio e vendaval, chuvas teimosas que não tinham fim. Os rapazes da música não queriam sair: - Tenham juízo, não sejam malucas! Apanhar uma chuvada e ficarmos como pintos...
Mas elas, enfeitando os cântaros, vendo-se no espelho das flores e recebendo destas a alegria e a certeza da primavera, viam lá a chuva, sentiam lá a chuva, queriam lá saber da chuva!... O 1º. de Maio era sempre o 1º. de Maio. No 1º. de Maio há sempre sol. Elas não acreditam na chuva. E se a chuva vier – há-de desfazer-se ao calor das suas vozes, dos seus corações ansiosos, da sua mocidade ardente. Elas acreditam no 1º. de Maio – e porque acreditam nele, vencem a chuva e vencem a dúvida e o medo dos rapazes das violas que parecem velhos – como o Velho-do-Restelo...
Passou agora o rancho sob a nossa janela. Lá de cima do céu, que parece mais baixo todo forrado de chumbo, cai uma chuva miúda, muito leve e muito fina, como poeira de prata. Mas não desce além dos telhados, fica-se no ar, suspensa sobre a camada de som e de perfume que enche a rua numa alvorada de sol.
... Os cântaros enfeitados!
... E as raparigas dos cântaros!
Há neste conjunto de flores e gente moça que não sente a chuva e que vence a chuva, qualquer coisa

de profundamente simbólico.

Quantos homens fogem à vida, e não a constroem e não a vivem.
Quantos não vêem o sol porque se assustam com a chuva?
Quantos homens poderiam aprender no riso fresco, na chama da vida, na certeza da Primavera destas raparigas que vão lá adiante no cortejo florido dos cântaros, a vencer a dúvida e a edificar por suas mãos o triunfo da sua crença?”.

Prossigo, agora, com mais uma evocação ainda comemorada nos meus tempos de criança. A tarde da chamada “merenda grande” era de ida aos pinhais onde, sob a sombra acolhedora e fresca, eram comidos alguns petiscos. O pinhal mais frequentado era o da quinta da Borlateira, aos Quatro Caminhos. Com o farnel acondicionado no cesto, lá íamos à procura de poiso onde pudessemos estender a toalha e umas velhas mantas, onde nos sentávamos confortavelmente. Claro que também esta “merenda grande” já era uma pálida amostra das antigas, como se pode adivinhar por este recorte, publicado em 1902.

“Diz-se, e com razão, que esta vida são dois dias... É um pensamento que não oferece dúvida, e eis porque muito boa gente não perde um momento em que os possa levar regaladamente. Assim, é ver como alguns andam á espreita dos dias de folgança, para gozar e divertirem-se; há uma festarola, lá vão - em massa, cheios de alegria, farnel aviado e ideia fixa no santinho que os arrasta áquela adoração - esquecer por umas horas as tristezas e amarguras da atribulada vida...
E aqui estava eu a começar um banal aranzel, quando afinal o meu intento é falar da merenda grande, que foi na segunda-feira, e que, como é da praxe, atraíu á minha risonha terra bastante gente que gosta da pandega. Isto contaram-mo, porque a pouca sorte não me deu a felicidade daquelas venturosas creaturas...
Mas as locandas animaram-se; por essas quintarolas fora dizem-nos que houve regabofe desmedido; as pequenas alunas da escola oficial cantavam as estopinhas pelas ruas da povoação, cestinho á cabeça, qual deles enfeitado com mais capricho; nas lautas merendas devoradas com apetite á fresca sombra de copadas árvores ou entre o inebriante perfume exalado dos canteiros e vergéis engrinaldados de lindas rosas, ou ainda nas eiras, onde corria brandamente a pura viração do norte, tudo concorreu para deliciar os ditosos visitantes da minha estremecida e bem amada aldeia.






Rancho 1º. de Maio - 1975

















Recordações...



Longe de mim a ideia de pretender ensinar a História da nossa Terra. Seria pretenciosismo da minha parte. O que eu gostaria de fazer, se de tal fôr capaz, era recordar algumas histórias ou historietas de Tavarede e algumas figuras que tanto honraram esta terra.
Li toda a Imprensa figueirense existente na Biblioteca Municipal da Figueira da Foz, bem como os livros publicados, e ali existentes, que contam algo da história da Terra do Limonete. Nas colectividades locais também encontrei retalhos ou notas muito curiosas e de muito interesse.
Guardo na memória conversas interessantíssimas que, nos meus tempos de infância, ouvia contar aos mais idosos na pequena sapataria de meu saudoso Pai. Recordo, igualmente, os serões nas colectividades locais, especialmente durante os ensaios do teatro, onde sempre se ouviam historietas, bem reais, que muitas vezes nos faziam rir e hoje, passados tantos anos, algumas delas me fazem meditar.

São algumas dessas recordações que eu gostaria de aqui deixar. Tal como tenho feito nos meus cadernos, que se encontram na Junta de Freguesia de Tavarede, onde podem ser consultados.
Histórias e pessoas. Bem merecem que não caiam no esquecimento. E algumas fotografias também. Sobre estas, era bem interessante e importante haver alguém que, com tempo e paciência, fizesse uma busca de fotografias antigas, tanto do Teatro, da Música, das Colectividades e de nossos Antepassados, para organizar um album de verdadeiras recordações do passado, pois são historietas e fotografias que forma, no seu todo, um bloco muito importante da História de Tavarede que não deve ser esquecida.