quarta-feira, 10 de junho de 2009

As festas ao S. João de Tavarede


Estamos a chegar ao S. João. As festas sanjoaninas em Tavarede chegaram a ser muito famosas. Normalmente tinham lugar na segunda semana de Julho, no domingo imediato às festas realizadas em Buarcos. Vem, a propósito, recordar as célebres cavalhadas. As de Tavarede eram der uma fama enorme. Acabaram em 1927. O seu final teve uma história muito interessante que prometo contar daqui por uns tempos. Hoje é só para recordar.
Já não são do meu tempo as grandes festas populares em Tavarede. No primeiro caderno, e com base nas notícias colhidas na imprensa figueirense, recordei as principais. E, segundo os elementos disponíveis, em lugar bem destacado, encontravam-se as festas ao S. João. Destas, o número que tinha mais fama eram as cavalhadas. Na terceira parte deste caderno, entre as diversas histórias que conto, volto a recordar estas festividades, especialmente para dar a conhecer como e quando acabaram.
Mas as cavalhadas foram recordadas num dos primeiros anos de 1940. Lembro-me muito bem de ver desfilar o cortejo frente a minha casa, com a bandeira à frente, a caminho da Figueira e Buarcos, para dar a antiga volta. E, assim, também aqui vou recordar as festas ao Santo Precursor, como o farei a outras que, de alguma forma, ainda se efectuavam ou foram evocadas nos meus tempos.
Das festas sanjoaninas, vou transcrever uma nota escrita por Mestre José Ribeiro.
Cortejo S. João - 1948

Cavalhadas – Bandeira grande

“As chamadas festas de S. João em Tavarede tiveram sempre carácter religioso e profano. Com mais propriedade lhes chamaríamos – São João do Limonete.
O número de maior realce e que mais avultava nestas festas de S. João, e as tornava bem conhecidas em toda a aldeia e arredores, foram, incontestavelmente, as cavalhadas ou, como mais singelamente se designava o conjunto daqueles festejos – a Bandeira. E, já que referimos a Bandeira, melhor se dirá as bandeiras, porque de duas bandeiras se tratava. Seja-nos permitido ler o que consta da acta da sessão da Junta da Paróquia de Tavarede, de 26 de Junho de 1889:


“As bandeiras de S. João são trastes ou objectos da paróquia, tendo o padre obrigação de fazer a sua entrega aos forasteiros que se apresentarem para fazer a festa, visto que o fim principal destas funções é um divertimento de arraial com fogueiras no mês de Junho, onde se salta, canta e dança estouvadamente; iluminações nas ruas, cavalhadas em toda a qualidade de alimárias, mascaradas grotescas, com folganças e exibições fantasiosas, tudo para entreter, divertir e fazer rir”.
Antes do início das festas fazia-se a chamada pega da bandeira, às vezes com cerca de um ano de antecedência sobre a nova festa de S. João.
Na manhã do primeiro domingo da festa havia a função religiosa, com aparatosa ornamentação da igreja, missa cantada e sermão. Vinha também orquestra, e alguns cantadores de Coimbra.
As cavalhadas eram o prato forte da festa, com o grande cortejo equestre, assim formado: abrindo o cortejo, em nota cómica e com sabor carnavalesco, vinha numerosa burricada, em jeito de guarda-avançada da cavalaria que abria com dois guias, assim chamados os dois cavaleiros que iniciavam o solene cortejo hípico e exibiam cada um a sua vara de 2 metros, pintada de branco e com um lacinho de fita de cor. Seguia-se então a cavalaria, em duas filas que marginavam as ruas do percurso; nesse conjunto destacavam-se dois grupos de 3 cavaleiros: o porta-estandarte da bandeira pequena, ao centro e os dois padrinhos, um de cada lado, e grupo semelhante com a bandeira grande. Era um cortejo extenso, vistoso e imponente.
No asínino grupo da guarda-avançada já referida destacava-se o muito simpático, e sempre alegre e desejada presença, representante da famosa e estimadíssima dinastia dos Toquins de Tavarede. Este vistoso cortejo passava por Buarcos, ia dar volta à Praça Nova, na Figueira, e vinha de seguida a Tavarede, a dar as tradicionais 3 voltas à igreja, enquanto festivamente repicavam os sinos da torre.
Emudecidos os sinos, era a pausa do cortejo. Os cavaleiros abalavam por instantes largando rédeas; as mesmo tempo, ao longo da rua, desde a Igreja ao Paço, vão-se abrindo as portas e aparecem as moradoras, mulheres e raparigas, sobraçando limonete, erguendo e oferecendo, em alegria ruidosa, ramos de limonete, braçadas de limonete, numa apoteose de verdura rústica e bem cheirosa. O silêncio tristonho da rua mudou-se em animação de vozear alegre; dominava já a mocidade de Buarcos, gente moça que aproveitava o passeio e homens e mulheres que vinham à feira do limonete. Pequenos quintais de residências, leiras do Quintal Ferreira, retalhos de várzeas em redor da aldeia, eram pródigos em limonete: fosse velhos troncos que a poda impiedosamente fizesse reverdecer e enfeitar-se de novos e sempre renovados ramos, ou novos e generosos limoneteiros que já exibiam ramos vigorosos, alguns prestes a enfeitarem-se de pequeninas estrelas nas pontas dos ramos franzinos, em flores ternadas ou binadas, dispostas em espigas frouxas, formando panícula piramidal.
Nesta pausa do cortejo, intervalo obrigatório, os cavaleiros não se ficavam quedos, que o não consentiam os cavalos frenéticos, talvez já embriagados com o cheiro da lúcia-lima, a bela-luísa, a doce-lima, a erva-luísa, o pessegueiro inglês – que tudo é limonete.
Alguns dos cavaleiros vestiam fraque e chapéu alto, e era vê-los abalarem, velozes, pela rua cheia de gente, aproveitando o intervalo para uma fuga em visita-relâmpago aos arredores da aldeia.
A cerimónia religiosa, na igreja primorosamente ornamentada para o efeito, realizava-se com toda a pompa e respeito. Orquestra e cantores fizeram-se ouvir no coro. No púlpito, um sacerdote proferiu adequado sermão. A cerimónia decorria sob a invocação de São João Baptista. Não me lembro de ter ouvido referir no sermão o nome de Herodíase que no meu espírito vinha sempre ligado ao da luxuriosa Salomé e ao martírio de São João Baptista, o profeta Yokanaan. A propósito, direi que vi a cabeça degolada do puro e austero pastor que vivia no deserto e se alimentava de mel silvestre e gafanhotos. Posso garantir que vi a cabeça de S. João Baptista – moldada em barro, naturalmente... e muito bem pintada -, já colocada sobre o grande prato de cobre que servia ao sedutor bailado da Salomé, no caso interpretada pela exímia, rica e formosa bailarina Sara Sevilha, que teve luxuosa habitação na Figueira, no chalé da quinta do Pinhal, muito falada então bailarina famosa que tivemos oportunidade de apresentar aos leitores de “A Voz da Justiça”, neste nosso jornal nos dias 9, 20 e 30 de Maio de 1922.
Passaram 60 anos...
Terá envelhecido a sempre jovem, brilhante e formosa Salomé do chalé luxuoso e rico do Pinhal?”.

O primeiro de Maio e os potes floridos de Tavarede


Rancho 1º. de Maio - 1954


Quase tão desejadas quanto as festas a S. João, eram as madrugadas do primeiro de Maio, estas com a particularidade de inspirarem poetas. E se já transcrevi alguns trechos bem poéticos, muitos mais encontrei e que merecem ser recordados. O poeta e escritor figueirense António Augusto Esteves, que usou o pseudónimo de Carlos Sombrio, deixou-nos descrito a primeiro de Maio na fonte da Várzea.

“Quem não conhece, na madrugada de amanhã, a Fonte da Várzea da Figueira?
Ranchos alegres que apregoam, nas cantigas repassadas de côr, a alegria salutar do amor, da vida, da felicidade!...
Cântaros à cabeça, transformados em maciços de flôres, elas lá vão em busca da água fresquinha que hão de trazer no regresso, depois de bailarem a alegria que lhes vai nas almas e de folgarem tôda a mocidade que vive nos seus corações amorosos.
É que aquela Várzea é bem, neste dia, um altar onde as moças poisam as melhores preces de seu amor feliz, e onde fazem as preces da sua alegria venturosa.
Reboam ali, naquele largo, pertinho da Fonte, cantigas desfiadas por fieiras de oiro, correndo, como veios de água cantante e fresca, cada vez mais felizes, cada vez com mais encantos.
E quando o sol se ergue para doirar a folhagem tenra dos arbustos, a desafiar o viço e a roubar a frescura das rosas – manchas de neve, pintas de oiro ou pontos vermelhos, sensuais, de fogo aveludado -, em que a palidez da madrugada empresta às moças desaparece, para as fazer de olhar mais perturbante, mais amoroso e mais feiticeiro, a ventura, a saúde, o prazer de gosar a liberdade, de cantar e de viver, assim, à sôlta, - viver que não extenua, que não cansa, que perturba e entontece, - então os corações erguem-se mais altos, tão altos como a alegria juvenil da mocidade – tal qual como os braços espinhosos das roseiras, e contam á água fresca que os cântaros levam, a sua alegria que, por ser muita, é sempre pouca – tão curta é a hora feliz que os venturosos julgam descuidadamente viver!
Pudessem muitos mentir, e na madrugada de amanhã, o riso a florir nos lábios, a alma, lá dentro, a brincar contente, satisfeita e feliz, ir até à Várzea, nos ranchos alados da mocidade, e dizer às rosas, no seu dia, o que sentem e o que não podem dizer!...
Se assim fôsse, todos seriamos felizes, todos seriamos alegres, contentes, pelo menos, aparentemente.
E as rosas, no dia do seu culto, teriam, naturalmente, mais beleza, mais frescura e mais perfume!...”.

Finalmente, mais uma vez recorro a Mestre José Ribeiro. Aliás, foi ele quem em 1950, na sua peça “Chá de Limonete”, fez reviver o rancho dos potes floridos de Tavarede.

“Passaram agora sob a nossa janela as raparigas do rancho do Maio.
O rancho do Maio!
Todos os anos se organiza este cortejo florido. E quando passa nas ruas, deixando no ar o eco das cantigas e o perfume das rosas – é Primavera!
Quando Abril começa a despedir-se, as raparigas animam-se, combinam, organizam o rancho. E na véspera do dia ansiosamente esperado, pedem às vizinhas, correm aos jardins, vão ao mercado – e levam para casa arregaçadas de flores. Arranjam os trajos. Enfeitam os potes, que desaparecem sob os desenhos caprichosos das rosas e malmequeres. Mal pregam olho durante a noite. E quando a manhã só é adivinhada pelo seu espírito em alvoroço, erguem-se, chamam-se umas às outras, reúnem-se – e as suas vozes fazem a alvorada antes que o chiar das rabecas e o tom-tom dos violões arrepie o ar nos estremeções da afinação.
E marcham. Estrada fora, marcam em piso leve, airosas e frescas, o compasso da marcha que as suas vozes erguem no espaço, subindo alto, levada muito alto no perfume das flores, até fundir-se na atmosfera da madrugada húmida e ainda pesada dos orvalhos da noite. Sobre as cabeças inquietas levam os potes floridos. Dentro dos peitos arquejantes uma ansiedade, uma aspiração indecisa que toma forma nas suas bocas e é Amor nos seus lábios vermelhos sem pintura...
... Cantigas de amor!
... E a Vida aparece-lhes clara e transparente como a água das fontes que cai das bicas e canta com elas, luminosa e brilhante como a luz que começa a entornar oiro fluído sobre o azul do céu e o verde tenrinho, muito tenro e muito verde, da planície viçosa.
Este ano o Abril foi de inverno. Frio e vendaval, chuvas teimosas que não tinham fim. Os rapazes da música não queriam sair: - Tenham juízo, não sejam malucas! Apanhar uma chuvada e ficarmos como pintos...
Mas elas, enfeitando os cântaros, vendo-se no espelho das flores e recebendo destas a alegria e a certeza da primavera, viam lá a chuva, sentiam lá a chuva, queriam lá saber da chuva!... O 1º. de Maio era sempre o 1º. de Maio. No 1º. de Maio há sempre sol. Elas não acreditam na chuva. E se a chuva vier – há-de desfazer-se ao calor das suas vozes, dos seus corações ansiosos, da sua mocidade ardente. Elas acreditam no 1º. de Maio – e porque acreditam nele, vencem a chuva e vencem a dúvida e o medo dos rapazes das violas que parecem velhos – como o Velho-do-Restelo...
Passou agora o rancho sob a nossa janela. Lá de cima do céu, que parece mais baixo todo forrado de chumbo, cai uma chuva miúda, muito leve e muito fina, como poeira de prata. Mas não desce além dos telhados, fica-se no ar, suspensa sobre a camada de som e de perfume que enche a rua numa alvorada de sol.
... Os cântaros enfeitados!
... E as raparigas dos cântaros!
Há neste conjunto de flores e gente moça que não sente a chuva e que vence a chuva, qualquer coisa

de profundamente simbólico.

Quantos homens fogem à vida, e não a constroem e não a vivem.
Quantos não vêem o sol porque se assustam com a chuva?
Quantos homens poderiam aprender no riso fresco, na chama da vida, na certeza da Primavera destas raparigas que vão lá adiante no cortejo florido dos cântaros, a vencer a dúvida e a edificar por suas mãos o triunfo da sua crença?”.

Prossigo, agora, com mais uma evocação ainda comemorada nos meus tempos de criança. A tarde da chamada “merenda grande” era de ida aos pinhais onde, sob a sombra acolhedora e fresca, eram comidos alguns petiscos. O pinhal mais frequentado era o da quinta da Borlateira, aos Quatro Caminhos. Com o farnel acondicionado no cesto, lá íamos à procura de poiso onde pudessemos estender a toalha e umas velhas mantas, onde nos sentávamos confortavelmente. Claro que também esta “merenda grande” já era uma pálida amostra das antigas, como se pode adivinhar por este recorte, publicado em 1902.

“Diz-se, e com razão, que esta vida são dois dias... É um pensamento que não oferece dúvida, e eis porque muito boa gente não perde um momento em que os possa levar regaladamente. Assim, é ver como alguns andam á espreita dos dias de folgança, para gozar e divertirem-se; há uma festarola, lá vão - em massa, cheios de alegria, farnel aviado e ideia fixa no santinho que os arrasta áquela adoração - esquecer por umas horas as tristezas e amarguras da atribulada vida...
E aqui estava eu a começar um banal aranzel, quando afinal o meu intento é falar da merenda grande, que foi na segunda-feira, e que, como é da praxe, atraíu á minha risonha terra bastante gente que gosta da pandega. Isto contaram-mo, porque a pouca sorte não me deu a felicidade daquelas venturosas creaturas...
Mas as locandas animaram-se; por essas quintarolas fora dizem-nos que houve regabofe desmedido; as pequenas alunas da escola oficial cantavam as estopinhas pelas ruas da povoação, cestinho á cabeça, qual deles enfeitado com mais capricho; nas lautas merendas devoradas com apetite á fresca sombra de copadas árvores ou entre o inebriante perfume exalado dos canteiros e vergéis engrinaldados de lindas rosas, ou ainda nas eiras, onde corria brandamente a pura viração do norte, tudo concorreu para deliciar os ditosos visitantes da minha estremecida e bem amada aldeia.






Rancho 1º. de Maio - 1975

















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